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Caso Caroline Pivetta da Mota na 28a Bienal de São Paulo

André Mesquita, Artur Matuck, Cristiane Arenas, Euler Sandeville, Flavia Vivacqua, Gavin Adams, George Sander, Henrique Parra (texto enviado por email em 18 de dezembro de 2008)
 

CASO: No dia 26 de outubro, um grupo de cerca de 40 pichadores invadiu o prédio da 28ª. Bienal de São Paulo. Sua ação trouxe, pelo caráter transgressor, ansiedade e apreensão, levando a uma reação da segurança privada e ao acionamento da polícia. Em decorrência, duas pessoas foram detidas, sendo que uma delas permanece presa até hoje. Caroline Pivetta da Mota, presa há mais de 50 dias em uma penitenciaria feminina sem julgamento, sob a acusação de infração à Lei de Crimes Ambientais (Lei n°9.605).
 
 
A abertura da 28a. Bienal poderia ser um evento marcado pelo interesse e pela celebração, no entanto, já vinha precedida de certa tensão. Uma intensa polêmica se estabelecera sobre o projeto curatorial contratado ao Sr. Ivo Mesquita e Sra. Ana Paula Cohen. Amplamente divulgado pela imprensa como uma forma de responder às dificuldades institucionais e alegação de falta de verbas, mesmo no meio cultural o projeto curatorial suscitava duras críticas. Não só críticas, mas objeções quanto à sua clareza e os limites do papel do curador e da instituição.

As polêmicas ganharam os jornais, a mídia televisiva e logo a internet. Às vésperas da abertura da Bienal uma perplexidade se fazia sentir, e questionamentos eram colocados por estudiosos e intelectuais, começavam a haver também inúmeras manifestações de descontentamento em círculos cada vez mais abrangentes. Iniciativas independentes eram anunciadas pela internet para ocupação e manifestação no espaço deixado vazio no segundo andar. Aliás, vazio que passou a ser visto como a identidade da Bienal, substituindo sua designação oficial "Em Vivo Contato" por "Bienal do Vazio", uma referência à ausência. O artifício de uma revisão moderada do sentido da Bienal proposto pelos curadores diante da crise financeira, e destinada a ser realizada entre um círculo pequeno de experts, passou a expor fragilidades bem mais profundas da Fundação e dos rumos que vem tomando a própria Bienal.

A polêmica ultrapassou os limites conceituais sugeridos pela curadoria e foi apropriada pela opinião pública. Não se pode creditar à Bienal esse movimento, mas a uma consciência crescente de grupos de criadores que vão se estabelecendo à margem do sistema oficial das artes com propostas cheias de dinamismo. O vazio provocou possibilidades que a Bienal não soube aproveitar, nem podia perceber, porque se fundavam em tensões totalmente estranhas à compreensão possível no âmbito institucional, referindo-se às latências do ambiente em que este se insere, sem dar-se conta.

Essas possibilidades não aproveitadas teriam dotado o vazio de vivências múltiplas da diversidade de expressões que existem nos dias de hoje. Nesse contexto de isolamento e ensimesmamento, nesse tornar público sua incapacidade de ocupação e projeto, o vazio do edifício tornou-se um convite a quem tinha o que dizer. Não se admira que o interesse leigo em torno das possibilidades criativas de ocupação de um espaço privilegiado, e que é oferecido somente sob controle, fruído apenas mediado por explicações, passasse a evidenciar uma realidade incômoda.

A afirmação radical do branco e do vazio, ao expor o edifício em sua plástica e reduzir sua ocupação à visualidade, negou seu próprio sentido arquitetônico e o do Parque do Ibirapuera. O conceito espacial representado pelo projeto moderno brasileiro, que gerou esses edifícios, vinculava-se em algumas vertentes a uma busca política que hoje podemos até discordar, mas que era de transformação, a partir de um sentido público do espaço. O patrimônio representado por essa arquitetura não é dado apenas pela sua forma, mas também pelo ideário que a gerou.

Nesse contexto, seria de se esperar que o vazio produzisse um espaço público de manifestação. O que seria convergente também com todo o processo experimental da arte desde o século 19, e que a partir daí perpassa a arte moderna e contemporânea. Seria, portanto, também de se esperar que não fosse estranho à matéria de que trata a Bienal, isto é, manifestações artísticas contemporâneas, e à tradição ainda recente de rompimento das fronteiras entre arte e vida, e de participação na constituição mesma da obra artística. Manter esse espaço vazio à força estabeleceu, portanto, uma contradição com o sentido público desse espaço, e com o sentido público da expressão cultural atual, invocado de modo tão superficial pela Bienal: "Em Vivo Contato".

Nesse contexto, anunciava-se um impasse evidente. Ao qual a curadoria da Bienal respondia, antes mesmo de qualquer acontecimento, com uma ameaça policial. Segundo declarou Ivo Mesquita às vésperas da inauguração: "Estamos esperando esse tipo de ação e tomamos providências para evitá-la. Isso é um absurdo" e:  "Nós sabemos que eles estão convocando gente da periferia da cidade para fazer isso, e essas pessoas não sabem o que elas vão encontrar" (Folha de São Paulo, 24/10/2008). O que gerou mais recentemente a declaração na Folha de São Paulo, de Lisette Lagnado, curadora da 27ª Bienal:  "Acho lamentável que não tenha havido um diálogo" (Folha de São Paulo, 13/12/2008).

O lógico seria que se buscasse o diálogo, ainda mais dada a importância que funções educativas vêm adquirindo nas instituições museológicas e culturais. Nem a manifestação dos pichadores, nem a criminalização a priori de sua ação, que poderia ter sido tratada como expressão, aconteceram assim desvinculadas de um contexto em que a Bienal afasta-se de seu papel cultural. Mesmo a alegada falta de verba não impediria que um grande número de artistas pudesse ser convidado a ocupar o espaço. Nos próprios boletins da Bienal podemos ver uma série de manifestações espontâneas que ocorreram nesse espaço (vide editorial do Jornal da Bienal, 07/11/2008), sem causar qualquer prejuízo em sua ambiência, e ainda assim sucessivamente reprimidas pela segurança.

Por outro lado, a cidade de São Paulo, como outras inúmeras cidades, vive um momento de intensa efervescência cultural à margem das instituições e das verbas oficiais. Em cada bairro emergem artistas e grupos de jovens abraçando formas de expressão peculiares, focados em processos coletivos de trabalho. Grande parte dessa produção começa a receber atenção, despertando interesse por seus processos e não raro pela sua proposição estética. Muitas formas marginais de expressão vão sendo assim trazidas para o centro do sistema cultural, reconhecidas aos poucos como formas elaboradas e lídimas, tais como o hip hop, o grafite, entre outras.

A pichação ainda revela-se um problema à parte e difícil, que gera polêmicas e divergências de opiniões. Não se pode classificá-la simplesmente como arte, nem ignorar prejuízos financeiros que possa trazer. No entanto, é importante reconhecer que é um fenômeno de inegáveis proporções e que está a expressar uma realidade social e cultural complexa. Mesmo opiniões mais conservadoras entendem que não se pode resolver a questão apenas com ações punitivas, como declara a Diretora da FAU Mackenzie Nádia Someck: "reduzir as pichações em São Paulo exige diálogo e não tinta" (referindo-se à lei) e, o Secretário Municipal das Subprefeituras, Andrea Matarazzo, declara: "Nada disso adianta se não houver um misto de punição e educação" (Jornal da Tarde, 07/07/2007).

Há outros entendimentos possíveis. Vertentes da antropologia e da sociologia, reconhecendo as contradições sociais que geram o fenômeno, o entendem como linguagem, formação de identidade, expressão cultural e muitas vezes politica, constituindo sob esse ponto de vista uma poética visual urbana. Para Jorge Coli: "Pichação e grafite são transgressores. Brotam de uma cultura socialmente bem marcada. São arte, coisa que muitos já perceberam" (Folha de São Paulo, 14/12/2008).

O designer francês François Chastanet, autor do livro “Pixação – São Paulo Signature”, argumenta que "os pixos são um alfabeto desenhado pela invasão urbana”, e constata que “Os pixadores de São Paulo foram capazes de formar sua própria identidade pela tipografia, este fato é único no mundo da comunicação visual de subculturas” (Folha de São Paulo, 13/12/2008).

A Fundação Bienal e seus curadores, diante da questão sócio-cultural de tão difícil compreensão nesse momento, e que reconhecidamente depende de um diálogo para ser enfrentado, escreveu o seu capítulo mais dramático: o encarceramento na Penitenciária Feminina de Santana/ São Paulo (Carandiru) de Carolina Pivetta da Mota, única presa em pichação no andar vazio dentre um grupo de cerca de 40 pichadores.

Os motivos da jovem de 23 anos eram até bem consistentes e convergentes com as possibilidades abertas pela Bienal. Declarava a curadora Ana Paula Cohen às vésperas da abertura: "O vazio foi mal entendido desde o início. Com ele queremos discutir o princípio da arquitetura moderna no Pavilhão e, como ele está aberto, propostas podem surgir" (Folha de São Paulo 24/10/2008). Para Caroline era exatamente o que estava fazendo, por um percurso imprevisível para a curadoria: "Estava me manifestando contra os desfavorecidos, os que não têm acesso àquela coisa toda" e "Eu me identifico com o vazio" declarou Caroline (Folha de São Paulo, 15/12/2008).

O vazio de Caroline conduz a uma busca de identidade, em oposição ao vazio da Bienal que era uma impossibilidade de realizar. O que levou Fernando de Barros e Silva a escrever: "Entre o vazio existencial da jovem 'Sustos' e o vazio conceitual da Bienal, há menos identificação do que antagonismo: a fúria da primeira é o impulso desesperado de vida que traz a luz o espírito burocrático e mortificante da segunda" (Folha de São Paulo, 15/12/2008).

A nota de esclarecimento emitida pela Fundação Bienal nos informou que não é de sua responsabilidade o destino da jovem e que agiu em defesa do patrimônio público, o que é sua obrigação. Eximiu-se assim da responsabilidade de um posicionamento ético diante do destino da jovem presa por mais de 50 dias em uma penitenciária. O destino de Caroline, de forma inesperada, agora se entrelaça com o da Fundação e marca para sempre com um drama humano o percurso de uma instituição importante na esfera cultural.

As poucas declarações do curador da Bienal na imprensa soam estranhas. Numa rara oportunidade em que o assunto foi tratado apenas tangencialmente, Ivo Mesquita reconhece que apesar de entender que "a pena é pesada", descarta a possibilidade de tomar qualquer tipo de ação: "Eu não sei o que a curadoria tem a ver com isso" e: "A curadoria não pode fazer nada, nem deve fazer nada. A curadoria é um serviço terceirizado, que a Bienal contrata apenas para fazer um projeto" (Folha de São Paulo, 13/12/2008). Nota-se que no ato de Caroline, não houve depredação de nenhuma obra da Bienal, a ação também não comprometeu a integridade arquitetônica do edifício, e foi realizada onde se apresentava como um espaço aberto ao vivo contato.

Muitos desejam uma arte que brote da vida e para a vida, para a liberdade, para a emancipação e o crescimento humano. Isso não inclui danos ou violência de qualquer tipo, e bem sabemos que a arte, para a qual se pensou inicialmente a Bienal, é em sua origem questionadora. Pensamos possível uma arte que não seja apenas para ornar paredes, livros e conversas. Qual o papel da Fundação Bienal hoje, ainda herdeira - como fazem crer em seus catálogos - de uma tradição crítica e artística que bebeu nessas fontes, quando não eram ainda vistas como arte, mas como insubordinação e até incapacidade?

Nossa intenção não é discutir neste momento a validade artística, ou não, da ação de Caroline. Mas parece necessário pensar se tão longa permanência numa penitenciária é troca humana justa para o delito que a jovem teria cometido, pensando apenas participar e tornar pública a existência de outras realidades. Se não há rigor desigual e desmedido, e nada construtivo. Se em resposta a uma situação potencial de risco institucional, não se estabeleceu de fato uma situação que coloca em risco desnecessariamente o destino de uma pessoa. Se a uma situação de possível ameaça, não se estabeleceu uma situação arbitrária porque injusta e efetiva de violência ainda maior. As ações em cadeia nessa Bienal e seu contexto resultaram na reação também agressiva do grupo de pichadores. O que fazemos para interromper esse processo?

Preferiu-se interpretar o ato de pichação não como expressão consoante com um espaço que poderia ser de livre manifestação, mas como dano. Ao ser assim classificado, gerou-se a atual situação. Trata-se sim, e inequivocamente, de decisões.  O "dano" causado pelo grupo poderia ter sido corrigido, inclusive com a participação deles. E corrigido facilmente, como de fato foi, com uma simples pintura de parede, demonstrando não ser ato permanente. A pintura, ao que sabemos, resume-se a uma atividade que deve ser rotineira, antecedendo e sucedendo exposições, expressando o zelo da Fundação pelo espaço arquitetônico que a abriga. O que de fato está em jogo é uma questão ética sobre a liberdade de uma pessoa e os valores que praticamos ao representar as instituições das quais participamos.

Teria cabido uma ação restaurativa, não só do edifício, mas da liberdade. Trata-se de estabelecer o esclarecimento e a restauração de um patrimônio maior, que é o significado possível da arte e, acima disso, do sentido humanitário da nossa vivência comum. Também, do sentido humano que deve vitalizar a arte e as instituições, porque se estas adquirirem identidade e ânimo autônomos e deixarem de ser ferramentas e instrumentos de nossa criação, os processos de decisão facilmente se tornarão cativos de um anonimato que de fato não existe, e nossos monumentos, de patrimônio público, passarão a uma carcaça daquilo que sonhamos possível construir ao instituí-los.

A detenção de Caroline por quase dois meses fere seus direitos humanos de responder em liberdade pelos atos cometidos, tornando-se uma ação de medida desproporcional. Nessas condições, a sua permanência na prisão é reveladora de um conjunto complexo de fatores sociais, em especial, a vulnerabilidade dos seus direitos  provocadas por uma situação de desigualdade de gênero e de condição socioeconômica.

Em meio à necessária decepção e indignação com a situação que se estabeleceu, buscamos retomar a valorização da liberdade, da expressão e da vida humana, sem a qual as discussões sobre arte e cultura, e nossas belas criações, como os salões elegantes e alvos que as abrigam, são apenas o verniz da barbárie que construímos com nossa indiferença.

 

São Paulo, 16 de dezembro de 2008,

Andre Mesquita, Artur Matuck, Cristiane Arenas, Euler Sandeville, Flavia Vivacqua, Gavin Adams, George Sander, Henrique Parra.