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Vista Cansada

Viviane Sarraf, coordenadora do Centro de Memória Dorina Nowill na Fundação Dorina Nowill para Cegos critica a hegemonia da visão sobre outros sentidos esquecidos pelo pensamento museológico: “Para que os museus garantam uma comunicação mais eficaz e abrangente, precisam considerar todos os canais de percepção dos visitantes, não apenas a visão.”

 

Roda dos Prazeres

Lygia Pape, Roda dos Prazeres. Cortesia Projeto Lygia Pape

 

Para que os museus garantam uma comunicação mais eficaz e abrangente, precisam considerar todos os canais de percepção dos visitantes, não apenas a visão.

É possível elencar alguns motivos para uma nova forma de concepção da Comunicação Museológica. Um deles é a existência de uma grande diversidade de bens patrimoniais como as manifestações consideradas patrimônio imaterial. Profissionais da área de patrimônio e estudiosos problematizam constantemente as dificuldades de tombamento, conservação e documentação de acervos imateriais. Entretanto um caminho possível para preservação e difusão destes acervos pode ser a comunicação, já que uma tradição ou parcelas de uma cultura só serão devidamente preservadas pelas pessoas em suas memórias.

Tomemos como exemplo as receitas tradicionais de alimentos. O que deve ser tombado, o fazer ou o paladar? Uma receita resulta em um alimento de sabor único, que por sua vez precisa ser preservado, já que é aquele sabor que comunica as influências de uma ou mais culturas na combinação de ingredientes ou no tipo de utensílio utilizado para o preparo. Um autêntico "Baião de Dois" é reconhecido por seu aspecto visual? Pelos ingredientes utilizados no preparo? Ou pelo sabor? As exposições dedicadas a alimentos ou a uma cultura ditada por alimentos específicos geralmente articulam imagens bidimensionais, objetos expostos em vitrines e textos relacionados ao tema, e neste sentido uma exposição museológica e um livro não são diferentes, a não ser pelo espaço físico.

Outros motivos para incentivar a mudança de estratégias de comunicação são as propostas de imersão. Artistas, museus, produtores culturais começam a descobrir os recursos tecnológicos utilizados com a intenção de transpor as pessoas para situações inusitadas. Mas também é possível realizar exposições imersivas com o uso combinado de estímulos diferentes. Como exemplo podemos citar uma temática como a do Candomblé: para transpor o visitante de um museu a um terreiro típico da religião é necessário o uso dos sons, odores, iluminação, esfumaçamento do local. Tudo isso bem planejado e sincronizado oferece uma experiência no mínimo multissensorial.

Os sentidos são os canais de recebimento da percepção de todos os seres, no entanto o que presenciamos é uma exploração excessiva da visão em detrimento dos outros sentidos quase marginalizados. A memória precisa de estímulos para ser ativada, e esses estímulos muitas vezes são um cheiro familiar, um gosto de alguma lembrança da infância. Se o museu é o lugar da memória, precisa então trabalhar com estes fatos.

A visão é o sentido mais bombardeado de informações em uma exposição museológica, e esse bombardeio contribui para a formação de uma barreira quase impenetrável. Assim observamos as pessoas passando pelas exposições sem se envolverem com as propostas.O som é um recurso extremamente explorado e vital no cinema, nas telenovelas e até mesmo em exposições temporárias com temáticas polêmicas, porque ele envolve outro sentido para que a visão seja seduzida. O tato é considerado pelos museus como um vilão, pelos prejuízos à conservação de acervos materiais. Essa afirmação é comprovada por importantes pesquisas, que também apontam que algumas matérias são mais resistentes que outras, que por sua vez poderiam integrar uma política de acesso como no caso de alguns museus mais abertos ao público com deficiências visuais. Na França a política de acesso ao patrimônio oferece uma licença às pessoas com deficiências visuais de permissão ao toque em todas as obras de arte e monumentos históricos instalados em locais públicos. O olfato começa a ser considerado em estratégias de comunicação ligadas a acervos olfativos como museus de essências e perfumes e parques botânicos. O paladar ainda é pouco utilizado nos museus a não ser pelas cafeterias anexas que raras vezes oferecem cardápios ligados aos temas presentes nos acervos dos museus que as abrigam. Esse tipo de ação é mais constante em propostas temporárias de exposições com espaço para uma ação cultural que extrapola o espaço expositivo.

Esses indícios apontam um caminho para que os museus se comuniquem com mais dinamismo com seus visitantes e os cativem, sendo eles pessoas com deficiências visuais ou pessoas com "vista cansada" como eu.

 


 

Viviane Sarraf é graduada em artes plásticas pela FAAP e pós - Graduada em Museologia pela USP, onde desenvolveu a monografia "A Inclusão das Pessoas com Deficiências Visuais nos Museus: uma análise realizada com base em avaliações sobre acessibilidade". Atua desde 1998 com projetos para pessoas com deficiências em museus e exposições.Trabalha desde 2002 na Coordenação do Centro de Memória Dorina Nowill na Fundação Dorina Nowill para Cegos.

Tempos depois a hegemonia da visão ainda persiste, em análise de um caso mais especifico: Não toque nas obras (mas as obras podem te tocar), também por Viviane Sarraf. A maneira como objetos são dispostos no espaço museológico se conecta com estas pecepções em Desorden, Diseminación y Dudas. El Discurso Expositivo del Museo en Las Últimas Décadas, por Maria Bolaños.