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Entrevista com Moacir dos Anjos

 

 

FP_ Após ter feito a curadoria de uma edição da Bienal de São Paulo, você confirma a importância mundial desse evento, ou acha que há um exagero de sua influência pelo discurso institucional?  Você, enquanto profissional, se viu em uma esfera de influência digamos, superior, no campo de atuação curatorial? O que mudou na sua relação com o mercado de arte por conta dessa experiência?

MA – São duas perguntas de natureza distintas, embora relacionadas. Em relação à primeira, não há dúvidas a respeito da importância internacional da BSP, conquistada por sua longevidade e por servir, por muito tempo, como câmara de eco e de encontro para artistas de diferentes partes do mundo, principalmente os da América Latina. O que não quer dizer que esta seja uma posição que vá, necessariamente, manter-se indefinidamente. Ante inúmeras outras exposições similares no mundo (situação radicalmente distinta do que ocorria até a década de 1980), cabe à BSP reinventar-se sempre, provando-se relevante para as discussões em curso no mundo.

Em relação à segunda pergunta, não creio que a experiência de ser curador da BSP tenha acarretado qualquer mudança em minha relação com o mercado de arte. Se não compactuo com estratégias especulativas do mercado, tampouco o demonizo. Aqui, como em qualquer outra área da vida, o importante é deixar claro quais são os parâmetros da relação entre instituição e mercado, que jamais pode ser de dependência ou de subserviência da primeira em relação ao segundo. Uma vez que os objetivos e os limites de atuação de uma e de outro sejam estabelecidos e sua relação pactuada em termos objetivos, não há porque adotar posições histéricas contra esse ou aquele participante do campo das artes.

 

 

FP_ Sua formação acadêmica é de economista. Como você vê o papel econômico desempenhado pela Bienal?

MA_ A Bienal é um instrumento importantíssimo na qualificação de toda uma rede de profissionais que trabalha no campo das artes visuais, quer por sua dimensão, quer por sua importância simbólica. De curadores a montadores, de educadores a arquitetos, de designers a moldureiros, entre muitas outras ocupações, muitos se beneficiam das demandas que uma instituição como a Bienal periodicamente faz sobre o meio. A Bienal promove, portanto, a profissionalização de uma mão-de-obra que vai atuar também em outras instituições e eventos na cidade de São Paulo, além de outras localidades.

Para além desse aspecto mais imediato, embora muito relevante, a Bienal tem, obviamente, um impacto na valorização simbólica e patrimonial das obras que acolhe em cada uma de suas edições, queiram ou não queiram admitir seus curadores. Não é algo que dependa da vontade de um ou de outro, mas o resultado dos modos de produção e circulação de bens simbólicos em sociedades capitalistas. Mesmo a inclusão de artistas pouco ou nada conhecidos do chamado ‘circuito da arte’ não impede sua valorização rápida e mimética entre seus agentes, posto que em pouco tempo aquele que não possuía visibilidade passa a tê-la como resultado de sua participação na Bienal, sendo quase que imediatamente absorvido, de algum modo, para o interior de um sistema de consagração artística e financeira. O fundamental, em meio a isso, não é tentar escamotear a existência desse processo, ou tentar negá-lo em termos moralistas, mas sim torná-lo o mais transparente possível, de modo que não restem dúvidas sobre os critérios de escolhas feitas pela curadoria, que não devem jamais se pautar por interesses alheios a suas convicções estéticas.

 

 

FP_ Já que você mencionou a necessidade do evento de "reinventar-se sempre", que outras exposições ou eventos apontam atualmente um caminho interessante para se pensar a Bienal, quando se trata de invenção de novos formatos?

MA_ Existe, hoje, uma quantidade grande de bienais e outras mostras, de diversos formatos e tamanhos, que buscam experimentar com diferentes modelos expositivos, e não caberia aqui fazer um inventário deles.  Acho, contudo, que as propostas mais interessantes são aquelas que reconhecem a grande permeabilidade do discurso artístico em relação a outros campos do conhecimento, assim promovendo um contato estreito, por meio de estratégias e protocolos variados, entre o campo das artes visuais e os domínios, por exemplo, da literatura, da filosofia, da dança, da política, do teatro, da música, entre muitos outros. Além disso, estou convencido de que existe um descompasso entre os ganhos que um evento do porte da BSP possui em termos de visibilidade para as artes visuais e as dificuldades que esse formato cria para se exibir adequadamente muitas das mais relevantes expressões artísticas feitas hoje em dia. Em uma exposição de tamanho tão grande, em que a pressão por um sucesso quantitativo é enorme, tudo é superlativo e pouco espaço existe para a atenção cuidadosa que muitas obras necessitam para serem exibidas e propriamente conhecidas.

 

 

FP_ Sobre este descompasso entre "os ganhos que um evento do porte da BSP" e "as dificuldades que esse formato cria para se exibir adequadamente muitas das mais relevantes expressões artísticas feitas hoje em dia", podemos chegar a dizer que, ironicamente, uma prática curatorial que conte com o espaço, recursos e expectativas de um museu local que não necessariamente tenha como foco a pretensão de fomentar a produção de arte contemporânea, acaba sendo, por uma questão de escala, mais apropriada para a produção contemporânea hoje do que uma instituição como a Bienal, que objetiva esta produção desde sua fundação? Em que sentido nossas instituições devem se transformar para que consigam dialogar com as produções contemporâneas mais relevantes, sem demandar, em troca de sua realização ou circulação, que abram mão de suas possibilidades mais significativas?

MA_ Há sempre perdas e ganhos nas escolhas feitas em torno da exibição da produção artística. O importante é que as instituições tenham clareza sobre quais são suas missões. Para algumas delas, apresentar exposições de modo espetacular e criar filas na calçada são valores a serem levados em conta. Para outras, o desdobrar cuidadoso do conhecimento que a arte traz em potência é que deve mover suas ações. Entre esses dois extremos, há várias possibilidades de atuação. Mais e mais, me inclino pelo segundo modelo, em que critérios produtivistas são substituídos por uma atenção ao poder de interpelação que a arte possui. Atenção à potência que a arte tem de causar desassossego e de abrir conversas com vários outros campos de conhecimento. Não se trata de ficar de costas para o público, mas de apostar mais em sua inteligência. Também não se trata necessariamente de uma questão de escala, pois, no modelo mais investigativo, mesmo instituições de pequeno porte e locais podem se tornar muito relevantes.

Mas nada impede que instituições grandes e de atuação regional ou nacional tomem a si esta responsabilidade. Muito pelo contrário, ao fazer isso, poderiam inclusive servir de baliza e exemplo para mais outras tomarem a arte seriamente. O fato é que o meio artístico no Brasil parece ter se desenvolvido, nos últimos anos, mais na direção do modelo institucional que preza o espetáculo e o grande evento. É preciso criar estratégias para fortalecer as instituições voltadas à investigação e ao experimento, e se possível conectá-las em rede. Somente assim será possível, gradualmente, tornar as artes visuais um campo de interlocução efetiva sobre o que se passa no país e no mundo, e não mero entretenimento.

 

Entrevista realizada por correspondência, de março a abril de 2013.

Perguntas e edição: Gilberto Mariotti