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Marcel Duchamp e Marcel Broodthaers

Vertices/Vetores: diálogos

Broodthaers Aguia

Musée d’Art Moderne, Département des Aigles, XIXème siècle, de Marcel Broodthaers

Marcel Broodthaers se assume como um criador fictício, criador de ficções de museu, uma vez que se torna artista a fim de poder criar e vender objetos fictícios. Isso fica evidente na obra Musée d’Art Moderne, Département des Aigles.

Essa estratégia é assumida pela impossibilidade de formar sua própria coleção, como diz, por falta de recursos. Ele parte então da ideia de uma “condição” de mercadoria de arte e assim torna-se um criador. Broodthaers, entre 1968 e 1972, esteve à frente de uma grande ficção que simulava um museu e diversas de suas instâncias: departamentos, coleção, obras, cerimônias, documentos etc., todos criados por ele, que afirma: “a ficção permite-nos apreender a realidade e, ao mesmo tempo, o que é oculto pela realidade” (BROODTHAERS, 2012).

Em sua apresentação, o artista descreve:

This Museum is a fictitious museum. It plays the role of, on the one hand, a political parody of art shows, and on the other hand an artistic parody of political events. Which is in fact what official museums and institutions like Documenta do. With the difference, however, that a work of fiction allows you to capture reality and at the same time what it conceals (BROODTHAERS, 2012, p. 354).

Seu museu consistiu num conjunto de ambientes-organizações de sessões baseadas na contraditória relação entre palavra e imagem, da qual se utiliza frequentemente com bastante ironia. Em sua primeira seção, Section XIXème Siècle, que demarca a inauguração realizada em sua casa, em Bruxelas, ele reúne embalagens vazias para transporte de quadros com a inscrição: “manter seco, frágil e transportar com cuidado”. Após dois meses de sua abertura, Broodthaers escreve uma carta aberta em que diz:

Conseguimos, graças à cooperação de uma transportadora e de diversos amigos, criar este departamento, o qual inclui principalmente o seguinte: 1. embalagens, 2. postais “supervalorizados”, 3. projeção permanente de imagens (a ser mantida), 4. uma equipe dedicada (BROODTHAERS, 2012, tradução nossa).

Em uma de suas últimas seções, a emblemática Section des figures, ele reúne 266 objetos que representam águias, emprestados de 43 museus “reais” assim como de coleções particulares, dispostos em vitrines e paredes. Cada objeto era acompanhado de uma etiqueta (em inglês, francês e alemão) cuja inscrição dizia: “isto não é uma obra de arte”. Desse modo, a exposição se baseia na águia e na arte “como ideia”.

A reunião e a apresentação desses objetos seguem uma lógica das coleções, mas evidenciam a artificialidade da própria imagem. A coesão está na base dos museus, mesmo que não haja lógica possível que permita reunir objetos assim díspares (cf.  CRIMP, 2005:195). Dessa forma, faz-se uma referência direta a Duchamp e Foucault:

Douglas Crimp, em Sobre as ruínas do museu, ajuda-nos a compreender essa citação/apropriação. Para Broodthaers, unir o contexto (da arte) à assinatura (do ready-made) basta para afirmar “isso é arte”:

Aqui o público se defronta com os seguintes objetos de arte: águias de todo tipo, algumas das quais carregam conceitos simbólicos e históricos de peso. O caráter desse confronto é determinado pela inscrição negativa: “Isto não é... isto não é uma obra de arte.” Isto significa apenas o seguinte: Mas que público cego! Portanto, de duas, uma: ou a informação na assim chamada arte moderna tem tido um papel eficaz, caso em que a águia inevitavelmente se tornaria parte de um método; ou a inscrição apresenta-se como mero absurdo – ou seja, não corresponde ao nível de Duchamp e Magritte –, e então a exposição segue simplesmente os princípios clássicos: a águia na arte, na história, na etimologia, no folclore... (CRIMP, 2006, p. 194).

Para Crimp, o pós-modernismo tem suas raízes no colapso do sistema discursivo do museu onde artistas, com as mais variadas estratégias, evocam um imaginário do museu e questionam seu papel formador na maneira como tendemos a pensar a arte, ou ainda, como o museu se tornou lugar natural para alojamento de obras. Ele ainda questiona: quem tem acesso? Que tipo de acesso? E acesso a quê, exatamente?

Em Duchamp, para além da apropriação que importa a Broodthaers, interessa-me ainda olhar para sua obra Boîte-en-valise, que assume muito precocemente a forma de um museu “portátil”, ou ainda, um museu sem paredes, como será abordado por outros autores mais adiante. Marcel Duchamp, interessado em pensar a reprodutibilidade, ou por denunciar a arte como mercadoria, imagina em 1913 e lança em 1936 a primeira de uma série de maletas que continham cerca de 69 reproduções em miniatura de suas obras. O formato é definido a partir de sua Boîte surréaliste[1] e dos princípios dos gabinetes de curiosidades como possibilidade de agrupamento de pequenas maravilhas colecionáveis.

Duchamp

Boîte-en-valise, de Marcel Duchamp

Sua forma, já bastante assimilada hoje em dia, sugere uma entre outras tantas disposições possíveis de organização do que pretende ser apresentado como fruto deste mestrado: as miniaturas, a caixa, a reunião de trabalhos na forma de um livro-caixa.

 

 



[1] Conceito desenvolvido por Duchamp e Man Ray quando formam a Société Anonyme nos anos 1920. A partir da reunião de objetos distintos e fabricados, a “caixa surrealista” se aproxima da ideia de assemblage e de livro de artista.