Você está aqui: Página Inicial / Revista / Número 0 / Textos / Que políticas culturais?

Que políticas culturais?

Escrito por Lúcia Maciel Barbosa de Oliveira para o Encontro com a Missão Holandesa, realizado no Centro Cultural São Paulo em 2009: “A cultura e a arte sempre ocuparam um plano secundário no Brasil, o que traz reflexos que se evidenciam ainda hoje. Essa posição trouxe, como corolário, o fato de que uma das características definidora da política cultural no Brasil foi sua total ausência. Em termos mínimos, para que se configure uma política cultural são necessárias intervenções conjuntas e sistemáticas, além de objetivos claros.”

Por Lúcia Maciel Barbosa de Oliveira


A cultura e a arte sempre ocuparam um plano secundário no Brasil, o que traz reflexos que se evidenciam ainda hoje.

Essa posição trouxe, como corolário, o fato de que uma das características definidora da política cultural no Brasil foi sua total ausência.

Em termos mínimos, para que se configure uma política cultural são necessárias intervenções conjuntas e sistemáticas, além de objetivos claros.

A colônia foi marcada por um controle rígido da cultura, com a proibição de instalação da imprensa, a censura a livros e jornais estrangeiros, a falta de incentivo à educação e a ausência de universidades (90% da população brasileira era analfabeta em meados do século XIX), Mesmo com a vinda da família real para o Brasil, em 1808, fugindo das tropas de Napoleão com a consequente instalação da corte portuguesa no Rio de Janeiro e o traslado de acervos reais que deram origem a instituições como a Biblioteca Nacional e o Museu de Belas Artes, não houve ações sistemáticas que configurassem uma política cultural, quadro inalterado com a independência e a proclamação da República.

O marco das políticas culturais no Brasil é a ‘Revolução de 1930’ que coloca Getúlio Vargas no poder e mais efetivamente com o Estado Novo (1937-1945), quando o poder ditatorial de Getúlio assume sua cara mais autoritária. O contexto em que a ‘revolução’ acontece é o de incorporação de novos atores sociais, mais especificamente uma burguesia emergente e um proletariado que adentrava a cena. Industrialização, urbanização, modernismo cultural, fortalecimento e centralização do Estado nacional eram os elementos que mudavam a face do país, convivendo com as velhas oligarquias que mantinham seu poder. Pela primeira vez o Estado brasileiro realizava um conjunto de intervenções sistemáticas na área da cultura, o que se refletia em práticas, legislações, organizações e instituições criadas para esse fim. A política cultural desse período foi influenciada pela experiência inovadora de Mário de Andrade, artista e intelectual, à frente do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo, intervenção pública pioneira que elevou a cultura a um patamar de destaque nas políticas públicas.

O autoritarismo [1] é mais uma das características definidora da política cultural brasileira. Na ditadura militar implantada em 1964, após um golpe que derrubou o presidente João Goulart, a política cultural também será percebida como instrumento fundamental da ação governamental para a construção e manutenção de uma nação homogênea, integrada, dentro do binômio segurança e desenvolvimento que guiava o projeto de nação gestado pelos militares. O documento ‘Política Nacional de Cultura’, de 1975, sistematiza uma política cultural no nível federal. Ações sistemáticas foram adotadas e vários órgãos foram criados para sua consecução, como a Embrafilme e a Funarte, conselhos foram criados para dar respaldo legal às ações empreendidas pelo governo.

A relação entre governos autoritários e políticas culturais aparece claramente no Brasil, relação que tem na ideia de identidade nacional um de seus eixos definidores. Outro aspecto a sublinhar no que se refere a essa relação é a percepção da importância dos meios de comunicação de massa para a consecução das diretrizes traçadas: o rádio, no Estado Novo, e a televisão, no governo militar, serão alvo de incentivos e legislações específicas para seu desenvolvimento controlado.

No interregno entre o Estado Novo e a Ditadura Militar (1945-1964), época em que experimentamos um período democrático, a cultura e a arte desenvolveram-se de maneira vertiginosa nos mais diferentes campos e linguagens. Música, cinema, arquitetura, dança, artes plásticas, teatro viveram um período de ebulição. A Bienal, o MAM no Rio de Janeiro, o MASP em São Paulo, a criação do Ministério da Educação e Cultura, em 1953, são algumas das ações emblemáticas do desenvolvimento artístico e cultural que o Brasil vivia. No entanto, não houve por parte do Estado, nos diferentes governos, ações sistemáticas que configurassem políticas culturais, muito provavelmente como reação ao período autoritário e dirigista em todas as áreas, inclusive a cultural. A oposição ao autoritarismo gerou a crença na liberdade dos agentes privados. O imaginário nacional informado pela idéia de que políticas culturais estão ligadas a governos autoritários, intervenção estatal e dirigismo, trouxe como consequência, evidenciada ainda hoje, a defesa da não interferência estatal na cultura e nas artes.

Tal oposição pode ser percebida no final da Ditadura Militar quando temos um governo de face mais democrática embora ainda eleito indiretamente pelo Congresso Nacional. O presidente José Sarney assume o poder em 1985 após a morte de Tancredo Neves antes que tomasse posse na presidência. O Ministério da Cultura (MinC) é criado e passa a ser um órgão autônomo, desvinculado de outras pastas, comandado por Celso Furtado, reputado economista ligado a setores de esquerda, que havia sido ministro do planejamento do governo João Goulart. No contexto de democratização do país, de abertura política e de cansaço da sociedade civil com o Estado forte e intervencionista, é promulgada a primeira lei de incentivos fiscais no Brasil para a cultura: a Lei Sarney, em 1986.

A ausência de investimentos públicos em cultura também é fator fundamental para a promulgação da lei, de maneira a garantir verbas para o investimento no setor, impossibilitado pelo baixo orçamento do MinC. A lei reflete, portanto, a escassez de recursos financeiros para o setor e o cansaço ao Estado forte e dirigista anterior.

Fernando Collor de Mello (1990-1992) foi o primeiro presidente eleito de forma direta após um longo período. A Lei Sarney foi revogada, em março de 1990. A cultura sofreu um processo de desmonte, com a extinção de órgãos e instituições como a Funarte e a Embrafime; o próprio Ministério passou a ser apenas uma secretaria da presidência da república. Não houve investimentos públicos na área da cultura. Sob pressão da classe artística, produtores culturais e grupos da sociedade civil, a Lei Sarney, que apresentava problemas de transparência e controle, foi substituída pela Lei Rouanet, promulgada em dezembro de 1991 e leva o nome do então ministro da cultura, o embaixador e ensaísta Paulo Sérgio Rouanet, que buscou corrigir algumas falhas da lei anterior. A Lei Roaunet institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura – Pronac, composto por três mecanismos de financiamento: os Fundos de Investimento Cultural e Artístico – Ficart, disciplinados pela Comissão de Valores Mobiliários, nunca utilizados de maneira sistemática; o Fundo Nacional de Cultura – FNC, cujas verbas são utilizadas a fundo perdido, ou seja, constituem investimentos feitos diretamente pelo MinC; e o Mecenato, cujos recursos advém da renúncia fiscal e podem ser utilizados através de patrocínios ou doações.

O minguado investimento em cultura se manteve quando assume o presidente Itamar Franco (1992-1994) após o impeachment de Collor, abalado por denúncias de corrupção. Itamar restabelece o Ministério da Cultura e os órgãos e instituições extintos pelo governo anterior, mas o orçamento para a cultura permanece baixo. A política cultural baseia-se tão somente nas leis de incentivo que contavam com poucos investidores privados.

Quando Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) assume a presidência, o lugar secundário reservado à cultura não sofre qualquer alteração. A política cultural do governo restringe-se tão somente às leis de incentivo: o orçamento do Ministério da Cultura não ultrapassava 0,14% do orçamento nacional.  No contexto neoliberal do governo FHC, o ministro Francisco Weffort, renomado cientista político, lança uma pequena publicação intitulada A cultura é um bom negócio, buscando sensibilizar a iniciativa privada a investir em cultura através das leis de incentivo, cujos artigos haviam sido alterados para aumentar o teto de renúncia e os percentuais de isenção, de forma a tornar mais atrativo o investimento na área. À iniciativa privada cabia resolver os caminhos da política cultural. Outro slogan propagado pelo ministro afirmava: a parceria com o mercado é o caminho. A Lei Rouanet passava a ser efetivamente utilizada pelas empresas e se consolidava como a forma predominante de financiamento à cultura no Brasil, período em que vivíamos um processo de estabilização da economia, outro fator a explicar a maior adesão das empresas privadas ao mecenato.

A instabilidade decorrente das políticas públicas no Brasil serem políticas de governo e não de Estado, e, portanto, sujeitas às alterações advindas com a posse de cada novo governo, pode ser apontada como mais uma das características das políticas culturais nacionais, instabilidade reforçada pelo fato de dez de ministros da cultura assumirem a pasta entre 1985 e 1995.

Com a eleição de Luís Inácio da Silva (2002-2010), Lula, a cultura é inserida no discurso governamental como componente essencial das políticas públicas. Gilberto Gil é escolhido para Ministro da Cultura num gesto emblemático. O Ministro Gil assume a pasta afirmando que a cultura ocupará lugar nunca antes ocupado nas políticas governamentais. A cultura passa a ser conceituada a partir de uma dimensão antropológica, o que significa compreendê-la como a dimensão simbólica da existência social brasileira, ou seja, que a sociedade como um todo será privilegiada e não apenas produtores e criadores, o que funciona em termos discursivos - uma compreensão ampliada da cultura que não se restrinja às artes e ao patrimônio -, mas que é pouco operacional na medida em que a política cultural busca gerar ações efetivas que não podem se consubstanciar a partir da definição de que tudo é cultura.

Apesar de todo o discurso e do orçamento do MinC ser ampliado gradativamente, chegando a 0.6% do orçamento nacional em 2008, não logrou alcançar nem o percentual de 1% recomendado pela Unesco para o setor. A escassez de recursos mantém a dependência das leis de incentivo para que o setor cultural possa funcionar. O estrangulamento do orçamento faz com que a Lei Rouanet seja o mecanismo de financiamento fundamental no Brasil a despeito da defesa feito pelo governo do papel ativo do Estado nas políticas culturais.
Cabe lembrar que quando a lei foi criada, afirmava-se seu caráter transitório e estimulador, acreditando-se que o mercado passaria a ser autônomo e suportaria os custos da produção, fato que não se verificou.

Dados extraídos da ‘Prestação de Contas Anual do Presidente da República – 2008’, relatório de atuação do poder executivo federal apresentadas à Controladoria Geral da União, apontam que para o Ministério da Cultura, a Lei Orçamentária Anual (LOA 2008) mais os créditos adicionais geraram recursos da ordem de R$ 1,2 bilhão, dos quais R$ 861,9 milhões (71%) foram destinados a despesas que excluem os gastos com pessoal, encargos, precatórios, dívidas e despesas financeiras. Desse valor, R$ 166,9 milhões foram retidos pelos decretos de contingenciamento e suas alterações posteriores. De fato, os recursos livres para aplicação totalizaram R$ 695,0 milhões, com recursos orçamentários empenhados de R$ 650,1 milhões, ou 93,5% do orçamento liberado. Em outras palavras, o MinC dispôs de 650 milhões para utilização em suas atividades finalísticas. Outro dado apresentado na mesma prestação de contas aponta que os projetos financiados com recursos incentivados pela Lei Rouanet e pela Lei do Audiovisual somaram R$ 1,1 bilhão. Nos últimos sete anos, as leis de incentivo injetaram 4,8 bilhões no sistema cultural.

Desse montante de recursos, 40% provém das empresas estatais, sobretudo a Petrobrás, que é de longe a maior financiadora de projetos via leis de incentivo fiscais. A partir da gestão do Ministro Gil, as empresas estatais passaram a distribuir recursos através de editais públicos, visando maior alinhamento à política cultural do governo e corrigindo distorções na sua distribuição (concentração regional, de linguagens artísticas etc.). Esse alto percentual de recursos na mão das estatais, geridos em consonância com o MinC, enfraquece os argumentos levantados pelo governo de que foi transferida à iniciativa privada a gestão dos investimentos públicos em cultura no Brasil. Uma grande parcela sim, mas não toda ela.

Desde o ano passado, quando o Ministro Juca Ferreira assumiu a pasta, um amplo debate público sobre a revogação da Lei Rouanet e um novo projeto de lei para substituí-la tomou o setor artístico e cultural. O governo apresentou o Profic – Programa de Financiamento e Incentivo à Cultura, que cria mecanismos para o financiamento da cultura no Brasil [2]. Prevê os seguintes mecanismos: o Fundo Nacional de Cultura – FNC, com promessas de seu fortalecimento; os incentivos a projetos culturais via renúncia fiscal; os Fundos de Investimento Cultural e Artístico – Ficart, disciplinados pela Comissão de Valores Mobiliários, para projetos economicamente sustentáveis; e o Vale Cultura, ticket no valor de R$ 50,00 que o trabalhador poderá utilizar para ter acesso a filmes, shows, teatro etc., em que o governo permite a renúncia fiscal de 30% do valor, o trabalhador paga 20% e o empregador 50%. Quanto ao Fundo Nacional de Cultura - investimentos feitos diretamente pelo Ministério -, será composto pelas seguintes categorias:

 

  • Fundo setorial das artes;
  • Fundo setorial da cidadania, identidade e diversidade cultural;
  • Fundo setorial da memória e patrimônio cultural;
  • Fundo setorial do livro e leitura;
  • Fundo global de equalização;
  • Fundo setorial do audiovisual.

 

Esse mecanismo prevê que as empresas poderão fazer doações ao FNC e não apenas financiar diretamente projetos via mecenato.

O que o Ministério não informou é com que recursos fortalecerá sua ação direta via Fundo Nacional de Cultura. Apesar dos elogios à abertura de debates públicos, uma das críticas com relação à proposta de alteração da lei refere-se à falta de clareza quanto à incorporação das idéias advindas dos encontros públicos do MinC com a sociedade civil.

As razões expostas pelo governo a justificar a alteração dos mecanismos de financiamento vigentes, dão conta de que no atual cenário os projetos patrocinados, que utilizam quase em sua totalidade dinheiro público, retiram o poder de decisão do Estado e o colocam nas mãos da iniciativa privada, atendendo a uma lógica mercadológica e aos departamentos de marketing das empresas. Tal lógica determina a concentração dos recursos nas regiões mais ricas do país, em algumas linguagens artísticas e favorece produtores já consagrados que conhecem ‘o caminho das pedras’. Tal diagnóstico concentrador apresenta alguns problemas. Em primeiro lugar, apóia-se em dados frágeis quanto à distribuição regional na medida em se baseiam no domicílio do proponente e não na localidade onde os projetos efetivamente acontecem. A alta concentração demográfica da Região Sudeste, por exemplo, é outro fator não levado em conta no diagnóstico do MinC. O mecanismo de renúncia fiscal, relacionado à existência de empresas pagadoras de impostos, espelha a lógica da concentração de riqueza do país. Dados de 2007 exemplificam: São Paulo concentrou 43% dos recursos captados pela Lei Rouanet, mas foi responsável por 46% da arrecadação do imposto de renda das empresas que declaram o lucro real. A restrição ao uso da lei apenas por empresas que declaram o Imposto de Renda com base no lucro real, impede que empresas menores participem das leis de incentivo, o que poderia significar um maior aporte de recursos em regiões pouco beneficiadas. Relatório do Instituto Pensarte aponta que o próprio Ministério quando aplica os recursos do Fundo Nacional de Cultura segue a lógica da distribuição desigual que critica [3].

Outra consequência é a inibição da atuação do poder público e a ausência de uma cultura privada de risco. Segundo o Ministro Juca Ferreira, no período de vigência do Pronac assistimos a uma redução do aporte de recursos privados à renúncia de recursos públicos, ‘chegando em 2007 à relação de nove reais de recursos públicos para cada real de recursos privados.’

No projeto de lei que institui o Profic, um dos pontos mais polêmico é a introdução de critérios que nortearão a pontuação dos projetos e definirão o percentual de incentivo a ser concedido [4]. A Lei Rouanet não previa a avaliação subjetiva dos projetos submetidos ao MinC quanto ao seu valor artístico e cultural. Quanto aos percentuais, os projetos eram autorizados a deduzir 100% de maneira direta do imposto de renda, pelo Artigo 18 da Lei, ou 30% no caso do patrocínio, valor lançado como despesa operacional que no final significavam um resgate tributário da ordem de 64% pelo Artigo 26.  Em parecer do Ministério Público Federal [5], vários dos artigos do novo projeto de lei foram apontados como problemáticos. Segundo o parecer, o projeto possui uma baixíssima densidade normativa, ou seja, depende excessivamente de regulamentação posterior; um dos pontos nevrálgicos é a falta de clareza no estabelecimento dos critérios que determinarão a avaliação do mérito cultural, a ser feita pela Comissão Nacional de Incentivo à Cultura - CNIC, órgão colegiado com representantes do poder público e da sociedade civil, que ainda segundo o Ministério Público, sem que sua composição e funcionamento estejam previstos em lei, transformar-se-á em verdadeiro órgão legislador sobre cultura nacional.

Apesar de toda a retórica do MinC na discussão pública da lei, na abertura de canais com a sociedade civil para que se discutisse alterações e propostas, o que de mais fundamental subjaz a esse debate não vem à pauta de maneira efetiva: o aumento das verbas orçamentárias para o Ministério, questão que vem à reboque de uma discussão mais ampla que é a introdução da cultura como eixo central das políticas públicas, ou seja, pensar a cultura como via de desenvolvimento econômico, social e humano. O Estado deve destinar verbas efetivas para a cultura. Precisamos de mais fontes de financiamento. A política cultural brasileira não pode tão somente apoiar-se nas leis de incentivo, em um único mecanismo de financiamento. Não será a revogação da Lei Roaunet e a introdução do Profic que alterarão o cenário. O debate essencial sobre a importância da cultura para as políticas públicas foi substituído pelo debate acerca dos mecanismos de financiamento.

Um dos programas mais inovadores e emblemáticos do Ministério no governo do presidente Lula é o ‘Programa Cultura Viva – Arte, Educação e Cidadania’, que identifica e apóia projetos culturais inovadores já existentes, desenvolvidos em comunidades em situação de precariedade ou vulnerabilidade social. Tal programa é um dos carros chefe do MinC e busca justamente fortalecer iniciativas da sociedade civil, distribuídas em todos os cantos do Brasil. É um programa bastante interessante, mas que no ano passado contou com um orçamento de R$ 120 milhões, que significam 18% do total dos valores empenhados pelo ministério, mas que se constitui em um orçamento baixíssimo para uma ação tão emblemática para a política cultural do governo federal. Parcerias com estados e municípios fortaleceram a ação do programa, ultrapassando a meta anteriormente traçada pelo Ministério. Parcerias entre os entes federados é outra questão chave para o fortalecimento da cultura no Brasil. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística apontam que os municípios são os mais destinam verbas para a cultura, seguidos pelos estados e pelo governo federal.

A criação de um Sistema Nacional de Cultura articulando os governos federal, estaduais e municipais e a sociedade civil, e o projeto de emenda constitucional (PEC 150) que garanta amplos recursos para o setor, são fundamentais para que se altere de maneira efetiva a ação pública na área cultural.

O governo deve buscar melhorias na lei atual, corrigir distorções, empreender alterações, mas, sobretudo, buscar mais recursos para um aumento orçamentário substantivo. A renúncia fiscal deve ser mais um mecanismo de financiamento e não o principal, mas constitui-se hoje em mecanismo fundamental. Os dados apresentados no relatório presidencial enviado à Controladoria Geral da União comprovam como não podemos abrir mão deles sob pena de paralisar o setor cultural, desmontá-lo: é preciso encontrar equilíbrio e complementaridade entre essas ações. O contexto de crise financeira global que vivemos é mais um agravante e será um elemento a mais no desmonte que poderá se operar.

O ponto fundamental que deve pautar as discussões é a importância da cultura como elemento essencial para a criação de sujeitos críticos, para a construção de espaços públicos e democráticos em que a diversidade cultural possa encontrar canais de expressão, em que a pluralidade de manifestações possa se mostrar, que as diferenças e conflitos, parte constitutiva da cultura, possam conviver. A cultura permite a construção de projetos coletivos, que nada tem a ver com o discurso identitário excludente, projetos mais necessários agora do que nunca, quando o tecido social está mais e mais esgarçado, e novas tramas precisam ser tecidas. Não discutimos que políticas culturais queremos, que sociedade desejamos construir. A manutenção do papel secundário reservado à cultura se reflete no orçamento minguado e por sua não introdução nas pautas das políticas nacionais, como lembra Marta Porto. Eis a discussão central.

A política cultural hoje deve ser pensada como criadora de canais que viabilizam e incentivam a diversidade, a expressão dessa diversidade. Temos no Brasil uma cultura pulsante que acontece não apenas nos circuitos consagrados, mas, sobretudo, fora deles. Hermano Vianna expõe de maneira contundente:

Não tenho dúvida nenhuma: a novidade mais importante da cultura brasileira na última década foi o aparecimento da voz direta da periferia falando alto em todos os lugares do país. A periferia se cansou de esperar a oportunidade que nunca chegava, e que viria de fora, do centro. A periferia não precisa mais de intermediários (aqueles que sempre falavam em seu nome) para estabelecer conexões com o resto do Brasil e com o resto do mundo [6].

 

 

É preciso fortalecer esse coração pulsante que é a cultura, encontrar mecanismos e canais para sua expressão, irrigá-los, fortalecer os já existentes. O Estado deve se tornar mais democrático e criar espaços que viabilizem e incentivem a cultura e sua diversidade. Cogestão é uma palavra chave a ser utilizada hoje na relação entre as políticas públicas e a sociedade civil. Autogestão também. Para isso, não é possível pensar as políticas culturais a não ser como um sistema integrado que diz respeito não apenas à produção, mas à sua distribuição e, sobretudo, ao uso que os indivíduos dela farão; indivíduos vistos como sujeitos de sua vida cultural e, portanto, política. A constituição de sujeitos críticos (e porque constituídos em sua subjetividade podem pensar projetos coletivos) é fundamental para pensar a centralidade da liberdade individual para o desenvolvimento humano e a cultura é essencial para esse processo: amplia as possibilidades de eleição e, consequentemente, a liberdade. Nas palavras do economista Amartya Sen,

O desenvolvimento é realmente um compromisso muito sério com as possibilidades da liberdade. (2002: 180)

Que políticas culturais para um desenvolvimento sustentado, em que a diversidade cultural tenha garantia de circulação e competição na arena pública, e comprometido com a eliminação das desigualdades, é uma discussão fundamental para a constituição de uma sociedade democrática.

 

REFERÊNCIAS

PILAGALLO, Oscar. Uma nova pactuação: entrevista com o Ministro Juca Ferreira. IN: Revista Observatório Itaú Cultural/OIC. n.7, (jan./mar.2009). São Paulo: Itaú Cultural, 2009, p. 33-49.

RUBIM, Antonio Albino Canelas. Políticas culturais do Governo Lula / Gil: Desafios e enfrentamentos. In: RUBIM, A. e BAYARDO, R. (Orgs.) Políticas culturais na Ibero-América. Salvador: Edufba, 2008, p.51-74.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das letras, 2002.

VIANNA, Hermano. Manifesto. Acessível em www.overmundo.com.br

 


[1] A ideia das três tristes tradições no campo das políticas culturais brasileiras - ausência, autoritarismo e instabilidade – foi desenvolvidas por Albino Rubim. Ver RUBIM, Antonio Albino Canelas. Políticas culturais do Governo Lula / Gil: Desafios e enfrentamentos. In: RUBIM, Antonio Albino Canelas e BAYARDO, Rubens (Orgs.) Políticas culturais na Ibero-América. Salvador: Edufba, 2008, p.51-74.

[2]  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Consulta_Publica/programa_fomento.htm

[4] Pelo projeto do MinC, os percentuais a serem concedidos a partir do critério de relevância cultural serão :  30%, 60%, 70%, 80%, 90% e 100%.

[6]  www.overmundo.com.br

 

Maria Hirszman, em Um raro espaço para falar de arte, comenta a empreeitada do grupo de críticos: “De que adianta continuar refletindo sobre a produção deste ou daquele artista diante do tamanho da crise enfrentada pelo setor de artes visuais, absolutamente carente de políticas claras de apoio à produção, conservação e divulgação?” Em El efecto Philco, Rafael Polar levanta questões que dialogam com essa sequência de cenas.