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Espoliação e desperdício

Relato da fala de Vladimir Safatle em seminário na Escola da Cidade

Por Alexandre Benoit

 

O crítico e professor de filosofia da USP, Vladimir Safatle, abriu sua fala aos alunos da Escola da Cidade, no centro de São Paulo, advertindo-os de que o debate se desenvolveria a partir de três eixos de discussão: a ideia de livre-mercado, liberdade e democracia. Safatle acredita que hoje estes três conceitos estão atrelados por uma certa visão hegemônica e que nós, acriticamente, passamos a reproduzir tal visão. O público essencialmente de estudantes de arquitetura abriu caminho também para uma aproximação entre esse debate e a discussão sobre o futuro das grandes cidades brasileiras.

Para Safatle, a junção entre democracia e livre mercado é uma construção ideológica que visa desmobilizar qualquer manifestação contrária à ordem hegemônica. "Aceitamos como natural", diz ele, a impossibilidade de se imaginar, no campo da política, "a democracia sem as estruturas do livre mercado". Observa que esta relação se origina em um paradigma liberal, segundo o qual não apenas democracia coincide com livre-mercado, como também a ideia de liberdade.

Este raciocínio pode ser muito bem ilustrado por uma breve passagem de O Capital de Marx. No Capítulo 4 do livro, o filósofo alemão descreve a ida ao mercado de dois possuidores de mercadorias.  Até este momento da exposição de Marx existem apenas portadores individuais de mercadorias (e não classes sociais) que se relacionam entre si por meio da troca. Na passagem em questão, os possuidores de mercadorias começam a se diferenciar a partir das mercadorias que levam ao mercado para troca: de um lado, aquele que possui a mercadoria dinheiro e, do outro, aquele que possui a mercadoria força de trabalho. Marx chega a usar, ironicamente, a expressão "capitalista larvar" para designar o personagem detentor de dinheiro. Ao final do capítulo, é efetuada a troca das duas mercadorias, dinheiro por força de trabalho, troca regulada por uma relação comercial, por meio de um contrato, cujo produto já altera em algo "a fisionomia dos personagens do drama", pois, como escreve Marx, "o antigo possuidor de dinheiro marcha adiante como capitalista" seguido do "possuidor de força de trabalho; um cheio de importância, sorriso satisfeito e ávido por negócios; o outro, tímido, contrafeito, como alguém que levou a sua própria pele para o curtume".  

Nesta passagem, Marx descreve alegoricamente a ideologia liberal a que se refere Safatle. Aparece inclusive a ideia de contrato, esta entidade jurídica que regula e ordena a troca entre indivíduos livres. Marx, no entanto, já adverte que se trata de uma operação ideológica na medida em que a liberdade é aparente, pois o operário é obrigado a vender a única mercadoria que possui, a força de trabalho. O que faz a extorsão aparecer como escolha é a figura do contrato. E é esta figura jurídica que Safatle vai então apresentar em sua argumentação, pois "ser livre equivaleria a poder estabelecer contratos, contratos de maneira não coercitiva". Os contratos, continua Safatle, podem ser os mais diversos, como estabelecer a "venda da força de trabalho ou aluguel de seu útero, contrair matrimônios, o relacionamento com o Estado por meio de impostos ou então para tomar empréstimos no banco”.  O indivíduo, conclui Safatle, nada mais é do que um ser capaz de contrair contratos, enquanto a ideia de liberdade está reduzida a uma liberdade contratual.

Seguindo os passos de Marx, Safatle demonstra o absurdo do raciocínio e pergunta-se: "na verdade, trata-se de liberdade ou espoliação?" Safatle lembra do caso do aluguel de útero, em que a mulher aceita tal "contrato" quando se encontra em um estado de "extrema penúria material e vulnerabilidade social". Este caso exemplifica a ausência de liberdade quando não estão asseguradas, do ponto de vista social, todas as condições materiais de uma existência digna. "A liberdade individual na verdade", conclui, "é o travestimento de outra coisa que tem vergonha de dizer o seu nome", ou seja, a exploração do mais fraco pelo mais forte.

Recorda, em seguida, um mantra do liberalismo: quanto menos interferência, mais liberdade. Esta máxima do liberalismo econômico é posta em xeque tão logo o sistema começa a enveredar por um caminho de crise, como o atual. Nessa circunstância a primeira noção que é cerceada, é a de liberdade. "Deixado a si mesmo" neste momento de crise, continua Safatle, "o mercado é um regime que começa a extorquir contratos dos que não tem força social para firmar sua liberdade, dos que não tem escolha real por estarem submetidos ao risco constante da precariedade e da vulnerabilidade”. Essa imagem do mercado como uma máquina de extorquir contratos leva Safatle a argumentar que a ideia liberal de liberdade está bastante fragilizada. Uma sociedade como a espanhola, em que 50 % dos jovens não tem emprego, "não pode ser uma sociedade livre pois ela retirou uma das condições fundamentais para que os indivíduos possam exercer suas escolhas".

Uma liberdade altamente fragilizada, com amplas camadas sociais vivendo em situação de precariedade e vulnerabilidade, cria as condições de ascenso de uma nova forma de totalitarismo, aquele "em que se generaliza a precarização", que, por sua vez, desenvolve sociedades marcadas pelo medo. Qual passa a ser então a função do Estado? Assegurar segurança, mas segurança para que? Segurança para que a propriedade seja mantida, para que os contratos sejam cumpridos. Trata-se de uma ideia de que “eu posso ser invadido, alguém pode ir lá pegar minha propriedade". É preciso, então, abrir mão de alguns de nossos direitos em prol do Estado que vai garantir a segurança.

O medo aparece como um discurso político central, completando a dissociação entre livre mercado e democracia. O que antes se manifestava pelos governos ditatoriais, e que hoje se caracteriza por Estados onde reina a precarização generalizada,  abre caminho para uma "desagregação das condições normativas de se reivindicar a liberdade".

O discurso de Safatle leva inevitavelmente a alguns questionamentos. O primeiro e mais claro é: vivemos em uma democracia ou apenas em uma aparente democracia? Tão pertinente é o raciocínio que ele rendeu uma série de perguntas ao palestrante. Para Safatle, no entanto, aceitarmos que já não existe a democracia seria como "entregar aos nossos inimigos o discurso da democracia", fortalecendo-o.

Outro tema polêmico que se desenrolou a partir da fala de Safatle foi a transposição dessa análise para o campo urbano, para a discussão sobre as cidades. Afinal, com o avanço da precarização e da extrema vulnerabilidade social, ou mesmo com a simples propagação do medo como discurso político dominante, o espaço urbano enquanto espaço da coletividade, da vida dos homens em sociedade fica profundamente ameaçado. A cidade passa a ser apenas um espaço de fluxo de informações e mercadorias, vias de transportes e um conjunto quase indistinto de guetos habitacionais fechados. Não se trata de uma tendência brasileira, mas global, que levou Rem Koolhaas a formular a ideia de uma "cidade genérica" (generic city), segundo a qual os grandes centros urbanos vão gradualmente perdendo a sua identidade histórica, assim como o espaço público esvaziando-se. Com sua característica acidez, escreve Koolhaas que "a rua está morta", hoje elas são para os carros, já a moradia deixou de ser um problema, pois "ou ela foi completamente resolvida ou totalmente deixada ao acaso".

Difícil dizer se Safatle assinaria em baixo das palavras do arquiteto holandês, mas, sem dúvida, ele demonstra estar atento a esse processo. Para ele qualquer intervenção urbanística mais séria passa por enfrentar o mercado imobiliário assim como o uso dos imóveis como objeto de especulação e ou investimento. Recorda, por exemplo, que a Inglaterra, tida como a pátria do liberalismo, tem a famosa lei da moradia vazia, segundo a qual se o imóvel está vazio e a pessoa não tem casa, ela pode invadir e não será posta para fora. Ao contrário da Inglaterra, o Brasil não tem leis restritivas à especulação do solo urbano ao mesmo que tempo mantém regras altamente favoráveis ao setor imobiliário que descaracterizaram a paisagem urbana das grandes metrópoles do país, criando enormes paradoxos urbanísticos. Dentre estes paradoxos, talvez um dos mais célebres, é aquele relativo à proporção entre imóveis fechados e o déficit habitacional na cidade de São Paulo. Numericamente, recorda Safatle, são iguais!

Este quadro remete ao que Le Corbusier chamava, já na primeira metade do séc. XX, de "o grande desperdício". A especulação não apenas incentiva a manutenção de imóveis fechados e vazios (à espera da elevação do preço do m2), como incentiva um cruel movimento de espraiamento da mancha urbana da cidade, já que a maioria das regiões abandonadas são de antigas centralidades que, com o passar das décadas, são classificadas "como obsoletas" - entre outros exemplos, temos a região do Pari, da Moóca, o Campos Elísios e partes do perímetro da Sé. O espraiamento da macha urbana leva, primeiro, à degradação de uma infra-estrutura anteriormente construída, agrava o problema dos deslocamentos urbanos, além de inflacionar o valor do solo urbano paulistano. Como resultado deste enorme desperdício, vemos um espaço urbano que se destrói e reconstrói incansavelmente, cada vez mais caro e com uma sensível piora da sua qualidade urbanística.

Em uma rara incursão no campo das propostas, Safatle considera que o único meio de conter a especulação e retomar um desenho urbanístico voltado para a coletividade é restringir o número de imóveis por pessoa, afinal, "o imóvel é um bem social, enquanto tal é inconcebível que alguém tenha cinco, seis imóveis para ficar fazendo especulação" deixando uma massa sem moradia. Tal ideia, simples e direta, distancia Safatle das tímidas propostas dos atuais legisladores e urbanistas. Talvez ciente disso, Safatle chame o combate à especulação imobiliária de uma verdadeira guerra e cite o nome de Lucio Costa, o grande pioneiro da arquitetura e urbanismo modernos no Brasil. Diz que é preciso "recuperar a tradição gloriosa da geração de Lucio Costa e companhia".

Esta lembrança oportuna traz luz para uma época em que o urbanismo questionava os paradigmas estabelecidos. Um exemplo disso foi a construção do Aterro do Flamengo, em que a demolição de um morro e a ampliação da porção de terra beira-mar deram origem a um grande espaço público, ao contrário dos interesses imobiliários de então. Foi em algum lugar da história que os vínculos entre aquela tradição e sua efetiva realização se perderam e aí talvez se explique a razão pela qual nossas cidades sejam mais liberais que a pátria do liberalismo, que  São Paulo não seja Londres, e que a espoliação e o desperdício se afirmem como lei.