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Sobre Luminoso, Carlos Eduardo Riccioppo

 

 

Há mais coisas no manual de montagem do Luminoso de João Loureiro. O conjunto das regras (elas são cinco) que orienta essa montagem poderia ter tudo de objetivo, caso se tratasse de um luminoso de fato: lâmpadas seriam dispostas de tais e tais modos em uma placa afixada em algum lugar, acesas ao mesmo tempo, e o trabalho ostentaria continuamente esta ou aquela frase. Mas, não. Primeiro, o Luminoso é uma bancada, e não um dispositivo na parede; depois, não há as luzes, mas cerejas. O aspecto de luminoso do trabalho divide lugar com a sua, por assim dizer, “confeitaria”.

De fato, todo um estudo de sabores, texturas e cores é empreendido nessa prática que quer ser capaz de traduzir todas as coisas em algo que se possa comer. Luminoso parece proceder em um sentido semelhante, só que acelerando o estudo com o “achado” da cereja – o comestível vermelho forte, um tanto fosforescente, que coincide visualmente com o Led dos luminosos.

Todavia, não é preciso mais do que alguns passos em direção ao trabalho para que se perceba que a frase é escrita com a fruta, que, em todo caso, está ali disposta à altura da cintura, quase como um convite à mão leve. O fato de que as cerejas tenham sido devoradas em uma ocasião em que o trabalho foi exposto talvez levante a suspeita de que ele de algum modo quisesse isso mesmo. Havia, ali, escrita com elas, uma frase, mas que todavia não se oferecia como proibição a seu próprio consumo; a placa sobre os cavaletes não apenas localizava-se ao alcance da mão, como também era feita de centenas de cavidades do tamanho exato para abrigar, como num expositor de mercado, centenas de cerejas muito bem acomodadas. O apelo à mão, ali, não poderia ser mero efeito colateral...

De qualquer modo, tratava-se de um material perecível, e o trabalho, desde o seu manual de montagem, preservava-se de qualquer confusão, repondo aquela mesma frase, “Os motivos permanecem obscuros”, tendo sido engolido ou não, as cerejas tendo apodrecido ou não.

Deve haver algo nesse trabalho resistente ao caráter perecível de seu material. Ou, antes, deve haver algo que faça com que o trabalho, apesar de se deixar consumir, pareça simplesmente não ostentar qualquer elogio a esta que talvez pudesse ser chamada de a mais imediata promoção à participação de um visitante qualquer – a possibilidade de levar consigo, na barriga, boa parte do trabalho. Porque, não importa quantas vezes seja preciso repetir aquelas regras, elas são sempre as mesmas; e, também, porque tantas quantas forem as vezes que se reescreva “Os motivos permanecem obscuros”, a sentença segue imune, encerrada em si mesma como um aforismo. Mas, sobretudo, porque as próprias cerejas são muito mais código que material do trabalho – elas não apenas ocupam os lugares das lâmpadas, mas também codificam o próprio efeito da iluminação (sempre sobra um pouco de calda para os lados; não se trata de círculos perfeitos, mas como que de manchas sólidas, cada uma simulando uma vibração irregular sobre a superfície reluzente da placa).

Não seria demasiado dizer que o manual de montagem é o próprio trabalho. As cerejas aí incluídas. E que a materialidade mesma do trabalho seja de um tipo que quanto mais reposta, melhor. Porque o que se repõe não são as cerejas, mas os códigos-luzes que escrevem a frase (aliás, qualquer incidente que possa ocorrer, mesmo o apagamento por completo da sentença, não é menos ou mais verossímil do que o que ocorre no luminoso comum, que o trabalho codifica, quando ele apaga ou sofre um curto em alguma parte do circuito).

Quem sabe, a espécie de “frisson” que levava os visitantes a abocanhar o trabalho não era estimulada ainda mais pela sem-cerimônia com que nele conviviam, indistintamente, código e comida?