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Lisette Lagnado

Anunciada como curadora para a Bienal de São Paulo, edição de 2006, Lisette Lagnado, gentilmente concordou em estabelecer uma conversa com o Fórum Permanente ao longo dos meses seguintes. (Novembro/2005)

Fórum Permanente: O que a Bienal representa aqui e internacionalmente? Para quem fazemos a Bienal?

Lisette Lagnado: É uma pergunta dupla que merece respostas distintas para cada parte. A sensação que eu tenho, fazendo "studio visits" com freqüência pelo Brasil, é que a cena artística local/nacional tem demonstrado um desinteresse quase total em relação a questões políticas: qual o significado de viver protegido por grades e câmeras de vigilância? como agir e reagir contra processos selvagens de crescimento urbano? quais os aspectos residuais de acompanhar as desilusões relacionadas à descoberta da corrupção em torno de Lula? São apenas alguns exemplos para afirmar que, em qualquer país do mundo, tais preocupações teriam uma certa ressonância na prática dos artistas e não ficariam reservadas a uma discussão intelectual.

Neste sentido, há um primeiro descompasso a ser diagnosticado. Entretanto, dada a maior "politização" do ambiente artístico estrangeiro, este descompasso contribuiu para que obras com conteúdos extra-estéticos pudessem ter uma visibilidade internacional: Adriana Varejão e Marepe talvez sejam os dois maiores emblemas dessa rápida "apropriação" de uma produção local, resultando em sucessos de exposição.

Ora, a Bienal de São Paulo sempre representou, para os artistas nacionais, uma plataforma de visibilidade internacional, dada a sua enorme visitação. E, com certeza, os visitantes estrangeiros que se submetem a cerca de 12 horas de viagem para chegar ao Brasil querem ver algo que possa lhes intrigar (tanto da parte do Brasil, como da América do Sul e dos outros continentes).

Em outras palavras: se o curador da Bienal de São Paulo trouxer nomes de alta circulação no circuito internacional, estará fadado a comentários do tipo "déjà vu" etc. Por uma razão óbvia de localização geográfica, as distâncias mais amenas que separam as Bienais de Veneza, Istambul, Berlim, Liverpool, Lyon e Manifesta (para citar apenas acontecimentos com uma regularidade assegurada) fazem com que em dois anos um artista já possa ter um currículo acelerado.

O método adotado na 27a BSP, baseado em "research trips" e não mais em "representações nacionais", poderá eventualmente proporcionar visibilidade a nomes de menor evidência. Não se pode esquecer que a presente Bienal parte de um pré-projeto conceitual e que a escolha dos artistas deverá corresponder a uma adequação dentro das questões levantadas pelo título "Como viver junto".

Isto significa que a 27a. Bienal será feita para debater os vários aspectos do "como" as pessoas constróem seu espaço social (projetos construtivos) e "como" colocam em prática relações "comunitárias" (programas para a vida).

Mas o maior problema está no segundo descompasso e este, infelizmente, só poderá ser "curado" a médio ou longo prazo. Trata-se do descompasso da classe artística brasileira em relação ao conhecimento da produção contemporânea internacional. Há uma ausência brutal de conhecimento dos artistas (europeus, norte-americanos, orientais, africanos - e quanto mais ex-cêntrico, mais desconhecido) que, no entanto, as mostras de porte internacional já souberam absorver.

Não saberia "interpretar" se esta falta de conhecimento é fruto de dificuldades reais de aceder a informações - as viagens continuam sendo o melhor meio de acesso. Por vezes, conversando com alguns críticos brasileiros, suspeito que este desinteresse seja deliberado. Isto é, traduz uma desconfiança voluntária do "estrangeiro". Nos últimos 25 anos, talvez seja possível afirmar que nunca fomos tão provincianos. Nunca formos tão enraigados em valores tradicionais de gênero e de categorias estéticas, malgrado algumas tentativas ainda solitárias.

Neste sentido, a pergunta "para quem fazemos a Bienal" é absolutamente necessária para uma tomada de posição: é preciso voltar a trazer nomes significativos (como naquela Bienal que convidou Anselm Kiefer na hora certa) para termos um olho mais intruído. Há um risco a correr: a platéia internacional poderá invocar a falta de originalidade, denunciando que a lista está chovendo no molhado. Mas o terreno "molhado" para "eles", não é o mesmo que o nosso.

Trata-se de fazer um ajuste muito fino entre forças opostas: a expectativa internacional em relação à Bienal de São Paulo e a necessidade, quase pedagógica, de recuperar um atraso de informação que só vem lesando a consistência do debate local.

Fórum Permanente: Pela ótica da crítica institucional, uma vez que você prentende embasar parte significativa de sua curadoria nas proposições de Oiticica e de Marcel Broodthaers, seria hoje possível e até desejável promover uma meta-crítica a própria Bienal de São Paulo? Ou seja, será que vamos ter nessa edição da Bienal a possibilidade de debater e refletir sobre os caminhos e o futuro dessa que é uma das principais bienais internacionais em nosso planeta? Como isso pode ser operacionalizado?

Lisette Lagnado: Eu não colocaria Hélio Oiticica dentro da chamada "crítica às instituições". O fato de ele ter paulatinamente se retirado do "mercado" (se é que existia um "mercado" nos anos 1960-70) é de outra natureza. Broodthaers, sim, acho que merece ser compreendido dentro desta chave. Aliás, europeus e norte-americanos, de forma geral, Fluxus, Ben Vautier e Smithson, se encaixariam nesta crítica. Oiticica já é um caso à parte. Ele é um "artista-construtor", cujo ápice é Tropicália, e um artista que escapa a qualquer tentativa de categorização, quando se instala em Nova York.

Oiticica está presente na maneira como eu concebi e organizei a 27a. Bienal de São Paulo, ou seja, montei sete blocos e gostaria que eles se imiscuissem entre si, que não houvesse hierarquia, que fosse um trabalho coletivo entre todos os curadores chamados a participar. Não me parece necessário ter obras de Oiticica. Ele está mais do que visto, tanto aqui como no Exterior.

Já não é o caso de Broodthaers, artista cujas operações conceituais são usadas por vários artistas contemporâneos sem uma devida atenção à matriz. E trata-se uma matriz muito rica! Está na hora de ser apresentado - dentro de uma linhagem que vem de Duchamp, mas que interpela o museu com maior precisão. Toda Bienal tem, digamos, seus "artistas da hora". Compreendo com isto saber pegar o espírito que está no ar e traduzí-lo. Houve uma época em que teria sido ultra-necessário fazer uma bela mostra de Eva Hesse pois todo mundo aqui estava fazendo "evahesses" e ninguém atentava para especificidades desta obra, além de uma semelhança formal. Passamos desta fase. Nosso paradigma hoje se encontra, segundo meu diagnóstico visitando ateliês, entre Broodthaers e Matta-Clark.

Não pretendo promover uma meta-crítica da Bienal. Seria redundante. Já o estou fazendo, eliminando "representações nacionais", acatando o fim das "salas históricas", convidando artistas críticos. Pelo fato de iniciar o debate da Bienal já em janeiro com o primeiro Seminário internacional e alimentar este debate com mais seis seminários ao longo de 2006, isto é, extrapolando os dois meses de exposição. Pelo fato de propor residências no Brasil e de trazer para cá artistas para produzir uma obra inédita capaz de conjugar seus projetos pessoais com demandas locais (meu sonho é que estes artistas possam estabelecer trocas em locais justamente carentes de instituições e que possam deixar uma marca de sua vinda aqui, em um contexto extra-Bienal).

Minha própria ação curatorial é crítica em si e deverá ser julgada como tal: será que conseguirei transmitir, pelas escolhas das obras e pela montagem, uma "outra" possibilidade de Bienal? Vocês deverão ser este termômetro, uma vez abertas as portas para a visitação.

 

Acompanhe aqui a progressão dessa entrevista concedida por Lisette Lagnado ao Fórum Permanente.


Lisette Lagnado foi mediadora da mesa "O Artista e a Instituição" da Jornada de debates com artistas e comissários da 26a Bienal de São Paulo, organizada em 2004 pelo Fórum Permanente. Leia como foi a discussão.