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A degradação produzida pelo trabalho

Os homens em geral trabalham tanto que não conseguem mais ser eles mesmos. O trabalho é uma maldição que o homem transformou em volúpia. Trabalhar com todas as suas forças só pelo trabalho, encontrar alegria num esforço que não leva senão a realizações irrelevantes, conceber que a gente só pode se realizar através de um trabalho objetivo e ininterrupto – eis algo revoltante e ininteligível. O trabalho contínuo e ininterrupto idiotiza, trivializa e impersonaliza. Ele desloca o centro de preocupação e de interesse da zona subjetiva para uma zona objetiva das coisas, para um plano insípido de objetividade. O homem, nesse momento, não se interessa mais por seu destino pessoal, por sua educação interior, pela intensidade das fosforescências internas ou pela realização de uma presença irradiante, mas por atos, por coisas. O verdadeiro trabalho, que deveria ser uma atividade de contínua transfiguração, tornou-se uma atividade de exteriorização, de abandono do centro do ser. É sintomático que no mundo moderno o trabalho indique uma atividade exclusivamente exterior. Por isso, através dele o homem realiza em vez de se realizar. Que cada homem deve ter uma carreira, adotar um estilo de vida que quase nunca lhe convém, ilustra essa tendência de imbecilização através do trabalho. Trabalhar para viver, eis uma fatalidade que, para o homem, é mais dolorosa do que para o animal. Para o animal a atividade é tão orgânica que ele não pode separá-la de sua própria existência, enquanto o homem se dá conta do considerável excedente que o complexo de formas do trabalho acrescenta ao seu ser. No frenesi do trabalho, manifesta-se no homem uma de suas tendências de amar o mal justamente quando ele é fatal e frequente. Também no trabalho o homem acabou esquecendo de si próprio. Não atingindo, porém, uma ingenuidade simples e doce, mas uma exteriorização vizinha da imbecilidade. O trabalho o transformou de sujeito em objeto, ou seja, num animal com a falha de ser um pouco menos selvagem. Em vez de tender na direção de uma presença brilhante no mundo, de uma existência solar e cintilante, em vez de viver para ele mesmo – não no sentido de egoísmo, mas de crescimento interior – o homem tornou-se um servo pecador e impotente da realidade exterior. Numa tal forma de vida como essa, onde haveria ainda lugar para êxtases, visões e loucuras? Onde haveria ainda lugar para a suprema loucura, onde haveria ainda lugar para a volúpia autêntica do mal? A volúpia negativa criada pelo encantamento do trabalho possui algo da miséria e da mediocridade humana de cada dia, da mesquinharia detestável e periférica. Por que os homens não se decidem de uma vez por todas a liquidar o trabalho feito até agora e começar outro, no qual não encontremos mais nenhuma semelhança com o tipo de trabalho em que se desperdiçaram? Será que havia necessidade de construir pirâmides, palácios, templos e castelos? Não basta a consciência subjetiva da eternidade, a consciência daquela realização na superconsciência? Se essa atividade frenética, o trabalho ininterrupto e a trepidação exterior destruíram alguma coisa, essa coisa não pode ser outra senão o senso de eternidade. O trabalho é a negação da eternidade.


Quanto mais cresce a conquista de bens no plano temporal, quanto mais se intensifica o trabalho exterior, a eternidade se torna um bem cada vez mais inacessível, mais longínquo e mais irrealizável. Daí a perspectiva reduzida de todos os homens ativos e enérgicos, daí a sua mediocridade irremediável de pensamento e de sentimento. Trabalho significa periferia. Apesar de não opor ao trabalho nem a contemplação passiva e nem o devaneio vago, mas a transfiguração intensa para a realização de uma presença, prefiro uma preguiça que tudo entende e justifica, a uma atividade frenética, intolerante e absolutista. A fim de despertar o mundo moderno para a vida, deve-se escrever o elogio da preguiça, daquela preguiça cheia de reconciliação e com um sorriso que aceita tudo. Existe infinitamente muito mais senso metafísico num homem preguiçoso do que num homem ativo. Ocorre, às vezes, entretanto, que a preguiça seja, exatamente como o trabalho, um sinal de imbecilidade. Por isso, o verdadeiro elogio não pode ser outro senão o da transfiguração.

 

Emil Cioran

Fonte: CIORAN, Emil. Nos cumes do desespero, trad. Fernando Klabin. São Paulo: Hedra, 2012.

 

 


 

Imagem da capa: Merehor, jovem Suruí Paiter em sua rede (por volta de 1981). Foto do arquivo pessoal de Betty Mindlin.