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William Forsythe

William Forsythe: encontros entre dança, cinema e artes visuais

O cinema pôde construir precocemente um diálogo com a dança na medida em que, em seus primórdios, buscava mais o registro do movimento do que propriamente contar uma história. Os primeiros filmetes registram ações cotidianas como a rotina de trabalhadores, jogos, acrobacias e gags, entre outras cenas que compunham o espetáculo visual de uma nova linguagem dinâmica. As afinidades entre cinema e dança são muitas, uma vez que compartilham interesses poéticos e práticos, além de referências, e se estruturam por movimentos cotidianos, equilíbrio, ritmo, tempo, espaço e, ainda, pela dinâmica do movimento de um corpo no espaço. Também dialogam muito espontaneamente com outras linguagens: além do som, ambos incorporam elementos plásticos do figurino e da cenografia, além das questões narrativas e espaciais do teatro.

Cinema e dança compartilham ainda um imaginário de modernidade, esse interesse pela renovação da arte, e certo apreço por formas estéticas populares e menos acadêmicas. É isso que fará com que o cinema dos primórdios busque os movimentos da dança não tanto nos palcos, mas em espaços mais informais. Tratava-se de associar o cinema à dança moderna e à dança popular, mas não ao balé clássico, mais restrito e elitizado em uma certa perspectiva.

Conforme Robin Grove, no artigo “The Captive Image: Dance and Film” (1996), uma vez que ambas as artes dependem do movimento, não é de se surpreender que a coexistência delas possa ser observada desde o momento de invenção do cinema no século XIX. Ele acrescenta: “se o cinema ensinou uma ou duas coisas à atuação, talvez a câmera em rotação tenha sido apreendida da fisicalidade dos corpos em movimento” (GROVE, 1996, p. 129).

Quanto à relação entre a dança e as artes plásticas, também podemos destacar episódios que antecedem as experimentações modernas. As composições dos ballets de repertório, precedidas pelo ballet pantomime de Jean-Georges Noverre, no século XVIII, além de aproximarem o Balé da música, viam a dança como quadro, como pintura. Em sua origem, o Balé de Noverre reivindicou a ação do intérprete e defendeu a interação entre as artes para que cada composição fosse criada em sua maestria. Para isso, era preciso associar conhecimentos de desenho e noções de perspectiva à escolha das cores e estampas que compunham os cenários e os figurinos, planejados junto com a música, a dança e a própria coreografia.

Essa estrutura foi potencializada pelos Ballets Russes de Serge Diaghilev, entre os anos 1909 e 1929, que reuniram coreógrafos como Michel Fokine, Vaslav Nijinski e George Balanchine aos cenários realizados por Georges Braque, Pablo Picasso, Giorgio de Chirico e, ainda, composições musicais de Claude Debussy e Igor Stravinsky, para citar apenas alguns nomes. Os resultados das colaborações ora valorizam o espaço, a cena, ora a composição, o corpo.

Quando a dança se expande para fora do seu espaço, sai do palco, e pode ser mostrada na galeria. Assim como quando o cinema assume a galeria como espaço de exibição, esses deslocamentos geram, sobretudo, dois caminhos que me interessa pensar: a instalação e o vídeo, que tornam possível o frequente trânsito das obras entre o palco e o museu.

Mais do que definir suas especificidades, este estudo pretende apontar para algumas possibilidades de leitura da experiência que a dança proporciona ao espectador ao sair do palco e atuar no museu e, ainda, para as formas que tornam o espectador responsável por conferir movimento à obra, dinamizando sua presença diante dela, seja ela interativa ou não, estática ou em movimento.

Forsythe Plat 4

Synchronous Objects, de William Forsythe

William Forsythe é frequentemente reconhecido por sua extensa e expressiva produção em dança. Americano radicado na Alemanha na década de 1970, dirigiu entre 1984 e 2004 o Ballet de Frankfurt, onde, a partir de suas composições, o balé clássico seria revitalizado e ganharia um novo horizonte na contemporaneidade. A expressão “Welcome to what you think you see”, que acompanhou a estreia do trabalho Artfact (1984), é lembrada e repetida ainda hoje, em seus trabalhos mais recentes. Em 2005, fundou a Forsythe Company, onde atuou como diretor artístico de trabalhos – em sua maioria exclusivos para esse elenco – até 2015. Nas últimas décadas, sua produção foi progressivamente extrapolando os palcos e ocupando importantes espaços expositivos como MoMA, Louvre, Tate e Bienal de Veneza, entre outros. Suas obras oscilam entre instalações, vídeos e plataformas on-line, intervenções por vezes interativas que investigam relações espaciais que já estavam presentes em sua produção na dança.

Com Forsythe, os fundamentos do clássico, com suas formas técnicas e metódicas, são reconstruídos e oferecem aos bailarinos ferramentas complexas de composição, como uma espécie de algoritmo complexo que permite resultados estruturados mas, ao mesmo tempo, muito variados. Seu principal interesse se concentra nos princípios organizacionais e na geometria espacial, que explora em suas composições coreográficas e, posteriormente, também nos objetos, instalações e vídeos que cria. Para ele, “o corpo toma sentido como um fragmento motor do espaço” (BOISSEAU, 2011, p. 70).

Seus Choreographic Objects, que, desde os anos 1990, têm sido montados em Bienais, Festivais e outras exposições de arte, pensam a possibilidade de um corpo criar movimentos e elaborar expressões que independem de uma notação prévia, porque são gerados pelo próprio impulso de interagir com os elementos do espaço construído.

Sua produção mais recente apresenta um significativo conjunto de obras desenvolvidas a partir de suas composições coreográficas, associando textos, imagens, objetos e música experimental. Tudo isso é, conforme ele sugere, a materialização de um pensamento coreográfico, uma sugestão para uma possível ação. Ao levar sua experiência com a dança para fora do palco e imprimir um caráter interdisciplinar às suas criações, Forsythe encontrará no vídeo não apenas uma ferramenta de pesquisa e análise dos movimentos, mas uma linguagem fundamental para a apresentação de sua obra.

Forsythe Plat 3
One Flat Thing, Reproduced (Palco)

Thierry de Mey

One Flat Thing, Reproduced (Vídeo de Thierry de Mey)

 

O trabalho One Flat Thing, Reproduced estreou nos palcos em 2000, e recebeu em 2006 uma versão em videodança idealizada pelo diretor Thierry de Mey, que frequentemente colabora com bailarinos e coreógrafos. Registrado com câmeras posicionadas em três pontos de vista distintos e cuidadosamente editado, o vídeo oferece ao público a possibilidade de assistir a esse trabalho de uma forma completamente distinta, se comparada à versão realizada para o palco. Essa composição coreográfica, que oscila entre desordem e simetria, deu origem em 2009 a uma plataforma interativa on-line, resultado de três anos de trabalho colaborativo entre William Forsythe, Jill Johnson, Christopher Roman e Elizabeth Waterhouse, envolvendo ainda uma grande equipe formada por profissionais da dança, designers e cientistas de áreas diversas.

Essa plataforma consiste em um sistema de investigação das formas de construção coreográfica de Forsythe. A partir da coleta de dados espaciais – da coreografia e da performance dos bailarinos –, a equipe se empenhou em descobrir padrões de organização que resultam na criação de interpretações visuais[1], por eles nomeadas “objetos”. Conforme sua apresentação,

este projeto examina as estruturas organizacionais encontradas na dança One Flat Thing, Reproduced de William Forsythe, traduzindo e transformando-as em novos objetos – formas de visualizar dança desenhadas por técnicas de variadas disciplinas[2].

No site Synchronous Objects, que abriga a plataforma, é possível encontrar animações, gráficos, desenhos e vídeos que surgiram dessa experiência. Logo na abertura, a inscrição “Synchronous Objects: Visualizing Choreographic Structure from Dance to Data to Objects[3] anuncia o que iremos encontrar: uma espécie de decupagem das estruturas de movimento que traduzem os modos como Forsythe manifesta um pensamento em formas visuais. Esse resultado é assumido como uma forma de notação coreográfica, um dos eixos que discutiremos a seguir.

 

Forsythe Plataforma

Plataforma on-line de Synchronous Objects for One Flat Thing, Reproduced

 

Os criadores desse trabalho contam que o objetivo inicial era explorar, interpretar e transformar One Flat Thing, Reproduced para levar essa obra a um público maior que o da dança. Eles relatam que “nós podíamos, depois de tudo, ler essa dança”[4]. A constituição da plataforma se utiliza da estrutura do vídeo para decodificar os movimentos em programas de computador:

Nossos animadores geraram coordenadas de localização dos bailarinos por meio do rastreamento de um único ponto demarcado em cada bailarino, em ambas as vistas, superior e frontal, geradas pelo vídeo do trabalho OFTr. Ao combinar as coordenadas de dois pontos de vista, fomos capazes de gerar dados sobre um lugar tridimensional para a localização de cada dançarino, em cada momento da dança. Muitos objetos, incluindo Movement Density, Generative Drawing Tool e Cue Visualize, fazem uso desse tipo de dado especial para visualizar a estrutura coreográfica de OFTr[5].

A composição coreográfica original foi pensada para permanecer aberta à improvisação, modificando-se a cada apresentação. Para a plataforma on-line, uma base de dados foi estruturada a partir dos vídeos realizados no projeto. Conforme a equipe relata nos textos que encontramos vinculados ao site, os objetos não são substitutos da performance ao vivo, mas oferecem alternativas para a compreensão do trabalho de Forsythe, revelando sua estrutura coreográfica.

A construção dos objetos não se preocupou em transcrever a dança tal como ela seria vista no palco, mas em criar uma nova forma de visualização que revela camadas de uma investigação que prioriza a estrutura coreográfica. O projeto partiu de metodologias de diversas áreas como a dança, o design, a ciência da computação, a geografia e a estatística para esboçar cada um desses caminhos.

Como mais um desdobramento desse trabalho, foi desenvolvida posteriormente, entre 2010 e 2013, uma nova plataforma, o Motion Bank, para estimular a criação de “partituras coreográficas digitais”, visando a investigação da prática coreográfica. Também disponível na internet, essa plataforma foi desenvolvida paralelamente a uma série de encontros, palestras e workshops, a fim de difundir e apresentar a iniciativa a pesquisadores, designers, artistas e educadores que tivessem interesse em pesquisar a criação de partituras.

Synchronous Objects for One Flat Thing, Reproduced funcionou como um projeto-piloto para esse processo de pesquisa em composição coreográfica e criação de movimento baseado em ferramentas de documentação (notação) e reconstrução (arquivos). Nesses anos, os coreógrafos Deborah Hay, Jonathan Burrows, Matteo Fargion, Bebe Miller e Thomas Hauert foram convidados a integrar o projeto Motion Bank, compartilhando com um público amplo documentos e análises de suas ideias e processos coreográficos.

A partir dessa e de outras experiências de Forsythe, sintetizamos em três eixos as questões trazidas pelo processo de abertura da dança e, em particular, de sua aproximação à linguagem do cinema conforme propõe este estudo.

 

Trajeto (notação coreográfica)

Notação coreográfica é um sistema de tradução do movimento para o plano bidimensional, uma escrita ou registro decodificável que almeja permitir a recuperação de movimentos da dança para posterior execução, reinterpretação ou análise. Guardadas as devidas especificidades, é algo mais ou menos equivalente à partitura musical. Porém, na dança não existe um sistema convencional, o que amplia a dificuldade de universalizá-la, uma vez que demanda especialistas em cada vocabulário para compreender ou decifrar seus códigos.

Muitos estudos da dança podem ser encontrados na Europa dos séculos XVI e XVII, porém, apenas no século XVIII é que tem origem o primeiro sistema de notação coreográfica com Raoul Feuillet, chamado Chorégraphie, ou l'art de décrire la danse par caractères, figures et signes démonstratifs. É importante ressaltar que o termo “coreografia” era empregado de maneira distinta e designava o próprio sistema de notação. Deriva da palavra grega coreia que, na Antiguidade, definia uma dança realizada em círculo acompanhada do canto.

Raoul Feuillet, em 1700, trabalhando para a corte de Luís XIV, se apropriaria da palavra para descrever o conjunto de códigos gráficos que na época transcreviam o repertório de movimentos de uma dança, utilizando portanto a definição chorégraphie para essa escritura. A partir de então, aquele que escrevesse para a dança seria denominado como choréographeur. Nesse momento, o responsável por criar a dança recebia o nome de maître à danser, “mestre da dança”, ou “mestre do ballet”, como eventualmente se usa ainda hoje nas escolas tradicionais. Apenas com a dança moderna coreógrafo passaria a se referir àquele que cria os movimentos em dança. Coreografia designaria não mais a notação, mas o conjunto mesmo de movimentos a serem executados.

Inicialmente, as notações foram desenvolvidas como forma de comunicar uma sequência de movimentos. Depois, passaram também a ser uma tentativa de preservar e eternizar uma arte efêmera, que tem a própria duração do gesto e depois se esvai. Passaram a existir, portanto, como uma alternativa para que as performances pudessem ser reproduzidas e reinterpretadas no futuro, como espécies de scripts criados e lidos para reconstruir movimentos e suas qualidades.

Como a ideia de notação em dança tende a ser ampla, também poderiam ser considerados os materiais complementares das apresentações, sejam eles fôlderes, programas e fotografias, ou, ainda, críticas, reportagens e objetos armazenados como rastros de performance, figurinos, adereços cênicos e outros. Com a finalidade de armazenar uma informação do que foi coreografado, recorre-se cada vez mais ao vídeo e aos sistemas eletrônicos de arquivamento e edição. Ainda assim, todo esse arsenal de informações resulta em leituras muitas vezes arbitrárias, no sentido de não oferecerem um registro fiel da performance, que possibilitaria a reprodução da obra como tal, livre de interpretações.

De um lado, a ausência de um sistema convencional único permite tomar como notação essa ampla gama de materiais. De outro, a complexidade desse acervo acaba por exigir uma distinção entre o que são as indicações feitas por um criador para a construção de uma coreografia e as referências deixadas para futuros debates e pesquisas sobre tal obra.

Desse modo, o vídeo se torna a forma mais frequente de documentar e guardar o movimento como registro para uma possível consulta. Mas os coreógrafos seguirão recorrendo a formas mais sintéticas de notação – textos, esboços, storyboards – como ferramentas para a composição coreográfica. Essas ferramentas colaboram com a elaboração de suas linguagens, funcionam como gatilhos para a criação de seus movimentos organizados numa espécie de roteiro que pode ser recombinado: direção do movimento, parte do corpo a executá-lo, nível de realização e duração do movimento. A notação hoje, muitas vezes, serve como ferramenta na elaboração dos trajetos.

Posteriormente, o dançarino e coreógrafo Rudof Laban desenvolveria o sistema de notação Kinetographie (1928), conhecido nos Estados Unidos como Labanotation. Esse sistema abrange quatro dimensões na sua escritura: o corpo, o esforço, a forma e o espaço. Antes de Laban as notações eram escritas do ponto de vista da plateia e não conforme a experiência dos bailarinos, o que seria uma grande contribuição para outros sistemas desenvolvidos em seguida. Ainda no contexto da dança moderna, foram desenvolvidos outros sistemas, entre eles o Benesh Movement Notation (1955) que serve primordialmente ao balé clássico, e o Sutton Movement Shorthand (1951), também utilizado ainda hoje.

O Dance Notation Bureau, organização sem fins lucrativos, foi criado em 1940, em Nova York, para preservar trabalhos em dança por meio de notações, sobretudo a partir da Labanotation. A organização possui hoje cerca de 700 títulos, além de fotografias, vídeos, programas etc., o que ainda representa um número significativamente pequeno se comparado à quantidade de produções em dança existentes.

Nos processos de abertura das experiências com a dança almejados por William Forsythe, acaba-se por levar a notação a uma outra instância e cria-se a possibilidade de, ela própria, existir como obra. Independente do propósito de ser uma escritura com a finalidade de ser retomada ou estudada, ela se emancipa e não mais depende da execução. Oferece a possibilidade de produzir um mapeamento dos pontos estabelecidos tanto para a execução de movimentos pelos bailarinos em seus espetáculos como para existirem como objetos, da forma como podemos observar em Synchronous Objects. Uma ideia de notação baseada nos princípios da geometria assume a forma de uma cartografia que orienta percursos do espectador no espaço, estimulando a criação de trajetos e formas específicas de contato com a obra (Choreographic Objects).

Se o vídeo já permeava os acervos compostos pelos sistemas de notação da dança contemporânea, nessa perspectiva em que atua Forsythe ele será portanto um dos elementos-chave que permitirá propor a notação como obra.

 

Espacialidade (ocupação)

A noção de instalação surge nas artes visuais em meados dos anos 1960, embora possamos olhar para obras realizadas antes desse período a partir desse mesmo conceito. Uma instalação pressupõe a formação de uma estrutura que possa ser atravessada pelo público. Ou seja, a relação da forma criada com o espaço em que se insere – assim como os modos como o espectador pode se colocar ou atravessar esse espaço – é uma questão essencial colocada pela obra instalativa. A instalação modifica o espaço em que se insere estabelecendo uma relação com a arquitetura e as escalas do ambiente e, por vezes, depende de um local específico para acontecer (site-specific), um lugar outro que não o espaço da galeria. Uma instalação pode ainda incorporar outras linguagens, o que ocorre com frequência quando se alia aos multimeios (tornando-se, por exemplo, videoinstalação ou instalação sonora).

A dança é, em sua tradição acadêmica, uma arte bastante consciente do espaço que ocupa (o palco). Isso ainda é insuficiente para reduzi-la de modo generalista à ideia de instalação, pois não há para o espectador outro lugar que não o de uma plateia estática. A dança contemporânea repensa sua espacialidade ao levar com frequência o bailarino na direção da plateia e a atravessar a boca de cena, a convidar a plateia para subir ao palco ou, ainda, a ocupar lugares que não são tradicionalmente destinados a ela, trocando o teatro pela rua, a galeria ou outros lugares de circulação corriqueira. O desejo de levar em conta o espaço que o público ocupa faz com que, aos poucos, seu corpo e seus eventuais movimentos sejam pensados como partes da obra.

Tradicionalmente, o lugar do espectador do cinema, assim como na dança, tendia a ser passivo. Ao se abrir para um diálogo com as artes plásticas, o cinema começa a pensar em outras formas de ocupação do espaço pelo público. Nos textos dos teóricos Philippe Dubois e Dominique Païni encontramos a definição de “efeito cinema” e “cinema de exposição”. O primeiro termo nos ajuda a entender o movimento que leva os principais museus de arte a incorporar coleções de filmes, salas de projeção e, sobretudo, obras que se constroem a partir da matéria do cinema para suas programações. O segundo refere-se aos artistas-cineastas que alargam as propriedades do cinema ao transportá-lo para o museu e que, ao fazê-lo, oferecem um outro espaço para o espectador:

[...] ora utilizam diretamente o material fílmico em sua obra, ora inventam formas de apresentação que fazem pensar ou se inspiram em efeitos ou formas cinematográficas, impulsionando com certo vigor o ritual clássico de recepção do filme em uma sala: (re)inventa-se a tela múltipla (duplicada, triplicada, em série, em ângulo, paralela, em retroprojeção etc.), projeta-se na luz, em objetos que não são meras superfícies planas, coloca-se o filme em looping, rodando ao infinito, tenta-se solucionar problemas sonoros correlativos (fones, isolamentos etc.), experimenta-se novas posturas espectatoriais (de pé, sentado, deitado, em movimento), brinca-se com a duração da projeção (breve, muito breve, muito longa, infinita). Etc. etc. (DUBOIS, 2003, p. 5).

O trabalho de William Forsythe explora esse espaço ampliado que é dado ao espectador da dança. Beneficia-se também do modo como o cinema constrói, por seus próprios caminhos, uma forte afinidade com a galeria, sobretudo com o espaço instalativo.

Seus Choreographic Objects são justamente pensados para oferecer um encontro diferente com o espaço, uma fisicalidade distinta a cada projeto. Sua intenção é propor ao espectador um modo ativo de se relacionar com a obra de arte e, consequentemente, entender por meio dela o espaço que ocupa. Para ele, cada indivíduo deixa de ser espectador e se torna participante.

O que vemos em alguns casos, como em Nowhere and Everywhere at the Same Time (2005-2013), é a dança comunicando-se com as artes visuais para propor uma instalação que convida o público a se movimentar dentro dela. Em outros, como City of Abstracts (2001), temos uma obra que requisita o vídeo como estratégia coreográfica e cria nessa proposta uma forma de tornar a instalação coreográfica.

No primeiro exemplo, pêndulos de ímãs com formas cônicas nas pontas são pendurados ao teto por fios, explorando potenciais cinéticos no espaço. As pessoas que circulam orientam-se pelo movimento de atração e repulsa dos ímãs, criando espaços por onde podem transitar. Assim como confere uma dinâmica aos trajetos marcados pelos desvios, o público, seja ele formado por bailarinos ou não, passa a atuar de forma coreográfica.

No segundo exemplo, os visitantes têm suas imagens projetadas em uma grande tela, às vezes distorcidas, esticadas e espiraladas, e com um pequeno atraso com relação a sua captação. Ao perceber que aparece nessa projeção, o público começa a produzir intencionalmente seus movimentos, construindo “uma espécie de pas de deux consigo mesmo” (FORSYTHE, 2009).

Os objetos construídos potencializam essa relação cinética, não simplesmente por se tratar de instalações, mas, pela ideia de convocar um movimento do espectador para a ativação efetiva da obra com o seu corpo. Conforme uma declaração de Forsythe reforça, esse trabalho espera que “o público, ao se confrontar com os objetos-obstáculos, seja obrigado a inventar gestos e reações” (ROSENTHAL, 2011, p. 70, tradução nossa).

Para ele, a elaboração de uma instalação se comunica prioritariamente com a construção de uma obra que gere movimento na relação obra-espectador: “o objeto não está tanto ali para ser visto como está para ser usado”. Para que sua proposta fique mais clara, é preciso entender a noção de coreografia em Forsythe, que é, à primeira vista, um tanto complexa, mas que se mostra acessível na medida em que nos aproximamos de seus trabalhos, no contato com as imagens ou, quando possível, na oportunidade de experienciá-las ao vivo.

Uma distinção precisa ser relembrada: coreografia e dança, que são frequentemente tomadas como sinônimos, se assumem ali como duas práticas distintas, que podem existir independentes uma da outra. Como diz Forsythe: “coreografia tem a ver com engendrar, ordenar e compor movimento; tem a ver com organizar corpos no espaço, ou organizar com outros corpos, ou um corpo com outros corpos em um ambiente que é organizado” (ROSENTHAL, 2011, p. 105, tradução nossa).

Essa preocupação não é exclusiva aos trabalhos de Forsythe, e encontra pares em muitas outras experiências das artes visuais, do vídeo e da dança, com aproximações mútuas que se tornam cada vez mais frequentes. Temos nos últimos cinco anos importantes exposições que assumem essa sobreposição. É o caso de Danser sa Vie, realizada no Centre Georges Pompidou (2011-2012), que enfatiza as relações entre dança e artes visuais, entre os anos 1900 e 2000, recorrendo ao cinema e ao vídeo ao longo de toda a exposição. Ou, ainda, a exposição Move: Choreographing You, que ocorreu na Hayward Gallery de Londres (2010-2011), com um recorte que se inicia nos anos 1960. Trata-se de grandes referências para pensar a coexistência dessas artes, reflexos do interesse de discutir suas contribuições mútuas.

 

Forsythe Pendulo
Nowhere and Everywhere at the Same Time (2005-2013)

 

City of Abst
City of Abstracts (2001)

 

Movimento (obra-espectador)

Talvez já tenha se tornado relativamente corriqueiro pensar a participação do público na constituição da obra de arte: um público que “veste” a obra e ativa de fato os trabalhos, como foi proposto por Hélio Oiticica e Lygia Clark. Há ainda, como temos visto nas últimas décadas, as experiências das chamadas artes digitais, artes-mídias e hipermídias, que exploram os potenciais interativos das interfaces eletrônicas. Porém, é relevante pensar que a interação com a obra e sua consequente ação são anteriores a isso, e se devem à experiência do espectador ao se confrontar com uma imagem, mesmo que ela seja estática. Toda fruição exige uma ação, uma intenção, uma dinâmica, uma colocação em movimento.

Com formação em dança e artes visuais, tenho me dedicado a observar e refletir sobre a relação entre público e obra, entendendo essa dinâmica como algo que ultrapassa a percepção visual e envolve todo um corpo que projeta seus sentidos e se relaciona com esse outro corpo, a obra de arte. A noção de espectador ativo é abordada por diversos autores, entre eles Alfredo Bosi, que, em seu artigo “Fenomenologia do olhar” apresenta uma distinção entre ver e olhar. Enquanto o primeiro verbo define a captação involuntária de informações, o “ver como receber”, como pura passividade, o segundo se refere a uma busca, algo que estabelece uma relação ativa com o mundo. Para Bosi, o olhar é um dirigir a mente que está enraizado na corporeidade, um “ato de intencionalidade” que, portanto, define a essência dos atos humanos. O olhar não é, portanto, apenas captação mecânica, ele conhece sentindo, desejando ou temendo, e sente reconhecendo, é linguagem da vontade e da força antes de ser órgão do conhecimento (BOSI, 1988, p. 78).

A prática do olhar se constrói sempre de modo muito singular, a partir de dinâmicas complexas que envolvem uma dimensão cultural, afetiva e corporal:

A percepção do outro depende da leitura dos seus fenômenos expressivos, dos quais o olhar é o mais prenhe de significações. Tomando a analogia ao mundo físico, o olhar não seria apenas comparável à luz que entra e sai pelas pupilas como sensação e impressão, mas teria também propriedades dinâmicas de energia e calor graças ao seu enraizamento nos afetos e na vontade. O olhar não é apenas agudo, ele é intenso e ardente. O olhar não é só clarividente, é também desejoso, apaixonado (BOSI, 1988, p. 77).

Há uma temporalidade na relação obra-espectador que está na base da experiência com as diversas artes, algo nem sempre consciente, mas que gera expectativas que fundamentam a fruição. Conferir movimento à obra de arte é algo que pode ser visto como uma herança cinematográfica, uma vez que se trata de uma impressão do movimento que é causada no espectador ao ligar os fotogramas estáticos numa ilusão de continuidade temporal.

Em uma passagem do livro Du Monde et du mouvement des imagens, o pensador Jean-Louis Schefer resgata a crítica feita pelo filósofo Denis Diderot aos salões de arte do século XVIII para justificar o movimento que emana do gesto e da materialidade na pintura. Conforme Diderot, enquanto um espectador olha para o quadro e caminha, variando sua distância, os ângulos e as escalas também são variados. As imagens seriam animadas devido a um “aparelho imaginário” que o espectador porta consigo; um aparelho óptico que fazia o tempo rodar antes mesmo do cinema. Para Schefer, então, seria o espectador a conferir movimento à obra ao movimentar-se diante dela:

um tal espectador toma a pintura dentro do romance do qual é capaz. Esse romance não solicita nenhum discurso, nenhum roteiro fora de seu esquema: ele solicita um aparelho ótico extraordinário que é constituído apenas pela mobilidade do espectador [...]. Esse dispositivo virtual de movimentos que se torna corpo tem, em Diderot, uma consequência: o amador olha os quadros se deslocando, isto é, variando as distâncias e os ângulos de visão. Como a imagem se anima? Antes de tudo, pela ação de uma aparelhagem imaginária (estere­oscopia, travelling, zoom, profundidade de campo) (SCHEFER, 1997, p. 33).

A partir dessa colocação, já entenderíamos o movimento como deslocamento no espaço, algo que se define por uma passagem da potência ao ato. Já na perspectiva estudada pela física, o movimento sempre está em relação a um outro corpo, a um referencial adotado, de forma que os dois corpos estarão sempre em movimento um em relação ao outro (ainda que, neste caso, uma pintura possa parecer completamente estática).

Trata-se aqui, porém, de atentar para um movimento provocado no espectador, que pode extrapolar o circuito que este percorre caminhando diante de uma obra, e cabe evocar a possibilidade de pensar esse movimento do espectador como algo que pode ter sido provocado pela obra.

A série de obras intitulada Choreographic Objects, de William Forsythe, tende a provocar movimentos às vezes um tanto mais performáticos, se assim eu puder chamá-los. Em obras como The Fact that Matter (2009), em que o visitante pode escalar argolas penduradas, ou em Scattered Crowd (2002), em que flutua deslocando balões pelo espaço, com som constante de fundo de Ekkehard Ehlers, isso se torna um tanto mais evidente.

De todo modo, um convite é feito para que o corpo não só habite um determinado espaço, mas para que possa reagir à obra e gerar movimento a partir de uma relação de reciprocidade entre corpos: o da obra, o do público. O movimento acontece ainda que o espectador não tenha que tocar em algo, ou acionar um botão, como veríamos em obras definidas como arte interativa propriamente dita. O que interessa aqui é pensar uma sutileza: esse olhar do espectador que implica todo o corpo sugere a possibilidade de explorar não apenas uma percepção de ordem visual, mas também de aceitar o convite do movimento, por si mesmo, no espaço expositivo

Scattered

The Fact that Matter (2009)                                                                                                               Scattered Crowd (2002)

 

 

 



[1] <http://synchronousobjects.osu.edu/assets/objects/introduction/danceDataObjectEssays.pdf>. Tradução nossa. Acesso em: 31 jul. 2017.

[2] Definição que consta na plataforma Synchronous Objects for One Flat Thing, Reproduced. Tradução nossa. Disponível em: <http://synchronousobjects.osu.edu>. Acesso em: 31 jul. 2017.

[3] Ibidem.

[4] <http://synchronousobjects.osu.edu/assets/objects/introduction/danceDataObjectEssays.pdf>. Tradução nossa. Acesso em: 31 jul. 2017.

[5] Ibidem.