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Solta essa porra!

A música, tambores, trombetas, arrasta os povos e os exércitos, numa corrida que pode ir até o abismo, muito mais do que o fazem os estandartes e as bandeiras, que são quadros, meios de classificação ou de reunião.[1]

 

Lady, Leide, Lady, Leide

Quando falo Lady Incentivo me refiro às três palavras LEI DE INCENTIVO. Há mais de três anos tenho escrito textos para editais de fomento à cultura. Sou uma proponente, uma captadora de recursos especializada na área de elaboração de projetos e a palavra me acompanha para que eu seja assim. No contexto do capitalismo cognitivo, elaboro, executo e presto contas. Minha produção artística, minha força inventiva segue nesta direção. Como em um boletim de ocorrência evito que os acontecimentos se amontoem sem nenhum significado. Sou polícia, artista etc. Através de meu esquema sensório-motor (o que eu estou chamando de esquema sensório-motor é aquilo que faz com que um ser vivo possa viver) devolvo o meu movimento para o mundo. Preciso gerir a minha própria vida, preciso ter esse dinheiro, esse dinheiro que já é meu (que é público) de volta.

 

 

Lady Incentivo é uma produção de si através da criação de um nome próprio, sendo que o difícil é viver a vida fora do próprio texto, ainda mais quando o Outro é o Próprio. Em 2012 gravei o disco de artista Lady Incentivo: novas formas de amar e de gravar CD ao vivo na Mobile Radio BSP instalada na 30ª Bienal de São Paulo. Comecei a cantar em microfones disponíveis no espaço público, em lojas de departamento, sets de DJ's e em cima de um trio-elétrico, o Rivotrio no carnaval de 2012 em São Paulo, enquanto os blocos carnavalescos eram dispersados através de uma ação ostensiva da polícia militar. O trio mudou de nome no momento em que percorria a cidade. Virou o Ditadura Fora de Época. Circulamos pelo centro de São Paulo, principalmente no Baixo Augusta, um reduto de casas de prostituição, que passa por um intenso processo de gentrificação. O refrão era Sexo, violência e religião/ sexo, violência e prostituição/ sexo, violência e alucinação.


 

O que preciso, a especificação técnica do projeto é um microfone. Com licença, vou utilizar o microfone de vocês. Porque ou é gay, ou é DJ ou tá casado. Ou é gay ou é prédio ou tá cansado. O DJ está tocando o seu sampler, a máquina de produzir repetição. Levo a voz para onde existe um microfone e uma série de equipamentos que já estão lá. Entre numa pista de dança cantando num microfone onde geralmente só há um DJ e você verá abrir um buraco na pista, na sua frente. Diferente de um show de uma banda, o set de um DJ é orquestrado por um só indivíduo. O Disk Joquey e o Mestre de Cerimônia sempre foram um par. Ao que se deve a atual hegemonia do DJ nas pistas de dança? Onde está a voz? Talvez Catarina DEE JAH faça a mesma pergunta, já que é ao mesmo tempo a DJ, a MC e a criadora da festa Fogo na Shanah, que acontece em Recife e neste

ano teve uma edição realizada em São Paulo.

 

 

A Lady Incentivo é uma artista e está com a libido implicada na produção do texto do edital. A artista está ocupada. Uso como matéria de expressão musical o funk[2] e vou apresentar uma seleção de músicas e vídeos protagonizados por mulheres que cantam, mulheres MC's que vem de um território fortemente demarcado pelo contexto heteronormativo.

 

 

Tati Quebra Barraco, nome artístico da carioca Tatiana dos Santos Lourenço, foi uma das primeiras MC's a cantar funk com letras que explicitam o desejo feminino. Ela ganhou projeção internacional depois de gravar o seu primeiro disco, Tati Quebra Barraco, em 2000. De uma forma irônica, ela utilizava a marca de fogões DAKO para dizer que “dar cu é bom/ calma, minha gente, é só a marca do fogão”:

 

 

Faço esse corte no caos entendendo o funk feito por mulheres como um movimento feminista de resistência que não costuma ser incorporado pelo feminismo ortodoxo, que vê a funkeira como um objeto de desejo masculino fadado à vitimização. Tampouco existe a articulação de um “movimento feminista” entre as mulheres que cantam funk. Elas não se organizam através de instituições e nem utilizam  nenhuma teoria queer. O lugar de afirmação do desejo feminino acontece no palco, no show, através da palavra e do corpo. É justamente quando uma mulher se coloca como ser desejante, utilizando a linguagem própria do funk, um gênero musical historicamente feito por homens, que acontece a resistência. Assim, o prazer feminino está atrelado a uma biopotência, uma automonia com relação ao fluxo masculino de produção de sentido. As palavras agem tendo o corpo como voz.

 

 

Mais recentemente, o funk produzido principalmente em São Paulo, aparece como um sintoma dos processos políticos-econômicos que geraram a nova Classe sem nome, ou a Classe C: é o chamado Funk Ostentação.

 

 

A mulher que representa o funk ostentação é a piriguete (novinha, cachorra, piranha). São essas mesmas expressões que algumas utilizam como uma forma de afirmação: Valeska Popozuda, lider do grupo Gaiola das Popozudas, vai dizer: pode me chamar de puta. Ocupando uma posição de celebridade na mídia, seu discurso é “Minha buceta é o poder/ mulher burra fica pobre/ se for inteligente/ pode até enriquecer”.

 

 

Segundo Valeska Popozuda, uma mulher inteligente seria aquela que conquista o homem através da beleza e a beleza é construída através de cirurgias plásticas. E o que ela precisa ter é um apartamento, jóias, implante no cabelo e rosto de atriz para ser desejável.

 

Solta essa porra e solta essa porra

O tipo de presença de palco da autora da música Prostituto, de Deise Tigrona, em nada lembra uma popozuda que rebola o corpo plastificado. Em uma recente homenagem feita para Gabriela Leite, criadora da grife Daspu, da ONG Davida e do movimento de prostitutas no Brasil, a cartunista Laerte nos contou que a palavra prostituta vem do Latim PROSTITUERE, que significa “ficar à frente de” de PRO-, “à frente”, mais STITUERE, “colocar, instalar”. Como uma black block, a funkeira está na frente do palco, na linha de frente com o microfone na mão. No lugar onde é constantemente apontada como um ser inanimado, ela vive a sua própria palavra.

Deise Tigrona traz de volta à literalidade a expressão “Solta essa porra”. Solta essa porra é uma expressão que se repete com frequência no funk e significa “soltar a batida”, “começar a música”. Em Prostituto temos simultaneamente um “palavrão” e o seu significado literal: ela quer que ele goze. Ela quer gozar. E não é apenas uma afirmação, ela está reivindicando. Quase todo “palavrão” é antes uma palavra que vem do campo semântico sexual. Ela ocupa simultaneamente o corpo e a linguagem. Mesmo o corpo sendo dela ela precisa ocupá-lo. Naquela sonoridade repetidamente masculina se insere uma diferença: ela não é só o assunto da música, o seu objeto de desejo. E o homem é o prostituto:

Tô cansada de ouvir/ que você é prostituto/ chegou na hora H/ eu achei um absurdo/ Só deu um gozada/ pediu pra descansar/ Toma um red bull que a prostituta quer gozar/ bate uma punheta/ quero seu pau de pé/ chupa a minha buceta/ quero o seu pau de pé/ lambe o cuzinho/ lambe, lambe que eu tô cheia de tesão/ bacanal é o caralho/ eu quero ver disposição/ 2x solta essa porra/ vem /vem sentando/ vem sentando.


 

A MC Xuparina, carioca que reside em Berlim, começa o funk Eu era Xuparoca em alemão as seguintes palavras: Eu sou um espaço de mulher/ eu quero ser o seu amor/ mas não sei se tenho/ eu necessito estar/ mas eu chego com você/ neste espaço de mulher/ mas eu não sei/ eu tenho o seu amor e é isso o que importa.


 

O que existe no “discurso” dessas mulheres é uma revindicação explícita do desejo sexual, uma afirmação difícil de encontrar em outros gêneros musicais e na arte contemporânea. O trabalho delas retira o sexo do lugar restrito do “vamos falar sobre sexo”. Estamos falando de relações de poder onde o sexo está. O funk está cada vez mais presente em programas populares de televisão e em videoclips patrocinados pela redbull, feitos com a pretensão de ser o hino da Copa do Mundo. Ele é aquilo que é anormal, considerado perigoso, o que se escuta no celular dos outros, sem fone de ouvido dentro dos ônibus. Mas a periferia está no centro e os bailes funk estão sendo proibidos. São realizados na capital paulista, em média, 300 bailes funks por semana em locais públicos. A Operação Delegada, como é chamada, conta com 9 mil PMs para coibir os bailes funk. O projeto foi aprovado em primeira discussão, por votação simbólica, e não teve obstrução.

 

Enquanto isso Uma dona de casa cantarola, ou liga o rádio, ao mesmo tempo que erige as forças anti-caos de seus afazeres:

 

Eu quero ficar/ ficar em casa de dia/ eu quero ter o tempo certo/ de me debruçar na pia/ ao lavar a louça eu quero fazer um desejo/ obturar a tua boca/ e te cortar com azulejo

refrão: Strumming my pain with his fingers/ Singing my life with his words/ Killing me softly with his song/ Killing me softly with his song/ Telling my whole life with his words/ Killing me softly, with his song

 

No refrão que vem da música Killing Me Softly, composta por Norman Gimbel, um hit dos anos 1970 na voz de Roberta Flack, um homem vai matar uma mulher suavemente com os seus versos, com a sua música. Um homem compõe uma música. Uma mulher canta a música. A música mata. Até que a mulher se distrai limpando a casa e violenta o mesmo homem, em legítima defesa. Ela habita a casa como poeta ou assassina?

 

 

Bibliografia

Deleuze, Gilles e Guattari, Felix, Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia, vol. 4. São Paulo: Ed. 34, 2012.

Ferraz, Silvio; Costa Malufe, Annita. Diálogos entre Filosofia e Arte In: Revista Cult, ed 108, Bregantine, São Paulo, 2008. disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/dialogos-entre-filosofia-e-arte/

Vianna, Hermano (ORG). Galeras cariocas: territórios de conflitos e encontros culturais 2ª ed, Editora UFRJ, Rio de Janeiro, 1997.



[1] Deleuze, Gilles e Guattari, Felix, Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia, vol. 4. São Paulo: Ed.34, 2012, pg 84.

[2] O funk carioca começou a traçar o território das favelas do Rio de Janeiro desde os anos oitenta. É uma apropriação da música negra norte-americana, como o miami-base, a soul music e outros ritmos que ganha outros contornos no Brasil. Tem no sampler a lógica do copyleft, do roubo, da facilidade de produção musical sem a necessidade de utilização de instrumentos musicais e estúdios profissionais. Ver VIANNA, Hermano (ORG). Galeras cariocas: territórios de conflitos e encontros culturais 2ª ed, Editora UFRJ, Rio de Janeiro, 1997.

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