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Um novo contrato social para o sistema da arte

Reprodução de texto assinado por Ana Belluzzo, Aracy Amaral, Cacilda Teixeira da Costa, Ivo Mesquita, Jorge Coli, Martin Grossmann, Regina Silveira,Teixeira Coelho, Ulpiano Bezerra de Menezes e Walter Zanini publicado em O Estado de S. Paulo, 30 de julho de 2004, sobre a crise administrativa das instituições culturais públicas no Brasil. (Maria Hirzman)
A crise que vem abalando o Masp, que veio a público recentemente, assim como a situação crítica enfrentada em várias outras instituições do País, levou alguns dos mais importantes artistas,críticos, historiadores e ex-diretores de importantes museus paulistanos a se reunirem e se manifestarem pela necessidade de externar seu pensamento sobre os principais problemas que afetam essas instituições em São Paulo. Eles propõem a formalização de um novo contrato social para o sistema de arte na cidade, refletem sobre os principais problemas desse circuito e propõem a reunião de esforços em torno da questão,de forma a evitar esse “indiscutível e intolerável desperdício de um forte capital cultural”. O texto, assinado por Ana Belluzzo, Aracy Amaral, Cacilda Teixeira da Costa, Ivo Mesquita, Jorge Coli, Martin Grossmann, Regina Silveira, Teixeira Coelho, Ulpiano Bezerra de Menezes e Walter Zanini, e publicado a seguir, com exclusividade pelo Estado, inaugura uma série de reflexões, a serem escritas coletivamente, como intuito de unir forças e propor soluções para problemas crônicos, como a falta de planejamento, a crise financeira, a descontinuidade e a falta de diálogo entre os vários agentes. O Fórum Permanente de Museus também pretende realizar encontros para debater o assunto.

Historiadores e críticos da arte, artistas, ex-diretores de museus, observamos com atenção os desdobramentos do que se pode denominar com propriedade de crise dos museus e espaços de arte na cidade – e não apenas na cidade, no País também. Uma crise que neste instante veio à tona, em relação a vários museus, em sua dupla condição de reflexo do passado e preocupante projeção para o futuro. Crise de redobrada significação por afetar não só o sistema da arte em si mas, também, a imagem da cidade, pensando no papel central que museus e espaços de arte representam na vida contemporânea de uma capital como São Paulo.

E se nos manifestamos neste momento é porque, com clareza, este é o instante para a formalização de um novo contrato social para o sistema da arte, na cidade e no País.

Uma terceira etapa na história das relações entre a arte e a sociedade brasileira está por abrir-se. Nos últimos 40 anos, duas outras tornaram-se visíveis. A primeira, sob a ditadura de 64 a 84, marcou se pelo estatismo cultural – que pode não ter sido bem-sucedido em todas suas ações, por sorte, mas que configurou claramente um desejo de intervenção na cultura, forte o bastante para defini-la como de má memória. Um incidente a não esquecer e a repelir em todos seus modos.

A segunda iniciou-se com a entrada em vigor, na segunda metade da década de 80, das leis de incentivo fiscal que, é bom frisar, correspondiam ao desejo da sociedade civil de livrar-se da tutela do Estado – não só do governo – a fim de poder inventar e operar seus próprios fins culturais. Essa alternativa colaborou, decisiva e acertadamente, com artistas, curadores, museus e espaços públicos e privados. Mas deu a alguns parceiros da arte, com papel relevante na administração do sistema mas nele não especializados, uma sensação de competência autônoma, ou autonomia competente, que hoje se revela ilusória. Alguns museus e entidades não contam, neste momento, com profissionais qualificados para propor e impulsionar programas e projetos de qualidade, ao passo que outros não conseguem resolver, sozinhos, justas expectativas de espaço físico (embora o museu contemporâneo seja mais que isso). O problema, cabe insistir, não é apenas de natureza econômica.

De outro lado, criam-se novas instituições públicas e privadas (estas, por vezes, embora imprescindíveis, em espaços públicos de que poderiam beneficiar-se instituições públicas) sem que antes se procure consolidar as existentes.

Nesse cenário é que se apresenta a necessidade de um novo contrato social com o sistema da arte. Surge um terceiro ator, com legitimidade: a sociedade civil organizada. As organizações sociais, na forma de ONGs,fundações ou equivalentes, parecem a nova solução. Velhos erros, no entanto, marcados pela falta de diálogo pleno e franco entre os atores culturais – antes, entre o Estado e a iniciativa privada, agora entre esses dois e a sociedade civil – têm tudo para repetir- se se não for aberta uma discussão pública entre as partes com legitimidade para mantê-la por sua competência cultural, artística, econômica ou política.

Antigos problemas se arrastam indefinidamente. Talvez mais por falta de planos convergentes, diálogo e coordenação de iniciativas do que por inexistência de recursos humanos e financeiros. A rigor, nenhum museu da cidade está consolidado ou desempenha seu papel como poderia fazer. A instabilidade, a descontinuidade e a retração para o interior dos próprios domínios são a regra. O desperdício de um forte capital cultural é indiscutível. E intolerável.

Não se pode perder a ocasião. Exemplos de gestão com sustentabilidade científica, cultural, econômica e política já estão à disposição, e outros tantos podem ser aqui criados. Independentemente da posse temporária e da propriedade legal das coleções, a arte é um patrimônio público, local e universal. Em nome desse princípio e pensando nos múltiplos aportes que a arte pode significar para a cidade, propomos a abertura do diálogo na busca comum pelas soluções. Fundamental é romper com o atual esquema errático, orientado para este ou aquele ponto ao sabor da hora.

(Ana Belluzzo, Aracy Amaral,Cacilda Teixeira da Costa, Ivo Mesquita, Jorge Coli, Martin Grossmann, Regina Silveira,Teixeira Coelho, Ulpiano Bezerra de Menezes e Walter Zanini)