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a razão mestiça*. yann moulier boutang

por  Yann Moulier Boutang

O universal está em crise. Desde muito tempo: a razão burguesa e cidadã faz propaganda da igualdade, clama pela liberdade, mas localiza a propriedade no primeiro ranque das constituições. Os primeiros a levar ao pé da letra essa liberdade que os representantes das Antilhas vieram circunscrever à Europa, em 1789-90, são os escravos negros. Os únicos jacobinos suportáveis, quer dizer, revolucionários, utópicos, enfim, os únicos a não formar um atalho da razão de Estado, foram negros. O universal da liberdade era para eles incondiconal e mundial. Fora de questão uma liberdade de geometria variável em função de cor de pele, religião, ou da proximidade com o poder.

Frequentemente homens de mistura, mestiços de carne, concebidos pelo poder branco como a última muralha, ou o cavalo de Tróia na cidadela da selvageria, eles se recusam a enfraquecer os princípios, mestiçando-os. Sua mestiçagem não significa o apagamento dos conteúdos. É uma posição: releia os discursos de Lafayette, Sieyès, Jefferson, Condorcet, Danton, Robespierre – não se pode mais, hoje, não ouvir retrospectivamente seu medo; do grande Condorcet, seus sofismas visando garantir uma transição de 99 anos da escravidão dos negros à liberdade para não violar os direitos sagrados da propriedade, os medos que Maximilien tinha dos enragés. Aí estão as Luzes reduzidas à iluminação urbana do char d’Etat. Por outro lado, as mesmas palavras, em Toussaint Louverture ou em todos os jacobinos negros caros à C.L.R. James, lançam um foco de luz crua, esclarecedor, em meio à noite de ambiguidade das Luzes.

A universalidade (o "faz de modo a que tua máxima se torne universal", de Kant), não é uma questão de lógica (respeito ao princípio de contradição, ao terceiro excluído), isso Hegel havia percebido passando por sobre os dois.

A universalidade é a totalidade que subsume, o processo de manutenção dos contraditórios sob o mesmo teto (na mesma “habitação”, no sentido de propriedade dos lavradores da terra). O universal é um conteúdo lógico renegado por uma dialética da prática, do seu devir outro para realizar-se como o mesmo (o platonismo da igualdade no além pela obediência paulina aqui embaixo), mas a forma é o verdadeiro todo, um truque da subsunção, da manutenção, sob responsabilidade permanente das vigílias da razão de Estado e da ordem. Pois mesmo Hegel percebeu que a razão de ser é a posição, a posição do devir sujeito, do verdadeiro final. Daí seu desprezo pela moral kantiana.

A outra universalidade é ela também uma posição, mas uma posição (uma forma) que investe no conteúdo lógico.
 Mas a posição é primeira e informa o geral como incondicional. Ao invés de conduzir ao meio termo, ao compromisso/transição, ela ergue, no domínio dos princípios, lugares privilegiados para a artilharia. É somente a partir dessas posições que se torna possível negociar a melhor posição global. Ilustração: a famosa questão da affirmative action* mal traduzida [em francês] pelo termo pejorativo “discriminação positiva” [“discrimination positive”]. Os adversários dessa forma de ação política (por exemplo na paridade política do acesso das minorias ao emprego) denunciam seu caráter logicamente incoerente, a impossibilidade de generalizá-la. Esquecem simplesmente que a affirmative action não almeja a generalização nem a perenidade, mas um estatuto transitório, que se apagará desde que seja atingido o objetivo de redução a zero da discriminação. A cota da affirmative action não é verdadeira, apenas uma posição. Sua verdade não é a generalização de uma condição técnica particular em geral e singular na espécie, mas o devir menor – aqui e agora – da intensidade da discriminação.

No início, Multitudes prometeu passar no crivo um republicanismo francês tão estéril quanto exasperante, um obstáculo maior ao corte epistemológico que exige um uso minoritário da razão. Mas rapidamente esse debate pareceu excessivamente franco-francês, enquanto a mundialização punha em primeiro plano uma crise bem mais interessante e ontológica do universalismo. Algumas contribuições deste dossiê partem da questão republicana, outras recuam mais no tempo. Elas se completam pois todas partilham esse projeto de reconstruir as condições de um outro saber comum, e de ser sujeito da multidão.

Se a idade moderna é a do sujeito, aquela em que a verdade é não apenas consciência de si, razão, e não simplesmente resultado e totalidade, mas sobretudo sujeito da história, transformação do agir, muitas coisas acabaram por se fazer conhecer: antes de mais nada, que “sujeito“ rimava com sujeição, lei; que sua autonomia podia ser disfarce do Deus dos teólogos, do burguês e de seu individualismo possessivo, do Estado dos filósofos oficiais do Absoluto, do Ego dos psicólogos, do Superego dos psis e last but not least um avatar do nihilismo com Heidegger; enfim, e foi por um lance da graça, que o "je" de Rimbaud, totalmente outro que fosse, tenha permanecido branco, europeu, e que o sujeito da revolução não fosse nem mulher, nem minoritário de modo algum. Sartre tinha razão em saudar Fanon como o mensageiro dos verdadeiros enigmas que o mundo (a mundialização colonial) começava a propor à Razão branca.

Certamente, as filosofias da suspeita (Marx, Nietzsche, Freud) haviam destituído o sujeito de sua posição de controle. A desconstrução da metafísica por Heidegger havia buscado deslocar o sujeito cartesiano pelo Dasein, com o sucesso político que se sabe. Horkheimer et Adorno[1] criticando o Homem das Luzes e seu projeto, haviam chegado a uma teoria também puramente negativa da Razão: a espessura ontológica e política do ser se reduz a (esse) se saber desconstrutor. A fragilidade do homem que chegou ao cume da modernidade era Paul Celan, que não podia aceitar a música das esferas após a Shoah nem o interdito da melopéia poética proferido por Adorno e que se bate contra o alemão, sua língua, que foi também aquela dos carrascos. Mas é também há muito tempo aquela do mestiço falando o espanhol do conquistador*. Deixando a boa consciência do colonizador, o sujeito democrático tornou-se diáfano, infinitamente frágil. Só é suportável enquanto doente. Quanto às filósofias do “conceito” que simplesmente contornam o sujeito, estimando que nada de seguro poderia ser construído sobre ele, logo se encontraram em uma armadilha – a estrutura sem sujeito, ou bem os derramamentos do inconsciente no real (o que Lacan nomeia a destruição do simbólico).

Em um sentido estridente, Hegel deu a última palavra  sobre o sujeito. Ninguém, após               o afrouxamento do Homem de pedra revolucionário e comunista, havia  disputado o Sujeito Absoluto, nem o Estado, enquanto “os sujeitos” se tornaram avatares do indivíduo irônico de Kierkegaard, dos fragmentos do Zaratustra para arqueólogos do saber ou dos palimpsestos do Inconsciente explorados pelos loucos. O movimento pós-moderno realizou logicamente essa busca apaixonada de "subalternização", estendendo a destituição do controle do sujeito ocidental à “grande narrativa” da liberação ou da revolução (Lyotard) e da constitução do tempo e da memória.

Mas como os subalternos da história podem existir simplesmente sem cair no alçapão hegeliano do devir-sujeito? Pretender ser um sujeito (dissemos consciência para si, ou “tomada de consciência” no vocabulário mais plano da política), mesmo um sujeito pequeno, um não-senhor, um não-poder, um não-Estado (sobretudo não o “Partido que se faz Estado”) não é já deixar a parte senhorial à consciência ocidental que subsiste até na tristeza do etnólogo que maldiz o colonizador, o missionário, ou o militar ?

Qual é a ordem de certeza, de verdade que busca o cientista que exuma as deformações da historiografia oficial da razão ocidental? Que tipo de incondicionado, imediatamente partilhável (suspendamos o termo universal, muitos horrores foram cometidos em seu nome) pode demandar um defensor dos gender studies ou subaltern studies*? A "visão dos vencidos" não pode jamais, tal o Espírito Absoluto, pretender que é suficiente esperar o fim para ver o triunfo do princípio. Uma minoria não pode se defender pretendendo tornar-se um dia a maioria (isso é a vulgaridade insondável do nacionalismo). Sua razão é sem razões, se ela não quer cair no círculo do “racionalismo”, mas ela não é tampouco mística ou inefável. Não esqueçamos, com Celan, essa resposta terrível de um SS que maltratava em um campo um detido, respondendo a um outro detido que lhe perguntava “porque?” com os mesmos versos de Angelus Silésius : “a Rosa é sem porquê, florece porque florece”.

Nessas aventuras da Razão Ocidental, o combate do senhor e do escravo (ou do valete) de Hegel teve um papel estratégico. Quando Kojève retoma a fenomenologia do Espírito em seu seminário no Collège de Sociologie nos anos trinta[2], Bataille, Klossowski, Artaud, Leiris e muitos outros estavam finalizando a implementação da identidade de si a si, e de si para si, do Sujeito, paralelamente à quebra da representação (ver Matisse entre 1909 e 1915) e à quebra da identidade musical (a Escola de Viena). A modernidade começa com o fim da ingenuidade do Sujeito do Renascimento, inclusive em sua dimensão prometeica de liberação revolucionária, surreal e surrealista, uma vez que a nave do realismo socialista emitia já ruídos sinistros de desmoronamento.

Na via radiosa da saída marxista do Espírito Absoluto e do fim da História, Kojève planta uma farpa que fere de outro modo que aquele da carne kierkegaardiana, da qual um Jacques Lacan fará seu mel: ninguém escapa à lei senhorial, tão rebelde ou subalterno quanto se queira permanecer. O que o constitui como sujeito, l’intimior intimio meo, seu desejo é constitutivamente o desejo do desejo do senhor. A Ideia, a Razão, a Vontade são reduzidas no sujeito. No coração deste último, não resta mais que o desejo, sua constituição. O sujeito/a Lei/o nome do Pai se forjam em uma leitura triangular do desejo no complexo de Édipo. Mas esse Édipo, mesmo se Freud, contrariamente a Lacan, não buscou fundá-lo na filosofia, constroi-se inteiramente na dialética do senhor e do escravo, ou mais exatamente na leitura que faz dela Kojève. Como Pierre Macherey havia perfeitamente pressentido, Kojève é um nó capital do que se vai chamar the making of the French Philosophy* (Merleau-Ponty, Sartre, Lévi-Strauss, Lacan, Althusser, Derrida, Lyotard, Badiou)[3], quer dizer uma saída repetida seja de Marx, seja Hegel, seja da dupla Hegel/Marx e das "aventuras da Dialética".

De fato, o desmoronamento se fez cisma, com a queda do Muro de Berlim, correlativamente à do desejo da Revolução. Quando o desejo de liberação das minorias submeteu-se às múltiplas “aventuras” de uma pequena dialética, mas substancialmente isomorfa à Grande (aquela dos grupos armados, das seitas, das identidades comunitárias), o sujeito reduziu-se ao indivíduo desencantado, em um universo de mercado, a esfera liberada não sendo mais que um pré-quadrado. Que seja o sujeito em nome da Lei do Pai, ou bem o indivíduo cidadão sóbrio, sabemos que sua composição múltipla produzirá uma paixão triste, que ela não aumentará a potência de agir, de transformação da multidão, com ou sem contrato, em República nacionalista ou em oligarquia internacional.

Porque? Porque desde que se aceita a dialética do desejo de matriz hegeliana, tal como Kojève a resume, e tal como Lacan a tomou, o sujeito com ou sem maiúscula não escapa mais à lei do Senhor do que a Razão branca ao "colonialismo do poder".

A Rosa é sem porquê, diz Angelus Silesius. Não podemos dizer o mesmo da Multidão. Tem ela uma razão? Exterior a ela mesma, certamente: essa razão é o obejto de toda atenção da governamentalidade, das polícias, dos experts. Mas essa razão é aquela da destruição, do unmaking (da decomposição da classe, dizia o operariado italiano). Ela só tem sentido na cabeça dos poderosos como um limite autoregulador; ela os preserva de erros mortais; ela os reforma a tempo.

A razão que nos interessa explorar possui nela mesma sua própria razão de agir. É incondicionada, não precisa se por opondo-se. Substancial, ela se concebe dela mesma.

Como os subalternos podem pretender organizar a secessão da Razão, como podem se erguer como sujeito da história sem adicionar um capítulo redundante a mais aos desvios da Razão na história? Face à razão branca, muito branca, uma razão outra, totalmente outra, uma razão de cor, para seguir a metáfora, tem sentido? Pensemos ao menos na possibilidade de se manter uma linha de topo, razão mestiça. O que Walter D. Mignolo neste mesmo número chama de o pensamento duplo que não quer ventrilocar o colonialismo do poder?

O velho programa da filosofia da consciência de si ocidental havia sido a passagem do “eu sei” sofista ao “eu sei que nada sei” socrático. É preciso transmutar, nós que nos ocupamos do saber após o cógito cartesiano, o Eu é um outro [Je est un autre] de Rimbaud, em algo como “um outro” [un autre] sabe em mim e eu só advenho nesse saber outro, esse saber se ausentar ou fazer êxodo [s’exoder].

Razão mestiça. A expressão dever servir para designar o programa de trabalho abordado nesse primeiro dossiê mais do que fornecer conclusões.

 

Tradução de Cecilia Cotrim e PauloVeiga Jordão.

 

 

Moulier Boutang Yann

Professor de Ciências da Economia na Université de Technologie de Compiègne, e diretor adjunto do Laboratório Costech. Ensina também na École Supérieure des Arts et du Design de Saint-Étienne. Principais livros: Althusser une biographie (Grasset, 1992), De l’esclavage au salariat (PUF, 1998), Le capitalisme cognitif (Éditions Amsterdam, 2007), L’abeille et l’économiste (Carnets Nord, 2010). É co-diretor da revista Multitudes.



* em inglês no original

[1] Ver o excelente livro de Slavoj Zizek, The Ticklish Subject, The Absent Center of Political Ontology, Verso, 1999, Londres. Sobre essa semelhança de projeto ver p. 12.

* em espanhol no original.

* em inglês no original

[2] A. Kojève, Introduction à la lecture de Hegel, Gallimard, Paris.

* em inglês no original

[3] Não menciono nem Foucault, nem Deleuze e nem Guattari nessa  teoria francesa, pois a ruptura do Anti-Édipo e de Mil Platôs com a psicanálise, e com o lacanismo (verdadeira ortodoxia freudiana) reabre uma porta aos sujeitos múltiplos.

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