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Câmera Obscura, Gilberto Mariotti

 

Registro de “Luminoso”

 

Antes de aceitarmos o convite feito pelas fotos para adentrar o mundo fictício por elas narrado – ou imaginado, inverto o convite: que pensemos no meio pelo qual nos chegam estes supostos registros, que com despretensão programada, nos querem convencidos e absortos em uma cena feita de ação e verdade.

João me diz que as fotos são do celular de alguém. Por elas sou levado a ver momentos em que o jogo proposto por ele se desdobra nesse evento de negociação, uma feira. Parece-me que a interatividade mais efetiva ocorrida a partir do “Luminoso” que me são narradas pelas fotos não é a organização das cerejas em um plano metálico – por mais que sejam fundamentais estes materiais e suas formas para a ativação do jogo - desde que esta ação participa um tanto cinicamente da dimensão espetacular do evento, mas sim a maneira como a ação é registrada.

Há um tipo de competência visível muito peculiar a estes registros. Diversamente de um registro “oficial”, ou talvez “profissional” (e aqui poderíamos nos perguntar o quanto todo cidadão que atua como fotógrafo diletante tem se profissionalizado quanto mais investe em seu suposto lazer), acredita-se que se registra a partir da própria subjetividade gerada pela situação proposta pelo trabalho de arte, um “testemunho de dentro da relação estética”. Ou seja, um registro da experiência em si mesma, o que soa como contradição básica, se partirmos do princípio, já muito aceito hoje em nossos círculos acadêmicos, de que as imagens nos fazem mais distantes da possibilidade de experiência a cada clique de celular.

Esta interferência e apropriação do sentir e das ações pela fotografia se conecta, a meu ver, com a situação disparada por “O Fantasma”, imagem criada especificamente para o Centro Cultural São Paulo, tanto quanto com o trabalho pensado para o contexto do prêmio organizado pelo British Council, “"Phillip King, Tim Scott e William Tucker, de João Loureiro". Conecta-se também com uma definição a que chegamos em conversa prévia, precedida por tantas negativas: a de uma certa visualidade, que seria matéria e estratégia para o trabalho do João (sempre de forma muito discreta).

Em “O Fantasma”, uma foto é pensada como site specific, ou seja, o motor do trabalho conta com a imposição de um imaginário que não nasce do respeito às categorias da imagem a que os usuários do espaço estão acostumados. A foto, se colocada exatamente no espaço a que se referia, talvez funcionasse como espelho do cotidiano do trabalho dos funcionários do CCSP. Mas colocada no mezanino acima, passava a exercer outro nível de influência: uma imagem, a um só tempo, de aviso e de saída.

Não poder confrontar foto e espaço simultaneamente nos obrigava a ligá-los na memória, como ligamos, pela memória, momentos diversos ocorridos em espaços que julgamos repetidos ou comuns. A imagem passa a participar do jogo de elaboração do espaço no mesmo plano das imagens que produzimos ao olhá-lo.

Contudo, nossa possibilidade de interação com a imagem se modifica quando esta reaparece publicada no jornal, ilustrando uma polêmica iniciada por usuários do espaço. Tal reação está ligada à relação mantida pelos funcionários (ou de parte deles) com a imagem (me parece que não apenas com aquela imagem especifíca) se fundamentar numa concepção que demanda desta um papel ilustrativo. Uma relação com o imaginário que, também funcionária, serve à confirmação submissa das ideias e noções já fixadas.

A imagem ganha outro estatuto quando é inserida na mídia impressa. O jogo imposto às imagens pela imprensa as obriga a falar de modo submisso às manchetes, embora haja exceções que falem à revelia do texto. Geralmente o que se exige delas é justamente o tipo de comportamento funcional de confirmação do fato, o registro da verdade, a prova de realidade que as palavras já não podem oferecer. A imagem que deu origem a “O Fantasma” passa a jogar este jogo quase como se tivesse aprendido com a reação de seu público anterior e restrito, aceitando, com maior malícia – embora involuntariamente – um campo mais amplo de atuação.

Se antes a cena absurda de um grupo de fantasmas concentrados em seus afazeres e funções, na composição de um local de trabalho institucional, era capaz de causar deslocamento pela comparação com o espaço “real” , agora, fingindo-se de prova e agindo como foto, potencializava o absurdo: antes mesmo de lermos a reportagem, víamos o espaço característico da repartição pública “realmente” tomado por fantasmas, e até os moveis que nossos impostos pagaram haviam se fantasmatizado, eram espectros – ou fingiam ser, usando o recurso incomodamente infantil de cobrirem-se com lençóis – e já não está disponível o próprio espaço referido para nos servir de prova contrária, para desmentir o registro que o jornal construía.

 

O fantasma

 

Mesmo as reportagens, na pretensão de enumerar fatos, se formalizam como uma colagem de declarações e anedotas, independentemente de as considerarmos factíveis: a forma é determinantemente submissa a um jogo anterior de edição em que o conteúdo das frases se torna quase irrelevante. A foto, por algum tempo, trabalhando em tensão com a lógica geral da folha, consegue uma ambiguidade valiosa. O leitor recorre à prova visual, em fuga do texto, ao que ela narra que “realmente”, o que se realiza, o que se torna verdade – como nos explica Flusser – é que o absurdo reina, como de hábito.

Se esta reinvestida da imagem pode parecer involuntária neste caso, em "Phillip King, Tim Scott e William Tucker, de João Loureiro", a consciência da hegemonia da imagem parece estruturante ou disparadora para a encenação de um conjunto de trabalhos tridimensionais, e o deslocamento se dá inversamente, pelo trânsito de saberes ou de verdades da “fotografia de registro” que nos questionam de quanto dessa “visualidade” da landart pôde exercer uma influência mais eminente do que suas proposições formais.

Se voltarmos então a estes registros de “Luminoso”, enviados por funcionários da galeria (novamente a relação com a imagem passando pela funcionalidade, a pretensão de registro, imersa na relação de obrigatoriedade e glamour que uma galeria de arte pode imputar a seus “colaboradores”) veremos um posicionamento que, na tentativa de dar suficiente distância ao objeto, acaba por refazer em grande medida seu princípio de participação.

 

"Phillip King, Tim Scott e William Tucker, de João Loureiro"

 

Se posicionar as cerejas no tabuleiro não constitui, a princípio, participação efetiva - antes um papel de assujeitamento que talvez se evidencie ao participante - no caso do funcionário da galeria, esta condição ainda assume outro peso. Para ele o jogo trata de ser cumprido, realizado. Percorrer um caminho previsto, e quem sabe, retirar algo de imprevisto da frase e de sua relação com a situação em que esta trabalha. Mas ao fotografar o objeto, ocorre a tentativa, a um tempo ingênua e autoritária, de domar tal imprevisibilidade novamente por meio do mecanismo visual que vem organizando nosso espaço há séculos, realização acessível a todos (“a apenas um clic de distância). O espaço fotográfico promete distanciá-los do jogo iniciado pelo trabalho, por meio da perspectiva mecânica.

 

 

“Luminoso”

 

Trata-se então de um “registro mal feito”, mas este mesmo juízo ligado ao registro continua sendo o pressuposto que nos une à demanda de representação funcional. Afinal, o que foi o trabalho? E´ preciso narrá-lo de forma eficiente e a sentença dada por ordem do signatário é que “os motivos permanecem obscuros”. A contradição se fortalece proporcionalmente ao esforço produzido pela perspectiva em oferecer uma explicação distanciada. Esta parece afirmar, enquanto ignora qualquer questionamento: não pode haver; não deve haver; não há nada de obscuro numa foto de registro.

 

 

 

[1] “No cinema, o espectador poderia livrar-se da hipnose olhando para os lados ou mesmo para a fonte de luz que se encontra às suas costas. Entretanto, impossibilitado de mover-se, suspensa a prova de realidade, ele só pode, ele só pode tomar as representações como o próprio 'real' [...]. Assim também é o mecanismo do sonho: durante o estado de prostração total do corpo que se verifica no sono mais profundo, a máquina psíquica se torna incapaz de distinguir entre representação e percepção, de forma que a atividade psíquica ganha dimensão de 'real' e o indivíduo tem a impressão de que as suas representações mentais estão de fato acontecendo para ele." E “Quando se apagam os focos de luz e silenciam os estímulos sensoriais do ambiente da  sala de projeção, o espectador se coloca, portanto, à mercê do intenso estimulo luminoso que se impõe à sua frente e nesse ato de entreguismo e vulnerabilidade ele se deixa sugestionar pelo universo fictício da narrativa, a ponto de se integrar no seu jogo de conflitos como se fizesse parte deles.” (MACHADO, 2011, p.45).
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[2] Sobre a produção de imagens, vale retomar o problema da fotografia elaborado por Flusser (2002, p. 15): “[...] o complexo 'aparelho-operador' é demasiadamente complicado para que se possa ser penetrado: é caixa-preta e o que se vê é apenas input e output.” Sobre o grau de escolha envolvida na relação com a máquina: “[...] o fotógrafo acha que está escolhendo livremente. Na realidade, porém, o fotógrafo somente pode fotografar o fotografável, isto é, o que está inscrito no aparelho. [...] O fotógrafo não pode fotografar processos. [...] Aparentemente [...] o fotógrafo pode recorrer a critérios alheios ao aparelho. [...] Na realidade, tais critérios estão eles também programados no aparelho.” (Ibid., p. 31). “Na realidade, o fotógrafo procura estabelecer situações inéditas. [...] Situações que estão programadas sem terem ainda sido realizadas. Pouco vale a pergunta metafísica: as situações, antes de serem fotografadas, se encontram lá fora, no mundo, ou cá dentro, no aparelho? O gesto fotográfico desmente todo realismo e idealismo. As novas situações se tornarão reais quando aparecerem na fotografia. Antes, não passam de virtualidades. [...] Inversão do vetor da significação: não o significado, mas o significante é a realidade. Não o que se passa lá fora, mas o que está inscrito no aparelho; a fotografia é a realidade. Tal inversão do vetor da significação caracteriza o mundo pós-industrial e todo seu funcionamento.” (Ibid., p. 32).