Você está aqui: Página Inicial / Revista / Número 0 / Textos / A Hora do Entusiasmo: os museus espanhóis nas últimas décadas do século XX

A Hora do Entusiasmo: os museus espanhóis nas últimas décadas do século XX

Maria Bolaños relata a recuperação dos museus espanhóis após a queda da ditadura franquista, a formação de público para arte contemporânea e o relacionamento da arte com o mercado, espelhado pelo sucesso da ARCO e pela franquia do Guggenheim em Bilbao. Aqui você encontra o texto original e sua tradução para o português.

Desde o começo da década de setenta, fazendo pouco caso dos obstáculos com que a já agonizante ditadura brecava o desejo cada vez mais amplo e firme por liberdade, a sociedade espanhola vinha preparando o caminho da grande transformação cultural que se aproximava, adquirindo novos hábitos e estabelecendo novas reivindicações. Ainda que com lentidão e mais esmaecidas, as idéias que circulam pela comunidade artística internacional e os debates teóricos sobre arte e sobre a função dos museus penetram nos setores culturais espanhóis mais informados. Fatos tais como a difusão da arte pelos meios de comunicação – com seções semanais nos periódicos, revistas especializadas ou programas de televisão --, a realização de publicações sobre temas artísticos (Alianza Forma, Gustavo Gili ou La balsa de la Medusa), a difusão de revistas culturais bem cuidadas de breve duração ( Triunfo, El viejo topo, Poesía, Lápiz ou El paseante), a emergência de uma nova geração de artistas espanhóis de qualidade notável, ou o afã por viagens ao exterior, rapidamente convertido em um hábito da classe média urbana e economicamente ativa, esses acontecimentos, afirmo, elevaram consideravelmente o nível das aspirações culturais da sociedade espanhola, que foi adquirindo um ritmo normal, quase sincronizado com o ritmo europeu, como era evidente, entre outros novos costumes, na regularidade e na avidez com que o público lotava as salas de exposições de galerias e museus.

E embora nos anos que se seguiram à morte do general Franco, em 1975, tenha-se constatado o verdadeiro alcance do isolamento cultural no qual o franquismo submergira o país e o atraso no âmbito do pensamento, na ciência e na arte, que agora se evidenciavam em toda sua humilhante realidade, o desejo de recobrar rapidamente o terreno perdido, de recobrar a normalidade e a sincronia com o resto da Europa, manteve o país imerso no próprio processo e na construção, desdes os alicerces, de uma nova ordem cultural, empreendida, apesar de muitas limitações, com generosidade, entusiasmo e espírito inovador. Basta recordar, para ilustrar o ambiente que reinava nesses momentos, com que expectativa acompanhou-se as negociações pela vinda do quadro mais importante do século, o Guernica de Picasso, que estava no Moma, um ato de efeito simbólico que representava para os espanhóis de então um fim definitivo à guerra e a reconciliação definitiva.

Assim, pode-se dizer que os últimos trinta anos da história espanhola dos museus, entre 1975 e 2005, enquadram-se em dois acontecimentos que definem o marco geral de sua evolução: em primeiro lugar, a coincidência com o processo de eliminação das estruturas políticas e culturais da ditadura e a implantação de um regime democrático desde 1975. Em segundo lugar, o auge espetacular das artes e, por conseguinte, dos museus, que passam a desempenhar então um papel sem precedentes na história cultural espanhola.

1. Em relação aos fundamentos de um novo regime político, é a Constituição que permitirá uma grande transformação nas frágeis e paralisadas instituições culturais espanholas, pois concede uma atenção especial ao amparo à cultura ao oficializar grandes responsabilidades do estado nessa área, o que alinha a Espanha a uma tradição intervencionista, como na França, Itália, Potugal ou Bélgica, que assume, em todos os níveis da admisnistração estatal, grandes responsabilidades na adoção de iniciativas públicas.

Além disso, outorga à cultura uma autonomia frente ao terreno da educação, tal como já se havia estabelecido nos anos cinquenta nas outras democracias européias, e como um instrumento de compensação das desigualdades educativas e sociais. Conscientes da conveniência de separar o sistema educativo, que se democratiza e se universaliza para toda a população em idade escolar, do fenômeno mais amplo e complexo da cultura, a democracia espanhola “desescolariza” a cultura, como algo diferente do complemento pedagógico que era característico antes da guerra.

O papel do estado na vida cultural se articula sobre alguns princípios básicos: a defesa de direitos culturais fundamentais – liberdade de expressão, de informação, de criação artística – sobre a base da neutralidade do estado, o direito de acesso a cultura e, por último, a instauração de um ordenamento jurídico e político descentralizado, onde os diferentes níveis administrativos encontram uma esfera específica de atuação territorial. Este último aspecto não representa apenas uma novidade organizacional, mas também de princípios, pois trata de criar um equilíbrio político que estruture definitivamente as nacionalidades, constituindo um dos principais ganhos do estado democrático e , no contexto da época, uma decisão de grande audácia, levando-se em conta as tensões que o problema regional havia criado na história espanhola recente. Neste âmbito da cultura patrimonial, a constituição fixa um regime de competências convergentes – não isento de mecanismos confusos, fruto da estratégia de consenso sobre a qual deu-se o processo constitucional --, pela qual os governos regionais assumem poderes naqueles museus (e também bibliotecas e conservatórios de música) que sejam de interesse para a respectiva comunidade autônoma, com o que se introduz a descentralização tão reivindicada, enquanto que, em atenção aos interesses gerais, reserva como competência exclusiva do estado a defesa do patrimônio cultural, artístico e monumental espanhol, assim como dos museus, bilbiotecas e arquivos estatais, sem o risco de que essas gestões possam recair nas administrações autônomas.

O processo de descentralização cultural crescente se completará, anos depois, ao estender-se aos níveis inferiores da regionalidade, outorgando competências às administrações locais em matéria de patrimônio, atividades e instalações culturais e lazer, incluída a obrigatoriedade de criar uma rede municipal de bibliotecas públicas. Este passo legal referenda um processo iniciado em 1979 (quando as primeiras eleições democráticas outorgam o poder municipal amplamente aos partidos socialistas e comunistas), pelo qual as prefeituras (ayuntamentos) haviam se convertido em centros de poder menores, mas de enorme dinamismo e com uma notável flexibilidade para responder a demandas sociais no âmbito da cultura. Embora sua tarefa tenha-se caracterizado pelo espontaneismo militante, pelo amálgama populista entre lazer e cultura, por uma forte politização e inexperiência profissional, todas características muito próprias deste ambiente de entusiasmo festivo de transição, este nível local da cultura irá se propagar nos anos seguintes em direção a um trabalho progressivamente mais rigoroso e menos confuso, mais de acordo com o novo contexto europeu no qual as cidades alcançam um papel muito relevante como espaços culturais eficientes no horizonte do fim do século.

Mas o primeiro grande regulamento jurídico sobre o patrimônio só vai acontecer muitos anos mais tarde, em 1985, data em que, sendo o ministro da cultura o socialista Javier Solana, é promulgada a Lei do Patrimônio Histórico Espanhol que tratava de eliminar a legislação existente nesse âmbito, muito fragmentada, incoerente e dispersa, na qual viam-se sobrepostas leis incompletas, às vezes incompatíveis umas com as outras, que assim ocasionavam constantes litígios e confusões.

O novo texto legal consagra um novo conceito de museu, em função de seu serviço à sociedade e da incorporação dos princípios museológicos assumidos internacionalmente; com ele grandes lacunas são cobertas, em especial no que se refere a bens móveis, que derivam da própria ampliação do conceito de patrimônio, e é facilitada a adaptação à legislação internacional, muito ampla desde os anos setenta, dando primazia não só à tutela sobre o patrimônio cultural nacional, mas também sobre toda a sua natureza coletiva, à função social que estes bens culturais estão chamados a desempenhar, ao direito inalienável de acesso a eles, e aos incentivos que sua conservação merece.

Para isso, incorpora um novo conceito, o de bem de interesse cultural, que inclui todas as áreas da cultura, não somente as tradicionais como arquelogia, história da arte, mas também as de valor etnográfico, científico e técnico, e que é aplicado àqueles bens que, independentemente de seu proprietário, estão sujeitos a proteção estatal em razão de sua utilidade social e de seu desfrute público. Por último, a contribuição da lei se concretiza em outros dois aspectos inovadores, que são a proposta de medidas fiscais que estimulem o colecionismo e proteção patrimonial, e o estabelecimento de uma alíquota de 1% que se destinará a projetos culturais e que será descontada de todo orçamento de obras públicas da administração do estado que exceda cem milhões (lei que revelerá, na prática, várias vias de escape).

Todo esse processo de transição a um estado democrático se caracterizou, em linhas gerais, pela ausência de dramaticidade, pela moderação e normalidade com que se produziu. Os anos seguintes a 1975 foram vividos com um entusiasmo considerável e boa-fé, nos quais a explosão de atividades culturais, a ressonância dos fenômenos artísticos, o impulso em conjunto das instâncias oficiais eram dados novos e muito eloquentes. A isso, deve-se contrapor matizes menos afáveis, como a ausência de uma tradição perdida, a inexperiência dos profissionais e técnicos, a falta de redes sociais estruturadas e rígidas, a desestruturação das iniciativas públicas e uma notável tendência aos esquematismos culturais, não isentos de demagogia.

Uma vez cumprido o período de institucionalização legal, e desde a década de 1980, a normalização da cultura permitui deixar para trás a ingenuidade entusiasta da transição e ingressar numa nova etapa, mais madura, mas muito complexa, em que se misturam elementos muitos diferentes: a euforia de uma boa conjuntura econômica, o alinhamento com o resto dos países europeus e a consequente internacionalização da cultura, a ilusão de uma modernidade urbana e um auge nas artes nunca antes conhecido.

2. No campo das realizações, a política museológica centrou-se em um plano de renovação e modernização muito intenso. Orientou-se basicamente à melhora dos serviços existentes, à criação de infra-estruturas, ao aprimoramento de pessoal, e à ação educativa. Esses campos de atuação, todavia, foram cobertos de maneira desigual, conferindo-se uma atenção preferencial aos dois primeiros, com ritmos de investimento crescente e sendo mais modesta no tocante aos recursos humanos e ao trabalho de difusão, questões que exigem, além de investimentos, um nível de formação de profissionais que, no caso espanhol, manifesta-se muito deficiente.

Nos anos oitenta acontece um plano de renovação de museus, sob os seguintes critérios: restauração de imóveis históricos ou reformas arquitetônicas parciais, dotação de recursos para uma conservação rigorosa de acervos, melhoras nas instalações expositivas mediante a criação de programas gráficos, de sinalização e identidade corporativa. As necessidades eram mais urgentes no âmbito das edificações e contruções, que correspondem aos resultados mais palpáveis, dado que a maioria dos museus encontravam-se em prédios antigos, construídos há mais de cem anos e em estados de conservação muito diversos, sobrevivendo, na maior parte, em condições lamentáveis, e assim a maioria contava apenas com os serviços que o seu funcionamento requeria. Segue disso, que a maioria das investimentos tenha se destinado a potencializar a estrutura deficiente da rede nacional, desenvolvendo prioritariamente programas de reabilitação e ampliação dos edifícios.

3. Outra mudança espetacular que se verificou desde os primeiros momentos da transição foi a programação regular de exposições, principalmente de arte moderna, e a integração das grandes capitais espanholas nos circuitos internacionais das grandes mostras. Até este momento, a difusão da arte contemporânea fora protagonizada por galeristas ousados ou entidades privadas, entre as quais destaca-se, nos primeiros anos, a Fundación Juan March de Madri, que desde 1974 desenvolvera uma tarefa preciosa na sala da rua Castelló. Ou em Barcelona, desde 1975, a Fundación Joan Miró. Um pouco depois, somar-se-á a Fundación La Caixa; em ambas cidades, a audácia desses êxitos, tanto na política de exposições quanto na sua coleção internacional de arte contemporânea – que abarcam de Duchamp a Beuys, sem esquecer a promoção de jovens artistas espanhóis --, supera em beleza, qualidade e coerência muitas instituições públicas espanholas. Pouco a pouco, eles fizeram com que a arte, a princípio restrita a uma escassa minoria, a um círculo de profissionais e especialistas, fosse interessando a amplos setores da sociedade, sobretudo aos setores mais jovens.

Rapidamente este trabalho pioneiro começa a dar frutos e a encontrar um eco oficial entusiasmado. Pouco planejado e estável, mais e mais coerente e audaz nos anos seguintes, desde os finais dos anos setenta, o Ministério da Cultura, através de suas salas públicas – o Palácio de Cristal e de Velázquez no Parque Retiro, as salas Picasso na Biblioteca Nacional, o MEAC, e entre 1984 e 1987, o Palácio de Villahermosa – coloca em marcha um ambicioso plano de exposições, com excelente acolhida do público, que as frequentou massivamente. Esse programa permitiu recuperar grandes figuras históricas preteridas e isoladas, com exposições antológicas dedicadas a Picasso, Caneja, Maruja Mallo ou Ferrante. Sob a direção de Carmem Giménez, à frente do Centro Nacional de Exposições entre 1983-1989, a política de exposições temporárias adquirirá um nível de qualidade e coerência que foram vitais para familiarizar o público com as novas linguagens artísticas e para normalizar a vida artística espanhola.

4. Essa política de normalização e modernização completou-se com algumas iniciativas singulares. A operação estatal mais espetacular aconteceu em 1988, ao converter Madri na sede temporária de uma das coleções privadas mais importantes do mundo, a Thyssen-Bornemisza, instalada no Palácio de Villahermosa, junto ao Prado. Com essa aquisição, que levantou muita polêmica, as coleções estatais de pintura passaram por um incremento inesperado e muito oportuno, pois seu caráter clássico compensava a ausência de arte renascentista alemã e holandesa no Museu do Prado, enquanto que a coleção moderna preenchia as lacunas existentes no Centro de Arte Reina Sofia, com sua riqueza em obras pertencentes oa impressionismo, expressionaismo alemão ou vanguardas russas, além de alguns itens de arte produzida depois da segunda guerra mundial.

5. Todo esse fenômeno teve também seus efeitos no mercado de arte, um setor raquítico até os anos oitenta, no qual as preferências dos colecionadores, carentes de informação e desconectados do mercado internacional, dirigiam-se prioritariamente à tradicional pintura autóctone da corte, quando não a uma arte abertamente medíocre. Eram escassos os galeristas que nos anos setenta faziam um trabalho de difusão destacável, a não ser Theo, Juana Mordó ou Kreisler, em Madri, a sala Gaspar, René Metras ou a sucursal da famosa Maeght, em Barcelona, ou algum caso provinciano excepcional, como La Pasarela, en Sevilha, ou Antonio Machón, em Valladolid.

Mas a modernização artística, em conformidade com um crescimento vertiginoso na relação de artistas plásticos que, em 1988, girava em torno dos trinta mil, trouxe consigo um aumento no círculo de compradores, marchants e galeristas (por exemplo Vijande, Marlborough, Soledad Lorenzo, Juana de Aizpuru ou a extinta Weber, Alexander y Cobo, estas em Madri; ou Juan Prats, Metrònom ou Carles Taché, em Barcelona) e, consequentemente, um colecionismo mais culto, estimulado por um melhor conhecimento de arte, que embora não se comparasse ao alemão ou ao italiano e menos ainda ao japonês ou americano, inseria-se, em seu ápice, no comério internacional de arte. A euforia econômica dos anos oitenta permitiu a esse colecionismo emergente, não só de arte contemporânea, ao que se orienta preferivelmente, mas também de pintura tradicional, onde se destacam figuras como os Arango, os Masaveu, os Abelló, repatriar nos últimos anos peças históricas perdidas pelo mundo – recorde-se que Gaya Nuño havia estimado em mais de três mil as obras usurpadas e que no contexto de prospecções posteriores a cifra parece ser bem maior – através de compras realizadas diretamente ou em leilões como as organizadas por Edmund E. Peel, representante da Sotheby’s na Espanha. Em um crescente protagonismo do setor privado no mundo das exposições e divulgação cultural, o colecionismo encontrou um eco nas grandes empresas e instituições bancárias, que formam seus pequenos museus particulares, expostos em mostras itinerantes ou em exposições setoriais e entre as quais destacam-se as da Telefonica, Argentaria, o Banco Central Hispano, o Banco Bilbao-Vizcaya ou o Instituto de Crédito Oficial.

A criação em 1982 da ARCO, primeira feira internacional de arte contemporânea da Espanha, impulsionada por outra grande pioneira, a galerista Juana de Aizpuru, será uma peça nuclear na estruturação do mercado estatal e na promoção dos artistas espanhóis, assim como no conhecimento das últimas correntes, como a transvanguarda italiana, o neo-expressionism alemão ou o neo-conceitualismo, e cujo êxito como evento cultural é mais um dado a favor do interesse massivo pela arte. A feira, de começo complicado, favoreceu a comercialização e o aumento do volume de negócios, mais ainda em torno de 1985, quando amparada pela conjuntura econômica favorável, produz uma euforia compradora que alcança seu climax no final da década e que incrementou de modo espetacular os preços e investimentos em obras de arte, permitindo uma maior profissionalização do artista e gerando um setor colecionista variado, que abarcava desde o modesto aficcionado, interessado puramente no aspecto artístico de sua aquisição, até o grande investidor que coleciona com fins lucrativos ou o muito poderoso, constituído pelas administrações públicas que compram para os museus. No entanto, essa alegria será logo substituída pelo decadência mercantil dos anos noventa, que põe em evidência a artificialidade do processo anterior e que, depois de uma crise, devolverá a situação a seu curso normal, mais de acordo com a realidade nacional.

6. No campo das especialidades museológicas, um dos feitos mais chamativos foi o impulso aos museus científicos e técnicos que depois de um brilhante começo em pleno fervor da Ilustração, no século XVIII, padecera, na Espanha, de um grande abandono durante mais de século e meio, sem atividade.

A fascinação especial pelo mundo da ciência das sociedades de industrialização tardia foi estimulada pela crescente absorção dos fenômenos técnicos e científicos e pela atenção a problemas tão diversos como a vida em outros planetas, a dimensão moral dos avanços genéticos, a inteligência artificial, os recursos energéticos ou a deterioração da natureza e do meio ambiente. Esta curiosodade extendeu-se a tal ponto que a divulgação científica converteu-se em um fenômeno a mais da cultura de massas (como provado pela popularidade de produtos pseudo-científicos como filmes sobre dinossauros, documentários ao estilo do comendandte Costeau, ou best-seller milionários como O Pêndulo de Foucault, de Umberto Eco.)

Neste contexto, deve-se destacar o grande sucesso dos museus tecno-científicos e sua capacidade de captação de público, inclusive desse setor refratário ao museu que os sociólogos chamam de “não-público”, verdadeiramente imprevista. Grandes experiências como a do veterano Museo de la Ciência de Barcelona, um dos museus espanhóis mais visitados, comprovam esse fenômeno curioso no qual a palavra ‘museu’ não possui mais o sentido que a tradição lhe conferia.

Sua conceitualização é diferente do modelo vigente nos demais museus, baseado na idéia essencial de conservação. Isto é, do museu entendido como sede de uma coleção de produtos e objetos legítimos, que neste caso é substituída pelo espetáculo das mídias audio-visuais e por estratégias de simulação em módulos projetados para facilitar a compreensão de princípios e comportamentos científicos; de modo que, em uma operação redundante e narcisista, a ciência coloca-se ao serviço do conhecimento da ciência, ou dito mais simplesmente, o museu é um grande artefato que contém por sua vez artefatos menores. Sua finalidade é aliviar dificuldades inerentes a explicações sobre processos científicos tão distintos como o movimento da Terra, a propagação do som, um microcomputador, ou a percepção sensorial. A concepção de todos esses museus de nova organização terminará condicionada pela idéia de interatividade, na qual o visitante não é um espectador passivo, mas que participa na experiência e, incluído, gera-a por si próprio, mediante formas criativas de simulação do fato científico.

De certo modo, o sucesso desse novo protótipo de museu parece responder a essa corrente profunda que domina a cultura nas décadas do final do século, que alguns reputam como o pós-moderno. Pois que lugar é melhor do que uma dessas salas interativas para afirmar fatos tão de “fim de século’ como o valor da experiência, tão mais intensa quanto mais epidérmica, a mediação ilusória do tecnológico, a infantilização do prazer, a mescla de alto saber e diversão, o deslocamento do interesse pelo objeto em si para o efeito que produz no visitante, a anulação histórica dos saberes, o espetacular-convertido-em-percepção-pura? É, antes de tudo, o componente pragmático, lúdico, mediático e híbrido dessas formas de aproximação do conhecimento que explica a recepção tão favorável de setores sociais variados, mais extensos quanto mais disneyficadas resultem suas formas de exposição.

Na Espanha, assim como na Europa, esta forma está em ascensão. São centros de vocações distintas, que vão desde o já tradicional planetário, como o de Castellon ou o de Pamplona, a grandes parques científicos, passando por centros de escala inferior, ainda que sempre de tamanho descomunal, para abrigar os grandes aparatos e recebr as visitas massivas de estudantes, o que exige a articulação de grandes espaços de circulação e salas grandes. Outras fundações são a Casa de las Ciencias (1985), em La Coruña, comprometida com a promoção da necessária solidariedade entre ciência e humanismo, e sua mais recente extensão, Domus, entregue ao arquiteto Isozaki; ou a polêmica Cidade da Ciência e da Tecnologia, de Valencia, às quais deve-se agregar o Museo de la Ciencia recém inaugurado em Barcelona, que recebe a instituição La Caixa, e cuja espetacularidade tecnológica e empenho educativo o colocam, uma vez mais, na primeira fila.

7. Outro campo de expansão tem sido os museus e centros de arte contemporâneos. A primeira grande iniciativa desse série constituirá o mais ambicioso dos projetos: em 1980 toma-se a decisão, tantas vezes postergada, de dotar a cultura espanhola de um grande centro de arte contemporânea, e para tanto é reformado o Hospital General de Hombres, seguindo uma preferência pela reutilização de imóveis históricos. Quando se inicia o projeto de Madri, um dos aspectos já consolidados pela nova museologia era o desenvolvimento de um novo discurso sobre arquitetura de museus. O Centro de Arte Reina Sofia, dedicado ao conhecimento e difusão da arte moderna, definido como um serviço público que, considerando as últimas correntes da museologia e a experiência acumulada em outros museus do mundo, assumisse uma função ativa no desenvolvimento da prática artística nacional, promovesse atividades culturais para oferecer ao conjunto da sociedade espanhola, convertendo-se em um foco de debates artísticos e culturais e fosse um novo pólo de convergência da criação internacional, incorporando-se ao circuito do grandes centros artísticos existentes no mundo e programando com eles atividades conjuntas; uma proposição, definitivamente, que se encaixava no modelo da Kunsthalle. Em 1990, o estabelecimento se constitui como Museu Nacional.

7. Otro campo de expansión ha sido el de los museos y centros de arte contemporáneo. La primera gran iniciativa de esa serie la va a constituir el más ambicioso de los proyectos: en 1980, se toma definitivamente la decisión, aplazada tantas veces, de dotar a la cultura española de un gran centro de arte contemporáneo, a cuyo fin se acuerda rehabilitar el Hospital General de Hombres, siguiendo una preferencia muy extendida por la reutilización de inmuebles históricos. Cuando se aborda el proyecto madrileño, uno de los aspectos ya consolidados por la nueva museología era el desarrollo de un nuevo discurso sobre la arquitectura de museos. El Centro de Arte Reina Sofía, dedicada al conocimiento y la difusión del arte moderno, enfocada como servicio público, que, considerando las últimas corrientes de la museología y la experiencia acumulada en otros museos del mundo, asumiera una función activa en el desarrollo de la práctica artística nacional, promoviese actividades culturales para ofrecer al conjunto de la sociedad española, se convirtiese en un foco de debates artísticos y culturales, y fuese un nuevo polo de convergencia de la creación internacional, incorporándose al circuito de los grandes centros artísticos existentes en el mundo y programando con ellos actividades conjuntas; un planteamiento, en definitiva, que se sumaba al modelo de las Kunsthalle. En 1990, el establecimiento se constituye como Museo Nacional.

 

O Reina Sofia cumpriu uma tarefa estupenda, levada a cabo sobretudo nos anos da geastão de Maria Corral, que se consistiu em atualizar os conhecimentos artísticos precários da sociedade espanhola, com uma clara orientação transcultural, divulgando uma grande variedade de correntes internacionais e de personalidades de prestígio tanto da vanguarda clássica quanto da segunda metade do século, realizando interessantes revisões da arte espanhola, exibindo artistas mais jovens ou fazendo propostas audaciosas como a polêmica Cocido y Cru, sem renunciar ao mais alto nível de rigor e qualidade e sem recusar nenhuma das oportunidades que se oferecem aos museus estrangeiros mais experientes, como comprovado pela curadoria de exposições feitas por figuras importantes como Szeemann, Rudi Fuchs, Gloria Moure, Sonnabend ou Dan Cameron.

Depois do lançamento do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia, sucederam novas fundações públicas, como o IVAM, de Valencia, impulsionado pelo governo regional, com recursos de Julio González, e a Fundación Tápies, a partir da doação do artista.

Muitos deles compartilham a característica de terem concedido uma importância prioritária, quase de natureza simbólica, ao fato de confiarem a construção a arquitetos cujo prestígio garantiria o empreendimento, seguindo uma prática internacional segundo a qual o espetáculo museológico começa na arquitetura. E acontece que, depois do período moderno em que o edifício tornou-se silencioso e neutro, o envoltório, ainda que de uma maneira distinta do ocorrido no século dezenove, recupera a eloquência glamurosa do século passado. Oscilando entre o rigor minimalista e a forte expressividade icônica, é raro um edifício novo em que a arquitetura não seja um discurso em si mesma, o que por certo deu lugar a uma dialética entre arquitetos e museólogos, na qual os primeiros defendem o caráter criativo de suas obras, e os segundos a necessidade de que esta esteja subordinada às necessidades impostas pelo conteúdo, controvérsia interessante do ponto de vista acadêmico , mas que às vezes delata uma rigidez corporativa que bloqueia a necessária adaptação a circuntâncias dadas. Cabe destacar a obra de Richard Meier para o MACBA, de Barcelona, um projeto de 1987, a Fundación Pilar y Joan Miró, que Rafael Moneo construiu em Palma de Mallorca (19987-1992), ou o edifício de Alvaro Siza para o Centro Gallego de Arte Contemporáneo (1993), em Santiago de Compostela.

Em alguns destes cargos, a incumbência arquitetônica é a primeira peça de uma estratégia de amplo alcance das cidades de porte médio que decidem promover sua modernização urbana através de um símbolo cultural prototípico como é o museu, com foi feito em Frankfort, Glasgow ou Roterdam. Na Espanha, o caso mais representativo é o de Bilbao: a cidade basca, através do governo autônomo, com aspirações a converter-se na capital de um eixo atlântico que vincula um arco de regiões, desde a Galícia a Bretanha, empreendeu um projeto urbanístico em torno do estuário, com um orçamento inicial de cem bilhões de pesetas, onde destaca-se a descomunal arquitetura de Frank Gehry para uma filial do Guggenheim Museum, pago em sua maior parte pelos patrocinadores espanhóis e alugado à fundação para exposição das obras da coleção americana. Finalmente, na última década, floresceu um conjunto de museus e centros de arte contemporânea locais, de tutela municipal ou provinciana, mais ou menos bem-sucedidos e melhor ou pior dotados, mas todos com decidida vocação de modernidade: MARCO, em Vigo, ARTIUM, em Vitoria ou o Museu Patio Herreriano em Valladolid.

8. Além disso, o museu precisou moldar-se aos novos tempos, às novas idéias e aos novos discursos disciplinares dominates nas ciências humanas, dando lugar à formulação de um redesenho de seus conteúdos ao renunciar ao velho enclausuramento que o separava em especialidades – arte clássica ou arte contemporânea, antropologia ou ciência, pintura ou antiguidades -- , esquecendo seus preconceitos contra o contágio disciplinar e inventando uma ‘museologia da contaminação’, que tem amparado experimentos hermenêuticos.

Algumas coleções clásssicas, como o Museo de Bellas Artes de Bilbao, abandonaram o historicismo linear do museu tradicional e seu afã por encadear uma sucessão de estilos – o renascimento, o maneirismo, o barroco; ou mesmo o cubismo, a abstração, os surrealistas --. Ao contrário, impõe-se uma “epistemologia da descontextualização”, que favorece as interpretações cruzadas, os paralelismos espaciais – que resultou em resultados tão bons como na série de grandes mostras do Centro Pompidou, Paris-Berlin ou Paris-Moscou--. Esta proposta ampara possibilidades nunca antes contempladas, como uma coleção de arte primitiva das Cícladas no Reina Sofia, a obra recente de um pintor vivo como Miguel Barceló no Museo del Prado. Às vezes essas operações tem sido acompanhadas de tormentosas polêmicas, como a que se produziu por causa de uma exposição sobre motocicletas no Guggenheim, enquanto que a mostra realizada sobre um célebre estilista espanhol no Museo Reina Sofia era aceita sem reclamações. Mais interessante, pela densidade teórica que supõe, é o caso das exposições ‘temáticas’, que renunciam ao fio condutor da cronologia, como na célebre Suiza Visionaria, exposição temporária na qual a mescla de autores, escolas e épocas era submetida a uma lógica interna não-dogmática, que permite à obra conservar seu espaço de liberdade sem obrigá-la a ilustrar nada, forçando o espectador a uma “interatividade” que, sem necessidade de aparatos nem manipulações, dispara sua imaginação.

9. Assim mesmo, verifica-se nas últimas décadas um movimento geral em defesa do museu como âmbito privilegiado da memória. Não só no sentido literal – já que todo museu é uma arena de conhecimento do passado e história humanas, de conservação de nosso patrimônio atual ou de civilizações desaparecidas --, mas sobretudo em sua dimensão simbólica. Pois impôs-se a necessidade de fazer do museu um depósito de um discurso moral sobre a memória coletiva, entendida não como uma relíquia imóvel ou terra de ninguém, mas como o eixo de um debate sobre a identidade e a alteridade, como um lugar de orientação histórica e afetiva, mais sensível à medida em que em nosso país impõe-se uma nova realidade humana, derivada da irrupção, no próprio coração da civilização branca, de povos e culturas procedentes de outros continentes, graças aos respectivos movimentos migratórios – americanos do sul, europeus do leste, magrebes da África --. Esses estrangeiros irrompem nas cidades espanholas com suas outras visões do mundo, com seus idiomas e costumes remotos e incompreensíveis, quebrando o monopólio europeu na interpretação da história e clamando pelo abandono do modelo ocidental. Os excluídos, os desalojados, os mudos, os que nunca haviam feito história, tomam a palavra impondo “outros” modos de valor, outros cânones estéticos, outras formas de verdade, que sacodem o velho ocidente pela lapela fazendo-lhe consciente de sua natureza mortal e relativa. Sua presença cultural impôs a necessidade de reescrita de nossas próprias origens históricas, e de submeter a revisão uma identidade nacional associada a um passado patrimonial amplo e complexo, não isento de excessos e engrandecimentos falsificadores sobre a pureza das raízes nacionais. A carga emocional de muitas reclamações por devolução de tesouros patrimoniais, revisados nestes últimos anos, confirma as tensões em torno deste assunto e, em todo caso, atualizam a idéia do museu como fruto da identidade coletiva da nação.

10. O último assunto que neste momento ocupa os debates é a ruptura da fonteira sagrada entre o museu e o negócio e as tensões que supõe a prioridade dada a uma boa administração financeira em detrimento da preservação da integridade da coleção ou dos critérios puramente artísticos. A penetração das teorias econômicas nos setores não comerciais e em todo mundo da cultura converteu dinheiro em um fator que nunca havia tido a relevância e o poder decisório de hoje. O crescimento e a modernização dos museus, o auge do turismo cultural, o encarecimento dos serviços de todo tipo e as dificuldades para finaciá-los, a necessidade de conhecer o público e de conquistar o não-público são vários fatores que obrigaram os museus a mudar sua mentalidade para sobreviver. Assim, impõe-se nos últimos 15 anos uma óptica economicista, que aplica o conceito de marketing, proveniente do mundo da empresa, à organização e gestão do museu. Nessa obsessão por rentabilidade, muitos museus calculam seu valor pela quantidade de visitantes. Assim, por exemplo, a organização de uma exposição temporária é um feito de tal complexidade, gera tantas expectativas, envolve tantos especialistas diferentes e requer tanto tempo de preparação que torna-se imprescindível um suporte financeiro sólido.

Entre as mudanças induzidas por esta mentalidade economicista há que se ressaltar a complexa formação requerida para a figura do diretor de museu, em torno da qual produziu-se um debate sobre o perfil requerido para um trabalho eficaz, e a necessidade de acrescentar uma dimensão de gestão administrativa – marketing, promoção, obtenção de recursos – à função tradicional do diretor conservador. É aqui, no terreno da formação de um corpo competente de profissionais de museu, onde se notam carências de forma mais marcante.

*

De qualquer forma, e para concluir, cremos que continua válido o balanço que fizemos há alguns anos, no qual defendíamos o mérito dos acontecimentos dos últimos vinte anos na museologia espanhola, que “embora com titubeios, erros e passos para trás, saldou dignamente a dívida secular que os poderes públicos mantinham com nosso patrimônio artístico e cultural, um de nossos bens mais preciosos e irrenunciáveis, ainda com maior importância em momentos de fragilidade de nossa identidade coletiva, como neste fim de século. Isso não significa esquecer a pobreza artística de algumas coleções incompletas e descontínuas, nem tampouco desculpar uma política oficial caracterizada, em tantas ocasiões, por uma infeliz improvisação, pela tentação nacionalista, pela vaidade de alguns políticos, nem a superficialidade que tanto pesa em nossa tradição cultural ou a incultura de muitos de seus responsáveis ou mesmo da opinião pública. Tudo o que não deixa de ser, ao fim e ao cabo, uma expressão de nossa realidade cultural espanhola, forjada durante séculos à base de projetos inacabados, indiferenças oficiais, horas de esplendor e entusiasmos órfãos.”

(traduzido por Paula Braga)

versão original em espanhol

María Bolaños é professora no Departamento de História da Arte da Universidade de Valladolid, Espanha. É autora de La memoria del mundo: 100 años de museología internacional, Gijón, Trea,  2002

Muito proximamente, outro texto de Maria Bolaños oferece um retrospecto diverso da trajetória dos museus: Desorden, Diseminación y Dudas. El Discurso Expositivo del Museo en Las Últimas Décadas. Mas nem todas as questões colocadas por estes textos se restringem ao século passado, como vemos em O museu no século XXI ou o museu do Século XXI?, por Durval de Lara Filho.