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Educadores são políticos e artistas – uma entrevista com Paulo Freire

 

Autor (entrevistado): Paulo Freire

Tradução: Katalina Leão

Revisão técnica: Cayo Honorato

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Educadores são políticos e artistas – uma entrevista com Paulo Freire[1]

 

 

Entrevistadores: Muitos se interessam pelo que você escreve. Eles percebem em seus escritos alguém que, desde cedo, ensina e escreve sobre ensinar, e que gosta de travar diálogos diretos. Eu gostaria de saber mais sobre o que você, atualmente, reconhece como sua experiência formativa no Brasil, no que se refere ao desenvolvimento de seu senso de missão, assim como do pensamento que aí emerge.

Freire: Sua pergunta me leva à minha juventude, para que eu possa rever como estava trabalhando no início, pensar no que estou fazendo agora e então compreendê-lo melhor. Desde que eu era muito jovem, trabalhava com camponeses e trabalhadores no campo da educação de adultos. No começo, há muitos anos atrás, eu tentei especialmente estabelecer relações entre pais e professores mediadas pelos alunos e pelas crianças, procurando conversar com os pais sobre alguns dos problemas que seus filhos tinham na escola. Este foi provavelmente o primeiro desafio que eu vivenciei na educação de adultos. Eu tinha 22 anos, mas quando eu tento me ver novamente naquela época, percebo em primeiro lugar o quanto aprendi com os pais, trabalhadores, camponeses e, em segundo, o quanto eu também era ingênuo. Por exemplo, eu me lembro de discutir com os pais a relação deles com seus filhos. Eles eram por vezes violentos e agressivos com os filhos, não porque não os amassem, mas devido à situação concreta que viviam. Discutindo com eles, eu me lembro de ter feito uma referência a Piaget. Claro que, apesar da minha ingenuidade, minha intenção não era conversar com eles sobre o que Piaget dizia, mas citá-lo. Eles não poderiam saber quem era Piaget.

Entrevistadores: Esses pais eram pobres?

Freire: Sim, trabalhadores e camponeses. Mas eu também trabalhei naquele tempo com grupos de famílias de classe média e também com intelectuais. No entanto, eu preferia trabalhar com os trabalhadores e camponeses, porque, em última análise, na medida em que estavam experimentando uma situação muito difícil, eles eram muito mais abertos para compreender a situação do que as pessoas de outra classe, que foram condicionadas pelos estudos universitários. Desde o início da minha experiência, tenho notado muitas vezes que é mais fácil discutir alguns fatos concretos com os camponeses, tentando compreender a raison d’être dos fatos, do que discutir os mesmos temas com os professores.

Entrevistadores: Deixe-me fazer uma pergunta que me ocorre a seu respeito. Você se vê primeiramente como um educador militante, como um professor que escolheu atuar socialmente, a fim de promover a educação e o desenvolvimento social, ou se vê como um revolucionário social, para quem a educação é um instrumento? Reconheço que essa é uma questão do tipo “oito ou oitenta”.

Freire: Eu acho que não podemos dicotomizar essas dimensões. No entanto, um conhecido me disse recentemente o seguinte: “Quando eu o conheci, há muitos anos atrás, tive a impressão de que você era um educador, mas agora, cada vez mais, percebo que você é um político”. Quando eu digo “político”, isso não significa necessariamente participar deste ou daquele partido político. Naquela época, eu não estava plenamente consciente das implicações políticas da educação. Daí a impressão que lhe dei, de que eu era exclusivamente um educador.

Entrevistadores: Você disse que, naquele momento, para ser um bom professor, era preciso ser ou se tornar também um político. Isso tem algo a ver com as circunstâncias particulares no Brasil, ou você diria o mesmo em relação a qualquer educador em qualquer sociedade?

Freire: Ser ao mesmo tempo educador e político não é um privilégio do Brasil!  Estou convencido disso. Enquanto professores, somos políticos e também artistas.

Entrevistadores: Você nos ajudou a ter alguma compreensão de que não deveria haver uma dicotomia entre educação e política. No seminário internacional em Persépolis,[2] foi unânime o entendimento de que a educação deve estar no centro do processo social e político. Um ano mais tarde, quando nos encontramos em uma conferência internacional em Dar es Salaam, os participantes tomaram aquilo por pressuposto; já não mais discutiam a questão, eles a tinham aceitado. Se estão trabalhando nisso de qualquer forma é outra questão. Que circunstâncias são essas que fazem com que as pessoas não vejam o que parece óbvio para nós? Você disse inúmeras vezes que você é um apóstolo itinerante do óbvio. Mas a ironia é que não parece tão óbvio para as outras pessoas. O que impede que isto seja óbvio, que, enquanto educadores, nós também sejamos artistas e políticos?

Freire: Não tenho uma resposta categórica para isso, mas posso lhe dizer como vejo as coisas. Primeiramente, estamos acostumados – essa é a minha impressão – a ver a educação como algo que está acima da realidade concreta, quando na verdade falamos da realidade, falamos sobre educação e desenvolvimento, sobre educação e mudança social. Mas tenho a impressão de que, muitas vezes, nós falamos desses assuntos, usando porém os conceitos de forma burocrática, como se fossem esvaziados, como se não houvesse os conteúdos, as condições materiais que eles expressam.

Entrevistadores: Falam sobre educação para o desenvolvimento, e não sobre educação no desenvolvimento.

Freire: Sim, sim. Sim, como se a educação estivesse aqui e o desenvolvimento lá.

Entrevistadores: Mantê-los separados sustenta quaisquer interesses particulares?

Freire: Eu penso que sim. Quanto mais nós ensinamos aos estudantes nos cursos de pedagogia que a educação é uma ferramenta neutra, um instrumento neutro, que devemos medir tudo com números, mais nós dizemos aos estudantes que os professores são seres neutros a serviço da humanidade. E quanto mais nós treinamos os professores para não analisar criticamente a realidade concreta, menos oportunidades temos de encontrar maneiras de mudar a educação. Se uma pessoa age a fim de alcançar mudanças, alguns irão dizer que ela não é mais um educador nem um cientista, mas sim um ideólogo. Para mim, essa posição em si é ideológica. Ao dizerem que a educação é neutra, eles são ideólogos. Quando negam o próprio processo ideológico, estão fazendo ideologia.

Entrevistadores: Gostaria de fazer uma pergunta ainda nesse contexto, remontando a seu passado, quando você tinha 20 anos de idade. Algo que o torna diferente de muitos professores é o seu respeito pelo educando. Você diz que o professor deve primeiro aprender com o educando. Como você chegou a esse ponto de vista? Muitos professores nunca chegam a isso, mesmo em uma longa carreira. Quando e como você se tornou consciente das capacidades do educando?

Freire: Penso que uma das fontes foi a minha relação com meus pais. Meu pai, por exemplo, tinha uma cabeça aberta fantástica. Eu era o mais jovem de quatro filhos e quando ele morreu eu tinha 13 anos. Mas sua influência sobre mim foi tão grande que até hoje sinto como se ele estivesse aqui. É muito interessante, sabe, minha identificação com ele. Ele estava sempre à procura de algo mais e todos nós tínhamos o direito de lhe dizer “não”. É fantástico, porque naquele tempo isso não era costume no nordeste do Brasil. Ele não era cristão, embora tivesse certo respeito por Cristo. Minha mãe era e ainda é católica – ela está bem idosa agora. Eu me lembro de quando tinha sete anos de idade, fui até meu pai e lhe disse: “Olhe, pai, no próximo domingo, eu terei minha primeira eucaristia na igreja católica”. Ele me olhou e disse: “Parabéns, meu filho, se essa é a sua decisão, eu irei com você”. E ele foi à igreja, mesmo não tendo fé, mas com total respeito à decisão de seu filho.

Entrevistadores: Com sete anos?

Freire: Sete! E ele me beijou no final e fomos juntos para casa. Claro que no próximo domingo ele não foi mais à igreja. Eu estou contando isso para lhe mostrar o quanto ele nos respeitava. No entanto, isso não significa que ele nos deixava por nossa conta. Não. Ele nunca falou sobre sua autoridade porque sabia que ele era a autoridade. Também aprendi desde cedo, com ele e com minha mãe, a dialogar. Essa foi a minha primeira fonte. Por exemplo, eu aprendi a ler e escrever, com ele e minha mãe, sob a sombra das árvores que havia no quintal da casa onde nasci. Eu escrevia na terra com gravetos e as palavras com as quais eles me introduziram no processo de alfabetização eram as minhas próprias palavras. É interessante notar que, anos mais tarde, quando iniciei o trabalho de alfabetização de adultos no Brasil, o processo só começava com as palavras do alfabetizando e não com as palavras do professor. Eu agora estou escrevendo um livro, que ainda não pude terminar devido às minhas viagens. Não é uma autobiografia, mas uma tentativa de analisar as experiências que tive. Claro, estou fazendo também algumas referências à minha infância e, quanto mais faço isso, mais eu descubro elementos que estão associados a meus pais. Quando eu fui para a escola primária, eu já era capaz de ler e escrever; eu tinha aprendido isso sob a sombra das árvores.

Entrevistadores: Eu gostaria de lhe perguntar mais uma coisa. O que foi que você estava fazendo, que o colocou em conflito com o governo? A maioria dos professores não acredita que seu trabalho pode, eventualmente, levá-los a um conflito direto e ao exílio.

Freire: No decorrer do meu trabalho, fui convidado pelo Ministério da Educação, para ir a Brasília, capital do país, para lançar um plano nacional de educação de adultos, que começaria pelo processo de alfabetização. Eu aceitei. Começamos trabalhando com equipes no interior e também treinando equipes em todas as cidades do país. Desenvolvemos um plano nacional com a convicção de que conseguiríamos, naquele momento, praticamente eliminar o analfabetismo no Brasil. Nossa abordagem começou com a palavra, muitas vezes mal compreendida, conscientização. Isso significa que o processo que tentamos por em prática não se restringia a um processo no qual os adultos pudessem ler e escrever rapidamente. Tratava-se de um processo no qual pudessem ser desafiados. Eles foram desafiados a compreender o contexto de suas vidas e isso é perigoso. Vemos novamente que a educação não pode ser neutra. Nosso tipo de educação trabalhava em favor do oprimido e não da classe opressora. Logo, eu era perigoso e subversivo.

Entrevistadores: Você tem trabalhado bastante na Guiné-Bissau,  onde recentemente houve uma revolução. Em que medida a educação de adultos deu força a essas pessoas, que estavam levando adiante essa revolução – sob condições muito difíceis –, e em que medida a revolução é um bom prelúdio à educação de adultos?

Freire: Antes de mais nada, penso que o conflito e a luta são a parteira da consciência; eles modelam e remodelam a consciência. Esse é um dos aspectos mais importantes que podem ser percebidos na Guiné-Bissau. Quando falamos com um camponês, por exemplo, que teve a experiência de lutar para ser ele mesmo com os outros, esse homem ou essa mulher podem ser considerados analfabetos de um ponto de vista linguístico, mas não de um ponto de vista político. Eles são muito claros a respeito do que eles querem fazer, do que eles precisam fazer. Por exemplo, alguns meses atrás, eu assistia uma discussão num curso de alfabetização, quando um dos soldados escreveu a palavra luta no quadro negro. O educador – também um soldado – lhe pediu para falar sobre a palavra luta e, claro, ele falou bastante sobre sua experiência na revolução. Feito isso ele disse: “Nossa luta hoje pouco difere da luta de ontem. Ontem nós lutávamos com armas na mão para expulsar os invasores de nosso país. Hoje, tendo posto as armas de lado, nós lutamos para reconstruir nossa sociedade”. Foi maravilhoso isso, sabe? Isso foi dito por ele, um homem analfabeto que, no entanto, é politicamente alfabetizado. Isso é o resultado da experiência da luta. A experiência dentro do exército popular foi muito boa. Os soldados rapidamente aprendiam a ler e escrever, na medida em que eles sabem, antes de tudo, por que eles precisam ler e escrever. Eles sabem que estão engajados num processo importante de ajuda a seu país. Eles não vêm para os círculos de cultura apenas para aprender a ler e escrever, tampouco porque querem conseguir um bom emprego ou um diploma. Eles aprendem porque sabem que, para eles, é importante ler e escrever, para que eles possam estar melhor preparados para ajudar na reconstrução de seu país.

Entrevistadores: Paulo, em seus escritos, uma das coisas interessantes é que você trata o opressor, assim como o oprimido, como educando. Além disso, você aponta para a dinâmica que faz com o que o opressor tenda a aprender como oprimir. Mas isso para mim não é claro, considerando que um compromisso da aprendizagem é se opor à violência.

Freire: Toda vez que alguém me pergunta sobre a violência eu questiono de volta: “Violência vindo de quem, ou de quem contra quem? Violência para quê?” Porque eu penso que, se tomamos a violência como uma categoria metafísica, nós não compreendemos o verdadeiro processo social da luta. Temos sempre de olhar para a relação entre a classe oprimida e a classe opressora em uma situação concreta, porque elas não existem no ar e uma não existe sem a outra. Mais opressores equivale a mais oprimidos e vice-versa. A meu ver, enquanto para os opressores a violência é absolutamente necessária, para preservar seu status quo, a violência do oprimido deve se desenvolver de modo a superar a violência. Não sei se me fiz claro? Teoricamente, os opressores não podem permanecer como opressores sem serem violentos – o que não significa necessariamente matar pessoas o tempo todo. A violência do opressor pode às vezes se expressar na manipulação das pessoas, ou mesmo sendo doce com as pessoas. No momento em que impeço você de ser você mesmo, de se expressar, de decidir, ainda que eu lhe dê um filé mignon e um bom carro, você está sendo oprimido e eu sendo violento contra você. Assim, enquanto a violência dos opressores é necessária para que a situação opressiva continue a existir, a violência dos oprimidos deve ser empregada, transformando materialmente as condições sociais, de modo a suprimir a possibilidade da violência. É assim que vejo. A revolução é um direito do oprimido. É como se fosse um direito à sobrevivência. Ou seja, em um determinado momento da confrontação, a violência do oprimido é necessária. Por exemplo, tomemos uma situação concreta da Guiné-Bissau. Durante seis longos anos, o povo da Guiné-Bissau aceitou não ser violento, antes de começar a lutar. E eles só começaram a lutar, quando todas as demais tentativas haviam se esgotado... No entanto, veio o dia em que os portugueses mataram centenas de pessoas no porto de Guiné-Bissau por causa de uma greve. A partir de então o povo da Guiné-Bissau reconheceu que precisava lutar. Se eles não o tivessem feito, não teria havido um dia da liberdade[3] em Lisboa, em Portugal. A mudança em Portugal foi iniciada pelos africanos, pela luta dos africanos e não pelo exército português. Claro que o exército português finalmente levou isso a cabo, mas só depois disso ter sido conscientizado não por seminários, mas pela experiência de Guiné-Bissau. Os soldados começaram a perceber que estavam morrendo e que estavam matando em uma guerra perdida – politicamente falando, mas também do ponto de vista militar, era uma guerra perdida. Portanto, eles tiveram que mudar Portugal, a fim de terminar com a guerra. Quando fui a Lisboa, falei com militares e também com educadores e lhes disse: “Vocês deveriam ir em procissão a Guiné, Moçambique e Angola, para dizer muito obrigado àquelas pessoas”.

Entrevistadores: Às vezes se diz que a violência gera mais violência. Na história, há tanto as pessoas que se endurecem com o derramamento de sangue, quanto as que parecem aprender com isso, crescendo e transcendendo a violência. Você seria suficientemente esperançoso com relação à capacidade do povo lusófono na África – em razão de sua experiência revolucionária – de transcender a violência, encontrando outros meios para seus propósitos?

Freire: Sim, sim. Por exemplo, uma coisa que me impressionou muito, conversando com as pessoas na Guiné, é a ausência de ódio. Eles falavam sobre a luta, sobre as atrocidades dos portugueses, sem nenhum ódio ou expressão de ódio. Lembro-me de conversar no ano passado com um jovem soldado, sobre as terríveis atrocidades cometidas pelos portugueses, a quem perguntei: "Se você pudesse ter esses soldados portugueses em seu poder, você os castraria?” Claro que lhe fiz uma pergunta típica de um intelectual pequeno burguês. Minha arma é meu lápis. Minha arma são minhas palavras. Mas sua arma era de fato uma arma e não as palavras do lápis ou do papel. Ele me olhou e não conseguia entender minha pergunta. Ele entendia minha língua, mas não minha linguagem. Era como se eu estivesse falando grego. Finalmente ele me olhou e me disse: “Camarada, o nosso grande líder Cabral sempre nos disse – todos os dias, todos os dias – que nós devemos respeitar os nossos inimigos, mesmo que eles não nos respeitem”. Então ele me olhou mais uma vez e disse: “Você acha que estaria respeitando os seus inimigos se os castrasse? Não podíamos tocá-los. Sim, tivemos de puni-los, mas respeitando-os como seres humanos”. Fiquei muito comovido com essas palavras, mas também envergonhado, muito envergonhado por nós.

Entrevistadores: Permanecendo ainda por um minuto nesse tema da violência. A violência de fato implica matar de vez em quando. Quando há necessidade da violência, onde está o professor? O que acontece com você ou com qualquer outro enquanto professor? No momento de matar alguém, você está de fato dizendo: "Para você não é mais permitido aprender ou ensinar. Eu não irei permiti-lo e a única maneira de lidar com isso é matá-lo”.

Freire: Não, eu diria que mesmo nesse momento você está ensinando, porque está ensinando os outros e a si mesmo.

Entrevistadores: E o que acontece com quem você matou?

Freire: Ele teve a última oportunidade de aprender. Eu reconheço que isso é muito difícil mas é um fato. Eu gostaria muito que a humanidade tivesse chegado ao nível de resolver suas contradições como nesta reunião, em volta de uma mesa. Mas esse não é ainda o nível da humanidade. Você não acha que, se os franceses, os poloneses, os holandeses, os ingleses, os canadenses, os norteamericanos, os brasileiros e os africanos não tivessem lutado, não tivessem matado os nazistas, Hitler ainda estaria aqui?

Entrevistadores: Grande parte do seu trabalho se dedica a despertar a consciência, a alertar, envolver e engajar as pessoas. Nos estágios iniciais de uma revolução, as metas são bastante claras. Gostaria de saber se você tem pensado sobre os estágios avançados, quando a continuação de um esforço é necessária, para mobilizar novamente as pessoas, que devem estar se sentindo cansadas. Esse é um problema para todas as sociedades. O que acontecerá agora com Guiné-Bissau e outros países?

Freire: Essa é também uma de minhas preocupações. Estou convencido de que o processo de conscientização, que também se dá por meio da luta, deve continuar e ser ampliado depois que a batalha acabar... A primeira e mais difícil tarefa foi a de expulsar os invasores, os colonizadores, mas agora não se deve interromper o processo de ampliação da consciência crítica, do entendimento crítico, daquilo que você talvez preferisse chamar de “aprendizagem”. Se eles param agora, o resultado será que as pessoas se tornarão burocratizadas, do ponto de vista mental, e então, em vez de continuar a reconstrução da sociedade, que deve ser um processo permanente, eles se adaptarão à nova realidade. Esse é um dos motivos pelo qual sou simpático à revolução cultural na China. Você tocou num dos aspectos mais importantes de uma revolução, porque se a liderança não é capaz de seguir estabelecendo sua comunhão com a grande massa, convidando-a diariamente a participar na construção e reconstrução de sua sociedade, a tendência de a liderança se tornar estática, burocrática, rígida, é muito grande; como se eles fossem os donos das pessoas e do conhecimento sobre a realidade.

Entrevistadores: Porque algumas revoluções foram simplesmente golpes, o resultado é uma mudança de quem faz as regras, mas as condições permanecem as mesmas. É com relação à manutenção da consciência que a religião pode ter sua importância. A religião, eu presumo, pode ser um “ópio”, pode ser irrelevante. Mas você deve ter se deparado muitas vezes com esta questão... pode a religião ser funcional, pode ela ser relevante na manutenção das preocupações, das atenções, do envolvimento, do engajamento das pessoas?

Freire: Às vezes, em minhas andanças pelo mundo, as pessoas me perguntam se não estou sendo contraditório, ao pensar, escrever e tentar fazer o que estou tentando fazer, se eu trabalho para o Conselho Mundial de Igrejas, se ao mesmo tempo estou tentando me tornar um cristão. Eu digo: “tentando me tornar um cristão”; eu nunca digo que sou um cristão. Sou da opinião de que ninguém é cristão; estamos ou não estamos nos tornando cristãos. É um processo constante de nascer e morrer e nascer novamente. Às vezes, quando estou muito cansado, eu digo, sim, eu tenho o direito de ser contraditório. Mas às vezes eu elaboro algo mais, como agora. Eu penso, como você, que a religião tem sido muitas vezes o ópio do povo. Por causa disso eu prefiro falar da minha experiência de fé em vez da minha experiência religiosa. Sou muito mais um homem tentando esclarecer e expressar minha fé, do que um homem religioso. Também digo alguma coisa que pode parecer contraditória. Na minha juventude, eu fui às pessoas, aos camponeses, aos trabalhadores, enquanto educador, por causa da minha fé cristã. Mas quando cheguei lá, as pessoas me levaram a Marx. Claro que elas nunca me disseram: “Paulo, você leu Marx?” Mas sua realidade me levou. Então eu fui a Marx e, quando o encontrei, não vi nenhuma razão para deixar de me encontrar com Cristo nas esquinas das ruas. Ao contrário, quanto mais eu estudava Marx, mais eu era capaz de ler o evangelho de uma nova maneira. Estou convencido de que a igreja tradicional não tem nada a ver com a ampliação da consciência crítica. Não mais do que aquilo que eu costuma chamar de “igreja modernizada”, que não é nada além da igreja tradicional, que se tornou moderna para se tornar mais eficientemente tradicional. Ambas as igrejas, a meu ver, irão perecer historicamente sem ressurreição. A meu ver, somente a igreja profética – que é tão antiga quanto o próprio Cristianismo, sem ser tradicional; que é tão moderna quanto deve ser, sem ser modernizada – sobreviverá historicamente, na medida em que ela sabe que, para ser, ela precisa se tornar. A igreja profética não tem medo de morrer, porque ela sabe que morrer é o único caminho para a ressurreição.

Entrevistadores: Do mesmo modo que o professor profético não tem medo de aprender.

Freire: Sim, sim. O educador profético não tem medo de morrer enquanto educador, porque ele sabe que, para que ele ou ela sejam realmente um educador, ele ou ela têm que nascer enquanto um educando.

 

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[1] Esta entrevista foi originalmente publicada em 1978, pela editora Pergamon Press, no livro Adult learning ­– a design for action, editado por Budd Hall e Roby Kidd. Anos depois, em 1981, ela também foi publicada em alemão, pela editora Rowohlt, no livro Der lehrer ist Politiker und Künstler, uma coletânea de textos e entrevistas de Paulo Freire. A primeira versão desta tradução foi feita a partir do texto em alemão, por Katalina Leão. Só depois é que tivemos acesso à versão original em inglês, por meio da cópia que nos foi disponibilizada por Mônica Hoff, a quem agradecemos publicamente. Esta versão final, portanto, é resultado da confrontação, pela revisão técnica, entre a tradução do alemão e o texto original em inglês. (N. dos E.)

[2] Trata-se do Simpósio Internacional para a Alfabetização de Adultos, que ocorreu em 1975, em Persépolis, no Irã. (N. da T.)

[3] Certamente, uma referência à Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974, que depois se tornaria o Dia da Liberdade em Portugal. (N. da T.)

 

Da mediação à mediação: o jogo duplo do poder cultural em animação

Autor: Jean-Marie Lafortune

Tradução: Diego de Kerchove

Revisão técnica: Cayo Honorato e Diogo de Moraes

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Da mediação à mediação: o jogo duplo do poder cultural em animação[1]

 

A animação cultural se define no Quebec como uma intervenção planejada visando o desenvolvimento da dimensão expressiva da cultura, por um lado, ao reforçar as competências e a participação culturais e, por outro, ao estimular a criatividade em diferentes meios: institucionais, comunitários, artísticos, culturais e de lazer. Ela se baseia em análises que combinam teorias e metodologias advindas das ciências sociais, das artes, assim como das ciências da informação e comunicação.

Historicamente,  este campo de estudos e práticas se enraíza em três correntes socioculturais distintas, quais sejam: a animação social ou a educação popular, que relacionamos à intervenção de movimentos católicos, sindicais e associativos desde a virada do século XX, ao engajamento político dos artistas, que se afirmou inicialmente com a publicação do manifesto do Refus Global em 1948 (Borduas, 1977), e a constituição do campo dos lazeres socioculturais, cujas origens remontam ao reconhecimento dos direitos culturais e sociais a partir dos anos 1960. As práticas de animação cultural se inserem, assim, no âmbito das mudanças sociais, podendo se traduzir pela luta contra as injustiças ligadas à diferença cultural, ao questionamento dos modelos culturais dominantes e à atualização do direito à cultura. Nesse sentido, a cultura se apresenta nesse campo “como um fator das relações sociais e como um meio de transformação”. (Caune, 1992: 21)

Em animação, a mediação e a mediação culturais constituem duas estratégias de intervenção que respondem a duas exigências democráticas complementares. Essas exigências dizem respeito ao acesso às obras de valor, acompanhadas de uma ajuda aos artistas para o desenvolvimento da criação, e ao apoio de que a expressão identitária dos grupos de cidadãos minoritários necessita, favorecendo ao mesmo tempo sua integração social e a renovação cultural. Essas duas estratégias se apresentam, respectivamente, como ferramentas de comunicação da cultura e um elemento do repertório da ação coletiva.

Intimamente ligada às perspectivas da democratização cultural, centradas na transmissão da cultura legitimada e na ampliação dos públicos, a mediação cultural se impôs como uma estratégia privilegiada de intervenção nos meios institucionais da arte, antes de se estender aos demais lugares culturais. A mediação cultural, estreitamente associada às aspirações da democracia cultural, almejando o reconhecimento da diferença e da expressão cultural autônoma, foi inicialmente aplicada às categorias socioeconômicas mais desfavorecidas, antes de se expandir para todos os grupos socioculturais em busca de reconhecimento.

O entusiasmo da animação com a mediação cultural, que se constata há uma década, baseia-se no fato de que as considerações acerca do público competem doravante com a preocupação sobre a qualidade das obras no funcionamento das instituições artísticas e culturais. Da mesma forma, se a mediação cultural ganha em popularidade, é porque a política identitária se impôs nas sociedades democráticas como garantia de uma maior participação cidadã e de uma renovação cultural entendida como um modo de vida e ação.

Na medida em que a mediação cultural é empregada para remediar a fratura que separa as camadas da população e que a mediação é exigida para evitar a fragmentação social, a implementação desses dois processos confere aos animadores uma capacidade considerável de influência no curso das sociedades. A extensão desse poder e a imprecisão que o cerca os incita a se interrogarem sobre os limites de suas ações e a rever suas práticas do ponto de vista de seus fundamentos éticos e de suas orientações políticas.

Portanto, é do ponto de vista dos profissionais da animação que este artigo aborda os objetos, os objetivos e as modalidades de intervenção implicadas pela implementação dos processos de mediação e de mediação culturais, tendo como ambição definir mais claramente os diferentes estados que eles adotam e entender mais profundamente o alcance dos questionamentos que os atravessam nesse recorte.

 

A mediação e a mediação culturais como estratégias de intervenção

Para concretizar suas missões, os animadores culturais dispõem de uma variedade de estratégias adaptadas aos meios de intervenção, mas transferíveis segundo o contexto. A mediação cultural é prezada nos meios institucionais, preocupados com a qualidade do encontro com as obras (Caillet, Fradin e Rock, 2000). A mediação cultural é estimada nos meios comunitários, visto que as identidades se formam simultaneamente nas esferas culturais e políticas (Lamizet, 2002). A interatividade e o marketing especializado predominam nos meios artísticos e culturais, onde as abordagens associam estreitamente o público e a criação (Poissant, 2006; Colbert et Bilodeau, 2007). Por fim, a participação é privilegiada nos meios do lazer cultural, nos quais o dinamismo depende do engajamento voluntário (AQLM, 2001).

A título de estratégia de intervenção, a mediação e a mediação culturais colocam o cidadão no coração dos processos de apropriação da cultura e de expressão cultural. Elas estabelecem um vínculo, cada uma a sua maneira, entre esferas de atores que a dinâmica social tende a afastar (eleitos, população, instituições), contribuindo de maneira diferenciada no reforço do vínculo social. De fato, esses dois processos se distinguem nitidamente quando comparamos os objetos sobre os quais eles se debruçam, os objetivos que buscam, as modalidades de intervenção que empregam e o papel que atribuem aos animadores.

Essa distinção aparece em Six e Mussaud (2002) como uma mediação de primeiro e segundo tipo. O primeiro é centrado sobre a busca por soluções e aparece como um substituto de corpos intermediários debilitados, destinado a polir a imagem pública de uma coletividade. Os autores o criticam por agir como um tranquilizador social, por ser refratário ao conflito e ser pouco crítico aos poderes dos quais ele tira sua legitimidade. O segundo se insere na busca do vínculo a partir de uma posição de apagamento do agente da intervenção, colocando o problema de sua independência e legitimidade.

Tricoine (2002) se refere a essa distinção evocando a ideia de uma mediação de primeira e segunda ordem. Centrada sobre a regulação, ou mesmo a resolução das crises e conflitos, a mediação de primeira ordem levanta modelos de expertise inscritos em uma ética comunicacional: planejamento das condições de diálogo com a ajuda de um terceiro ativo sobre o plano da forma e passivo sobre o plano de fundo. Sua finalidade é pragmática, vinculada a poderes instituídos. Ela obtém sua legitimidade do reconhecimento de seus próprios limites, da referência a uma normatividade social e do ideal de uma boa comunicação. Herdeira desta perspectiva, a mediação cultural supõe necessidades identificadas em: uma lógica substantiva; uma demanda de atores envolvidos, formulável em uma racionalidade única; um resultado tangível, almejado desde o início; um método fundado sobre o modelo sistemático de intervenção a curto prazo; a reconciliação de movimentos contraditórios, que consiste em dar acesso aos não iniciados e a sustentar os criadores; uma ética contratual entre pessoas racionais e resolvidas por acordo, assim como a presença de um terceiro neutro, garantidor do processo.

A mediação de segunda ordem inspira-se nos modelos construtivistas, onde os observadores são necessariamente atores, ou mesmo autores, de uma situação que apresenta obrigações em relação aos destinatários da intervenção. O ponto de vista adotado é então o de terceiro termo que constitui o próprio encontro. Ele surge dessa forma da mediação, que repousa sobre uma razão mista de situações novas e relativamente imprevisíveis, nas quais os interventores se envolvem sem conhecer precisamente as dinâmicas que daí resultarão. Dependente dos eventos, esse processo exige paradoxalmente preparação e treinamento, busca de interesses e abandono de si, o que o afasta da lógica de contrato. Ele requer que se assuma a indeterminação em uma co-implicação com a situação dos atores. Portanto, é menos a busca por um consenso ou por uma resolução de problemas que guia o processo, do que a experiência compartilhada de uma colaboração, permitindo a expressão de dificuldades em contextos de vida que lhe dão sentido. Trata-se então de fazer emergir possibilidades e de favorecer sua apropriação, de acompanhar o encaminhamento pelo qual todos podem escolher o que lhes parece realizável e sustentável tanto para si como para sua comunidade. Tal como essa mediação de segunda ordem, a mediação se insere em um paradigma de desenvolvimento sociocultural, ao qual nos referimos para expressar a necessidade de coesão social e de defesa do bem comum, que constituem um dos pilares das reivindicações pela democratização e pela participação cidadã na elaboração e gestão das políticas socioculturais. Vinculando o Estado, as instituições socioculturais e os cidadãos, a mediação tem por objetivo mobilizar um conjunto de recursos internos à comunidade e articulá-los com aportes externos, buscando suscitar ou acompanhar projetos de desenvolvimento. Elaborados em torno de uma diversidade de problemáticas, suas iniciativas contribuem para que os atores socioculturais envolvidos se dotem de novas capacidades de ação individual e coletiva sobres os problemas com os quais se deparam.

 

Mediar para remediar

A mediação cultural tem como aspiração a redução das disparidades entre as camadas da população. Essa estratégia é hoje em dia generalizada nas instituições, que encontram em seus recursos tanto uma maneira pertinente de concretizar os objetivos da democratização cultural, quanto o tipo de intervenção mensurado conforme a importância dos públicos, permitindo-lhes justificar os fundos públicos que recebem.  Ela consiste em tornar acessíveis ao maior número de pessoas, no tocante aos planos geográfico, social e econômico, as obras consideradas mais importantes e em provocar encontros significativos com os objetos de arte. Esse objetivo é promovido por meio de uma distribuição espacial equânime dos recursos culturais, tanto do ponto de vista dos equipamentos, do pessoal, como das obras, da preocupação de alcançar uma pluralidade social na constituição dos públicos e de uma oferta de bens e serviços culturais que escape às leis do mercado. Além disso, a mediação cultural serve para criar elos entre as pessoas, os grupos e as instituições e também para sustentar as mutações do campo cultural, tais como a crise de valores, os conflitos de referências e a coexistência cultural. A lógica da democratização cultural, que sustenta a mediação cultural, predica assim:

A conversão de um grande número de pessoas ao culto e à frequentação da arte erudita e, solidariamente, a ajuda à renovação da oferta, consolida primeiramente o poder dos profissionais da criação e da difusão da cultura mais valorizada. O princípio da democratização cultural é unanimista; ele é construído sobre a representação de um corpo social unificado e sobre o ideal de um acesso mais equitativo a um conjunto de obras unanimemente admiradas, a um patrimônio comum de criações do espírito.  Seu dogma é o da universalidade do prazer estético e da transcendência da criação artística, passada ou presente, para além das condições sócio-históricas de produção das obras.  Por fim, a unanimidade é política, pois a democratização cultural é o paradigma dominante de todas as políticas culturais. (Merger, 2001: 184)

Na prática, a mediação cultural é um processo de facilitação da comunicação entre os objetos e o público que se assemelha a atividades de vulgarização e educação. A sua evolução está ligada à redefinição das estratégias  de desenvolvimento das instituições culturais em torno de considerações relativas às aspirações dos públicos, bem como à qualidades das obras. Esta estratégia é empregada há muito tempo no meio da arte contemporânea, forma de expressão caracterizada pela busca da mudança pela mudança, por consequência, transformada incessantemente ao ritmo das inovações técnicas dos materiais e dos processos de criação. Trata-se então de permitir aos não iniciados, pouco versados quanto à evolução das questões estéticas, apreciar as obras abstratas onde o sentido não reside na forma ou no fundo, mas na intenção criativa e no contexto do encontro.

Quando empregam a mediação cultural, os animadores intervém como ajudantes na difusão da criação, são interfaces entre os criadores e o público, agentes de decodificação das obras e de educação estética. De um ponto de vista estratégico, suas ações têm como objetivo favorecer a apropriação da cultura legítima pelos cidadãos e ampliar o acesso à cultura, trabalhando a elevação das competências, em um processo de aculturação que se baseia na educação formal. A aculturação designa a relação ao Outro na formação de si, ao mesmo tempo como parte da Humanidade e membro de uma comunidade política (Bellefleur, 2002). Ela age pela impregnação e contribui para a estruturação dos gostos e preferências culturais.

Concretamente, a mediação cultural remete à criação de vínculos entre as partes envolvidas e à harmonização das exigências técnicas, temáticas e científicas. Ela deve contribuir na criação de um sentimento de confiança mútua que favoreça o trabalho e o reconhecimento das competências de todas as partes. A mediação cultural floresce geralmente do diálogo, do encontro ou dos elos, e expressa ainda mais as preferências de uma comunidade de práticas, em lugar de favorecer o surgimento de novas estruturas e regras de expressão. Ela interfere frequentemente no espaço de trabalho dos criadores e pode ser instrumentalizada no escopo de uma mobilização política da cultura. Nessa condição, o status de neutralidade do mediador cultural, intercedendo como um terceiro excluído, mostra-se apenas teórico. A questão da responsabilidade do animador se articula então em torno da eficácia de suas intervenções e do alcance de objetivos fundamentais, particularmente em situações de recursos limitados. Sendo a elevação da sensibilidade artística dificilmente verificável, a avaliação do desempenho das instituições e dos animadores, que pode fazer variar os orçamentos alocados para seu funcionamento, se limita então a traçar a evolução quantitativa das participações culturais em termos de frequentação dos equipamentos e inscrições nos programas.

Para muitos analistas, a mediação cultural parece ter alcançado os seus limites, tendo substituído os valores espirituais por valores materiais, desviando a prática da animação de sua capacidade de mudanças, na medida em que se concentra no fortalecimento do vínculo social (Lafortune, 2007). A mediação cultural depara-se primeiramente com um problema no plano da legitimidade. Na trilha dos trabalhos de Bourdieu (1979), a seleção das obras que devem se tornar acessíveis ao maior número de indivíduos denota uma lógica de dominação e de violência simbólica que invalida qualquer pretensão de neutralidade. Ela levanta em seguida um problema de esgotamento, ou mesmo de obsolescência, relativo às transformações recentes da regulação política e da concepção da natureza da arte (Caune, 2006). Pior, visto que ela se ergue sobre uma consumação de produtos artísticos e científicos, ela pavimenta o caminho para uma mercantilização acentuada da cultura, na medida em que o mercado assume o lugar dos poderes públicos, enquanto estes não têm mais os meios para efetivar suas ambições (Dumont, 1995). Além do mais, o recurso cada vez mais intensivo à mediação cultural, aliando dimensões expressivas e relacionais, ou seja, almejando finalidades de participação cultural e de coesão social, desvia a animação da perspectiva da democracia cultural e a afasta de uma contribuição à vida democrática, que não tomaria unicamente a via consensual, visto que implica o conflito (Peyre, 2005).

Por motivos inversos, as mudanças socioculturais em curso no Quebec como em outros países democráticos abalam também os fundamentos da mediação cultural. De fato, essa mudança é indicativa de dois fenômenos: a fragilização do elo entre as elites e a alta cultura, em um contexto de renovação da cultura erudita, e a massificação da educação e da cultura, que parecem provocar um efeito de saturação relativamente à frequentação dos equipamentos culturais tradicionais (Garon, 2006). Como observa Coulangeon (2004), o crescimento do ecletismo no seio da elite econômica e cultural acompanha, hoje em dia, a segmentação dos gostos e das práticas culturais padronizadas dos membros das demais categoriais sociais. Nesse contexto, a dinâmica sociocultural invocaria cada vez menos uma mediação cultural, entendida como um encontro significativo com as obras legitimadas, visto que o princípio de legitimidade cultural desaba assim que as elites deixam de prescrever as normas culturais. Por outro lado, ela demandaria mais mediação cultural, considerando a precariedade das identidades culturais não reconhecidas no plano político e a necessidade de renovação da cultura à margem da consumação de produtos padronizados.

 

Exemplo de mediação cultural: o Museu de belas artes de Montreal.

Fundado em 1860, o Museu de belas artes de Montreal foi um dos primeiros estabelecimentos museológicos na América do Norte a apresentar uma coleção enciclopédica digna deste nome. Ele tem como missão atrair o mais vasto e diversificado público possível, oferecendo acesso privilegiado ao patrimônio artístico universal.

O Serviço de educação e de programas públicos organiza e coordena o conjunto das atividades destinadas aos visitantes: o serviço escolar, o serviço das atividades culturais para adultos (conferências, colóquios, workshops de introdução à prática artística, filmes sobre arte, etc.), os programas comunitários, que buscam atender os novos públicos reunidos por meio de associações, e o serviço às famílias, que oferece sobretudo excursões diurnas para as crianças em temporadas de férias. O Serviço age em sintonia com as coleções e exposições apresentadas, sem intervir na escolha ou no processo de concepção destas últimas.

A expressão “mediação” não é empregada pelo Museu e, mesmo que ela ecoe a atualidade da prática, ela não é em si algo autenticamente novo. O vocabulário da instituição permanece fiel a sua missão educativa. A prática por sua vez evoluiu e passou de uma educação formal, de caráter autoritário, a uma postura de acompanhamento, mais relacionada à filosofia que sustenta a ideia de mediação cultural. Portanto, não há uma mediação cultural praticada no Museu, mas várias, visto que cada uma delas é específica e adaptada à exposição presente e ao público que a frequenta. Em princípio, a mediação dirige-se a todos, mas todos os conteúdos não são necessariamente acessíveis a todos.

O guia-animador, educador ou intérprete atuante nesse quadro deve seguir um princípio primordial de escuta e respeito ao visitante, ou seja, considerá-lo como ele se apresenta, sem presumir suas necessidades, sem julgar o seu nível de cultura, nem procurar lhe impor uma forma determinada de conhecimento. Trata-se mais de suscitar a curiosidade ou um interesse, de nutrir um processo, transmitindo ao visitante uma confiança em sua capacidade de desenvolver, por ele mesmo, uma relação rica e um conhecimento do objeto que se encontra a sua frente. O processo não visa em si e por si uma transmissão rigorosa de conhecimentos adquiridos e mensuráveis, mas despertar uma sensibilidade cultural por meio de uma experiência significativa. A mediação deve permitir às pessoas que se apropriem dos conteúdos e que se sintam tocadas por eles.

O objetivo dessa mediação cultural é mostrar que o Museu é um lugar acessível sem uma formação prévia específica, agradável e aberto a todos, assim como suscitar a vontade de voltar. Porque as coleções do Museu são antes de tudo públicas, o Serviço deve assegurar que cada um possa, à sua maneira e segundo os seus meios, aproveitar as obras.

Os benefícios da mediação cultural podem ser difíceis de mensurar ou quantificar em termos de fidelização. O impacto real e efetivo da mediação é intangível, visto que se trata de um processo iniciado em um individuo que se desenvolve segundo um ritmo imprevisível ou desigual, a médio ou longo prazo.

Fonte: Adaptação dos resultados da pesquisa conduzida por Alexis Langevin-Tétrault e Marie-Nathalie Martineau, publicada nos Cahier de recherche sur la médation culturelle. Montreal, Alliance de recherche universités-communautés, mai 2008.

 

Mediar para evitar o irremediável

O sucesso da mediação cultural nas sociedades ocidentais pode ser visto como expressão de uma metamorfose da ação pública, que busca uma nova maneira de governar a cidade e de fabricar a coesão social, sem ameaçar a ordem e os modelos culturais dominantes. Se antes esperávamos da cultura uma abertura dos espíritos para o mundo, demandamos atualmente que ela reduza a fratura social e que reforce o viver juntos (Caune, 1999).  Ora, a participação cultural almejada deve ultrapassar os encontros dos públicos com as obras legitimadas e deve se abrir à valorização de modos de vida ou obras em busca de legitimação, sob o risco de agravar a fragmentação social.

Tal é o mandato da mediação cultural, competência estratégica que consiste em informar, estimular a participação e viabilizar mudanças nas regras do jogo social (Gillet, 1995). Essa forma de intervenção consiste em ampliar as formas de expressão cultural para além do apoio aos artistas profissionais. Ela se encarna em um papel de interface entre as identidades locais ou marginais e as instituições, contribuindo com a emergência de novas situações que permitam a expressão de grupos sociais e o ajuste institucional. Ela se edifica sobre as premissas da pedagogia ativa, menos qualificada em um currículo, mas favorecendo o comando da ação pelos participantes.

Esta perspectiva de intervenção toma em conta o pluralismo cultural, fundado no reconhecimento das culturas minoritárias, sobre uma base social ou territorial, e da existência de culturas emergentes ou alternativas. Ela se refere a uma outra concepção da cultura segundo a qual as obras de criação são apenas um componente de um conjunto de objetos, signos, gestos, rituais muito mais vasto e frequentemente mais próximo do cotidiano das pessoas e das coletividades.

Compreendida assim, a mediação cultural se aparenta a uma intervenção social de grupo. Os fundamentos e as orientações da animação cultural não deixam de especificá-la. De fato, esta não se edifica sobre valores de reparação, ou seja, ela não se dirige a cidadãos em situação de inadaptação, mas se desdobra sobre uma base de promoção das capacidades, da qual podem se beneficiar todos os grupos sociais, participando da emergência de novas formas de ação, assim como da ampliação de espaços democráticos. A animação cultural não se centra sobre a falta ou insuficiência como estigmas, sobre as deficiências e desvantagens que desabilitam, mas sobre os traços culturais, produtos e modos de vida que formam a identidade. Assim, é importante distinguir no plano genealógico os fundamentos do trabalho social, que se encontram na assistência social e na educação especializada, daqueles da animação cultural, que se encontram na tradição da educação popular (Gillet, 2006).

Empregando a mediação cultural, os animadores contribuem para o revigoramento das culturas populares, seja dos costumes, do saber-fazer, do saber-ser e das formas coletivas de expressão simbólica, que revelam uma diversidade de identidades socioculturais. Eles trabalham ao mesmo tempo para desierarquizar o conjunto das obras artísticas e ampliar o conceito de arte. Essa intervenção apresenta-se muitas vezes sob os traços da enculturação, que se define como “o conjunto de processos pelos quais uma pessoa [ou comunidade] se autodesenvolve sobre a base de suas características diferenciadas, de seus talentos, aptidões e aspirações, a partir dos recursos de que ela dispõe e que seu meio social pode lhe oferecer ou colocar a seu dispor” (Bellefleur, 2002).

Para a prática da mediação cultural, os animadores incentivam o florescimento de novos lugares de atividades e privilegiam os novos conteúdos artísticos, assim como os novos processos criativos. Eles promovem a criatividade de cada um e a iniciativa cultural é compreendida como a capacidade de conceber respostas a situações problemáticas e de participar concretamente em sua execução. A estratégia consiste em partir das questões sociais tal como expressas pelas pessoas para criar, o que implica seguir a evolução dessas questões juntamente com a modificação constante dos modos de criação. Ela tem como exigência o reconhecimento das diferenças culturais e a identificação da comunidade às formas artísticas produzidas. Ela aposta na participação para a auto-organização das práticas amadoras, no entanto, requer um espaço de enunciação próprio e uma parcela legítima da riqueza social para se desenvolver.

A concepção unificante da cultura que fundamenta a mediação cultural evita os dissensos e inibe a renovação da cultura. Por outro lado, a concepção relativista da cultura que está na origem da mediação cultural favorece a multiplicação das identidades e pode enfraquecer a coesão do conjunto. No primeiro caso, o poder cultural dos animadores baseia-se na capacidade de tornar acessível o sentido das obras, o que se traduz pela busca de uma ética equivalente à formulação de critérios de avaliação relativos à qualidade dos serviços.  No segundo caso, o poder cultural reside na capacidade de estruturação das identidades nos planos cultural e político, o que se traduz pela procura de orientações políticas que permitam, de um lado, determinar a quem – autoridades ou população – os animadores são devedores e, de outro, priorizar as identidades a serem promovidas.

 

Exemplo de mediação cultural: o Teatro das pequenas lanternas de Sherbrooke

Fundado em Sherbrooke em 1998, o Teatro das pequenas lanternas (Théâtre des petites lanternes) é um teatro de criação que se insere na linhagem do teatro de desenvolvimento e do teatro de intervenção. A perspectiva adotada consiste em ancorar as temáticas que ele aborda nas preocupações sociais, humanas e espirituais das comunidades onde ele se produz. Cada projeto busca favorecer a tomada de consciência e a iniciativa dos meios sociais afetados, integrando-os em diferentes etapas da criação (pesquisa, produção e difusão). Em cada caso, o percurso deve ser inventado e as pontes devem ser construídas com os novos públicos e os novos criadores. A estratégia de desenvolvimento social posta em movimento pelo Teatro é baseada assim no entrelaçamento e faz participar, além dos membros do Teatro que atuam como mediatores, um “grupo de facilitadores”, que reúne representantes ou líderes das comunidades envolvidas pelos projetos artísticos elaborados. A mediação realizada pelo Teatro visa, por meio desse entrelaçamento e dessa participação direta dos cidadãos na criação, consolidar as capacidades de autodeterminação da comunidade, de maneira que ela persista para além da realização do projeto. O encontro criado assim não é tanto entre um artista e um meio, mas é antes de tudo de uma comunidade consigo mesma.

As criações do Teatro se dirigem ao grande público, que não se trata de expandir, mas de associar ativamente, e a todos os tipos de meios sociais afetados por uma problemática particular. A ancoragem local é muitas vezes ligada a processos preexistentes de desenvolvimento local e comunitário, de maneira que o meio possa se reconhecer e dar sentido ao espetáculo. As competências requeridas pelo pessoal do Teatro envolvem antes de tudo a escuta e o respeito em relação aos meios onde intervém, abertura de espírito em relação às suas preocupações e a capacidade de transmitir a paixão pela criação artística.

O impacto da mediação cultural se situa na realização de um elo social renovado, cuja dimensão local e alcance transformativo emergem da implicação dos indivíduos e dos atores da comunidade. Essa prática, que não substitui um trabalho rigoroso de intervenção ou de desenvolvimento social, comanda um processo sustentável, guiado pela continuidade.

Essa dispersão dos projetos em um longo período implica, contudo, algumas dificuldades, inclusive aquelas que advém das estruturas de financiamento. Ademais, os grandes organismos de subvenção no campo da cultura exigem uma produtividade anual ligada a um rendimento numérico que é impossível de ser atingido por tais processos. Sendo o campo da cultura nitidamente insuficiente para sustentar esse tipo de projeto, o Teatro deve, para conseguir cumprir seus objetivos, diversificar suas fontes de financiamento, buscando-o em outros organismos públicos externos ao campo da cultura.

Fonte: Adaptação dos resultado da pesquisa conduzida por Alexis Langevin-Tétrault e Marie-Nathalie Martineau, publicada nos Cahier de recherche sur la médation culturelle. Montreal, Alliance de recherche universités-communautés, mai 2008.

 

O poder cultural dos animadores: entre ética e política

A aspiração da prática da animação cultural consiste, nesse quadro, em inserir a criação no tecido social, conduzindo uma luta frente ao déficit democrático da vida cultural e uma luta frente ao déficit cultural que caracteriza as sociedades democráticas. Ela se envolve nisso por meio da mediação cultural, que é um processo de comunicação da cultura visando a construção de um sentimento de pertencimento a uma coletividade, e da mediação cultural, que é um processo de valorização das culturas emergentes, minoritárias ou alternativas junto às instituições, almejando um pluralismo cultural.

O emprego desses dois processos permite à animação cultural responder à dupla exigência democrática que consiste, por um lado, em oferecer aos públicos o acesso às obras consagradas e, aos artistas, os meios para criá-las, e, por outro, apoiar formas de expressão cultural menosprezadas, reconectando-se com os objetivos originais da ação cultural: a responsabilidade social, a coerência social, a redução do hiato entre arte e população, a participação e as práticas culturais (Caune, 1992). Mediação e mediação culturais implicam uma evolução importante dos mecanismos de transmissão da cultura e a transformação das relações sociais. Elas têm um alcance cívico e político por causa de suas ambições em restaurar o vínculo social, estimulando o envolvimento cultural de todos os cidadãos, a partir de suas próprias identidades.

Do ponto de vista do poder cultural que eles detêm, que se enraíza na autonomia relativa de seus processos de retradução das instruções vindas de cima (eleitos, responsáveis institucionais) e das demandas vinda de baixo (cidadãos, grupos), os animadores culturais desempenham dois papéis de interfaces distintos em meio a esses processos. Por um lado, eles relacionam obras reputadas, ou seja, selecionadas pelas autoridades, a públicos compostos por cidadãos mais ou menos familiarizados com o meio artístico e, por outro lado, eles provocam o choque entre os grupos de cidadãos e as instituições socioculturais, apoiando a expressão de sua identidade cultural e política. Uma insiste sobre a qualidade do encontro e a outra sobre o grau de reconhecimento alcançado. No primeiro caso, eles executam a missão das instituições, e no segundo, trabalham para a transformação das regras institucionais. Em negociação constante junto às instituições, os animadores agem como agentes de influência compartilhada, favorecendo a cooperação conflitiva. Proativos, eles estabelecem novas áreas transacionais, onde o reconhecimento de grupos como atores aptos a sentar-se à mesa de negociações os obriga a agir como intermediários ativos entre as partes.

Duas questões contrastadas emanam das relações complexas que os animadores tecem no ofício de suas funções de mediação e de mediação com os dirigentes políticos, os responsáveis pelos estabelecimentos culturais e as populações. No escopo da prática da mediação, no qual a questão central é a apropriação cultural pelo maior número de pessoas possível, os animadores se questionam de um ponto de vista ético sobre a qualidade e os resultados de seus processos de educação e comunicação, como testemunha o projeto da Carta deontológica da mediação cultural, elaborada recentemente em Lyon pela Médiation culturelle association. Além das questões de ordem geral, relativas às exigências de qualidade intrínsecas a todo projeto de mediação cultural, os profissionais se perguntam como partilhar alguns fundamentos e valores próprios a esta prática no contexto atual, caracterizado por três tendências marcantes. Primeiramente, a mobilização da cultura em vista do desenvolvimento territorial e do crescimento econômico, que tem por efeito a associação mais estreita com os meios empresarias, conhecidos por gerir o cultural de outra maneira. Em seguida, o novo imperativo da rentabilidade das intervenções culturais públicas, que antes eram relativamente poupadas dessa lógica, que exige um cumprimento de metas a curto prazo e precariza as atividades de longa duração. Por fim, a instrumentalização da cultura pelos políticos para fins eleitoreiros.

Assim, a prática da mediação cultural vai de encontro, ao menos nos meios institucionais, à questão da responsabilidade do animador na organização de encontros concebidos pelas direções das instituições, muitas vezes mais preocupadas em respeitar programas políticos do que um elevado padrão em termos de experiências estéticas, e elaborados com a presunção da existência de uma educação artística prévia do público, o que raramente é o caso.

Além das questões ligadas aos efeitos diretos da realização de projeto (por exemplo: o que foi implementado? Como a dinâmica iniciada permitirá à comunidade participante desenvolver-se a médio prazo? De que maneiras contribuir para o surgimento de uma alternativa ao espetáculo implementado pelos poderes políticos e econômicos?), a prática da mediação cultural também conduz a questionamentos relativos à imputabilidade dos animadores. Para quem devem prestar contas por suas intervenções: aos poderes políticos que propiciam condições mais ou menos favoráveis ao desabrochar de pessoas e comunidades, às organizações e instituições que os contratam ou às populações com as quais eles se comprometem? A dimensão política desse questionamento aparece também na busca de uma conciliação entre a afirmação identitária e a vitalidade da vida democrática, da qual a pedra angular é a participação, assim como a exigência de priorizar as identidades a serem reconhecidas. De fato, quais grupos de cidadãos reivindicam com mais legitimidade os recursos coletivos a fim de favorecer sua criatividade autônoma?

Estratégia de intervenção clássica da qual os limites são bem definidos, a mediação cultural se insere no prolongamento dos esforços dedicados a ampliar o acesso dos públicos às obras consagradas e aos processo criativos reconhecidos. Ela pode ser abordada no âmbito da intervenção pública em termos de cultura, caracterizada por uma tensão constante. De fato, a política cultural tem como dilema satisfazer as reinvindicações democráticas – que exigem o acesso de todos, ou seja, dos não familiarizados, às principais obras – e as reinvindicações culturais visando a constituição de um grupo restrito de iniciados por um apoio apropriado (Heinich, 2001). A história das políticas culturais do Quebec e no Canadá mostra claramente que a ação pública é transpassada por esta tensão entre a execução de políticas de acesso à cultura e de políticas de apoio aos artistas (Azzaria, 2006).

A mediação cultural designa uma outra estratégia de intervenção, que ultrapassa o campo das artes e tem como objetivo permitir a certos grupos minoritários ou a certas comunidades locais aumentar sua capacidade autônoma de criatividade, favorecendo seu desenvolvimento e acesso aos recursos coletivos por intermédio de um reconhecimento institucional mais sólido. Esta perspectiva se liga às reinvindicações socioculturais advindas da dinâmica identitária das sociedades democráticas contemporâneas, que resulta da fusão das representações simbólicas e das lógicas institucionais. Na medida em que a identidade política encontra sua expressão em uma identidade cultural e a identidade cultural se expressa unicamente após a estruturação da identidade política, a mediação se encontra também no coração de um dilema. A promoção das identidades depende do reconhecimentos dos valores e dos modos de vida, mas também do reconhecimento político, que se traduz concretamente por um lugar no espaço público e pelo acesso aos recursos que facilitam a expressão.

Fundamentalmente, a execução desses dois processos, adaptados aos contextos e meios em questão, se insere estrategicamente no equilíbrio buscado pela animação cultural entre processos de aculturação e enculturação. Esse equilíbrio é necessário para que a aculturação não se torne uma atribuição autoritária de identidade, uma alienação, e que a enculturação se edifique sobre as competências culturais garantidoras de uma verdadeira atualização.

Essas duas estratégias diferem não somente nos seus objetos, nos objetivos que buscam e nas modalidades de intervenção que executam, mas também nas questões que suscitam e no papel que atribuem aos animadores. Confrontados ao poder cultural que eles são chamados a exercer em situações de mediação e de mediação, os animadores desenvolvem questionamentos de ordem ética e política envolvendo respectivamente sua responsabilidade e imputabilidade. Eles buscam assim medir a eficácia ou avaliar a pertinência de suas intervenções junto às exigências democráticas que guiam sua prática. No caso da mediação, onde a questão central é a apropriação da cultura pelo maior número de pessoas, desenvolve-se um questionamento de ordem ética sobre a qualidade e os resultados de suas atuações, que repousam sobre processos de educação e comunicação. Por meio da mediação, os animadores questionam-se sobre a instância a que devem prestar contas, ao mesmo tempo em que estimulam a ascensão da criatividade coletiva, organizando a expressão ativa dos indivíduos e dos grupos, criando ou recriando uma vida de bairro, suscitando práticas amadoras, fomentando os lazeres e contribuindo para o reconhecimento de culturas emergentes, minoritárias ou alternativas, como também dos fenômenos que favorecem a renovação cultural.

Na medida em que “o interesse da mediação, nas ciências sociais, é o de questionar a relação entre os princípios da ação coletiva e o papel dos objetos” (Hennion, 1993:15), a animação cultural é diretamente interpelada. Com efeito, ela intervém não somente como intermediário entre os cidadãos e as obras de arte, ajudando a aproximar as diferentes camadas da população, com também se aprofunda mais diretamente na dinâmica produtora e reprodutora da sociedade a partir de suas forças ativas, favorecendo o reconhecimento da diferença e a participação essencial à vitalidade democrática. Os questionamentos com os quais se confrontam os animadores, ao empregar a mediação ou a mediação culturais, testemunham a ambivalência que caracteriza a sua posição, mas sem comprometer sua contribuição essencial no curso das sociedades.

 

Tabela 1. Sintese das características da mediação e da mediação culturais em animação

 

 

Mediação Cultural

Mediação Cultural

Objetos Envolvidos

Criação artística profissional

Cultura erudita

Públicos

Pesquisa estética de ponta

Produtos das artes e das ciências: obras e técnicas de produção

Instituições Culturais

Acesso às obras

Criatividade coletiva cidadã

Culturas emergentes, minoritárias e alternativas

Grupos de cidadãos e comunidades locais

Exploração estética livre

Modos de vida e ação: costumes e tipos de expressão

Instituições socioculturais

Acesso aos recursos coletivos

 

Objetivos Almejados

Ampliação dos Públicos

Elevação das competências culturais

Consenso e unidade cultural

Redução da fratura social

Cultura para todos

Reconhecimento das identidades

Afirmação de expressões autônomas

Compromisso e relativismo cultural

Redução da fragmentação social

Cultura de todos

Modalidades de Intervenção

Transmissão da cultura

Comunicação e fomento

Vulgarização e interpretação

Encontro

Renovação da cultura

Coprodução e engajamento

Pedagogia ativa

Promoção

Status do Animador

Neutralidade

Terceiro elemento excluídos

Questionamento ético da responsabilidade

Tomada de partido

Terceiro elemento incluso

Questionamento político da imputabilidade.


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[1] Publicado orginalmente em: Lien Social et Politiques, nº60, 2008, p. 49-60.

 


 

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Experiências de mediação crítica e trabalho em rede nos museus: das políticas de acesso às políticas em rede

 

Autor: Javier Rodrigo Montero

Tradução: Lucas Oliveira

Revisão técnica: Cayo Honorato e Diogo de Moraes

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Experiências de mediação crítica e trabalho em rede nos museus: das políticas de acesso às políticas em rede[1]

 

 

A educação é um conceito insolúvel. Chego à conclusão de que não haverá o dia em que se possa dizer: “agora finalmente já sei o que é, agora já a tenho”. É algo vivo e que está em processo de construção e revisão. (Meritxell Bonás, professora do CEIP[2] Martinet)

As ferramentas do amo nunca desmantelarão a casa do amo. (Aundrey Lorde)

 

Este texto pretende situar o trabalho em museus desde a perspectiva da mediação crítica e do trabalho em rede. Para tanto, no primeiro momento desenharemos um mapa dos modos como a pedagogia crítica, os estudos museológicos e as formas emergentes de mediação e pesquisa em museus traçam outro imaginário possível sobre as políticas culturais em museus. Este mapa lançará diversos desafios e tensões atuais na mediação e pedagogia em museus a partir da noção de zonas de contato.  Ao mesmo tempo, tenta configurar uma posição descolonizada do museu em um trabalho de políticas em rede com outras instituições ou agentes sociais. Na última parte, descreveremos brevemente algumas práticas e iniciativas que, de algum modo, têm gerado um novo campo de forças e relações nas políticas de museus e no trabalho em rede. Estas iniciativas supõem lançar complexidades e novos desafios ao campo dos museus e das políticas culturais, além de assumir o propósito de descolonizar o museu.

1. O museu como zona de contato: do centralismo da política cultural à rede de agentes sociais.

O papel do museu como uma instituição cultural, com origem centroeuropeia e que tem como base a sociedade moderna, está e estará sempre em contínua tensão. O museu já não pode ser considerado simplesmente uma ágora ou uma praça, como um espaço de intercâmbio[3]. Estas duas metáforas conciliatórias nos falam de uma democracia de caráter dialógico europeu, baseada na concepção de esfera pública como um lugar de acordo, raciocínio e espaço entre iguais, tal como o espaço político definido por Habermas (1981). Em oposição, o museu como instituição social, como agente em uma trama ou tecido específico e como dispositivo discursivo, é um espaço de tensões, de conflitos, de relações de alteridade, de diálogos complexos, inacabados e cheios de contradições. Um espaço de inclusão e exclusão constante. Portanto, é uma instituição conflitiva per se, aberta a definições e antagonismos; exposta a expandir-se ou a repensar seus territórios e fronteiras, como praticamente todas as instituições fruto da modernidade europeia[4].

Esta definição do museu se apresenta com maior complexidade se aceita o desafio de uma esfera pública múltipla, alternativa, sem definição prévia, poliforme e aberta; que questiona os fundamentos da democracia tal como fizeram muitas feministas e teóricas[5]. Sob esse ponto de vista, o museu já não é simplesmente um lugar de encontro, não é uma praça onde conversar e promover contatos com a arte e o patrimônio em igualdade de condições, com relações simétricas, sem que haja diferenças, identidades versáteis, diversas línguas, traduções e posições de poder que cruzem este espaço político. Desde quando somos todas e todos iguais? Assim, as diferenças nos apontam um novo desafio: aceitar o museu como um lugar de conflito (Padró, 2004), como uma arena, um espaço de discussão, de debate. Não fechado, mas aberto.

Esta aproximação implica repensar o museu como uma zona de contato, assim como postulou James Clifford (1999), com base nas ideias e concepções da antropóloga Maria Louise Pratt (1992). As zonas de contato são espaços de hibridação cultural, lugares intermédios[6], que geram relações de resistência entre sujeitos que conjugam conceitos e posições díspares e, não obstante, alteram as relações de poder e os domínios hegemônicos de uma língua, cultura ou identidade sobre outras[7]. Pratt define as zonas de contato como espaços sociais, onde as culturas colidem e criam processos de transculturação; espaços onde os grupos rearticulam e geram novas formas de cultura a partir dos materiais e contatos estabelecidos com as culturas dominantes. Nestes espaços, se estabelece uma relação híbrida entre as culturas subjugada e dominante, para além da dicotomia entre opressor e oprimido. Assim, é importante destacar que os museus, enquanto zonas de contato, não podem ser pensados como um intercâmbio intercultural entre sujeitos, mas sobretudo como lugares de transculturalidad (McDonald, 2003); como espaços onde se negocia novas identidades, onde se coloca em tensão a construção dos sujeitos, bem como os mecanismos e epistemologias a partir dos quais se produz o conhecimento. O museu resulta de uma complexa construção social. É fruto de uma engenharia social, na qual suas significações, narrativas e enunciados estão abertos ao conflito, derivando de interações complexas. A posição do museu depende das interações econômicas, sociais, culturais, históricas, de gênero, urbanísticas, etc. Essa posição questiona não somente o museu em sua complexidade, mas, ao mesmo tempo, a cultura e identidade do sujeito ao qual se dirige o museu, quer dizer, os seus públicos. Interroga-se a respeito de como se configuram os sujeitos e identidades nesse espaço, não só quanto ao modo como se representam, mas também quanto ao modo como os grupos e indivíduos são dispostos e regulados nesse espaço. Esse ponto de vista tenta discernir quais são as posições e diretrizes do museu quando se dirige a nós (Ellwsorth, 2005). A pergunta, portanto, não se estabelece sobre aquilo que o museu representaria, mas sobre as condições de poder e de fala sob as quais enuncia seus imaginários, e sobre que outras falas e identidades ficam de fora. Essa aproximação performativa repensaria o museu como um dispositivo a ativar, a colocar em questão, cujos significados devem estar em suspenso. Dito de outro modo, a ativação política do museu é uma performance contínua, onde se alteram os saberes, tempos, espaços e identidades (Garoian, 2001), ou ainda, onde surgem interstícios críticos e espaços de resistência (Rodrigo, 2004)[8].

Essa reconfiguração do museu como um lugar aberto, de múltiplas identidades e contradições, não pressupõe nem criar nem enclausurar seu potencial. Na verdade, supõe o contrário. Implica trabalhar produtivamente através de suas contradições. Essa abordagem propõe precisamente entender o museu como um agente social a mais, dentro de um conjunto contínuo de interações, relações e discursos, não isentos de conflitos e contradições. O museu não seria um foco centralizador de cultura, tampouco um catalizador, mas sim um mediador a mais, dentro de uma rede de agentes sociais diversos, diferentes e, inclusive, antagonistas. Considerando o que propõe a teoria o Ator-Rede, do sociólogo Bruno Latour (2008), o museu se configura como um agente social a mais, um ator em um plano simétrico de relações e tensões com outros agentes, sem demarcar uma hierarquia ou relação pré-determinada. Se o social, tal como expõe o sociólogo, é um movimento singular de “reassociação” e “combinação”, onde não há “nenhum componente estabelecido que se possa utilizar como ponto de partida inquestionável” (2008: 49-50), então tampouco podemos esperar que o museu seja um estandarte único de cultura, como agente social privilegiado, distribuindo categorias e relações a partir de sua centralidade. Portanto, um trabalho de rede indagaria sobretudo o modo como as redes se criam, como se relacionam, traduzem e medeiam com outros atores; como se configuram, então, seus saberes. Esse passo supõe não nos deixarmos seduzir por um naturalismo social, mas sim adquirir uma distância crítica, um estranhamento realista com nossas práticas para lançar sombras sobre a realidade (Marrero, 2008).

Dessa perspectiva, o trabalho político do museu reside em estar atento a um múltiplo leque de atores e processos de mediação; na recombinação constante do social a partir de suas interações, não para configurar uma narrativa heroica ou situá-lo como agente único de mudança, mas sim para desvelar suas complexidades, alterar seus significados e relacioná-lo com outros agentes sociais. Sob esse prisma, é necessário pensar a posição do museu em relação às redes de agentes sociais, à cidadania e às diversas instituições, práticas e ações que interagem com o museu. Consequentemente, as políticas culturais que aqui expomos não estão marcadas pelo paradigma da acessibilidade. Não utilizam termos como proximidade, trabalho social ou participação; conceitos que necessitam de uma hierarquia, de um espaço central em relação a outros agentes, que estariam situados na periferia, excluídos, como se devessem ser abarcados por mecanismos de normatização e regulação – inclusão social, como se costuma definir[9]. Novamente, encontramos aqui a metáfora do museu como sol, e os agentes ou comunidades como planetas, ou inclusive como satélites que rodeiam, se articulam e devem ascender ao museu. Essa costuma ser uma posição centrípeta ou central das políticas culturais, que se articula no sentido de oferecer acesso a um centro. Suas enunciações típicas produzem, nesse contexto, discursos que expressam ideias como: introdução a um patrimônio, alfabetização sobre o museu, ilustração do público. Sempre sob padrões de “superação” de uma distância social, para que outros agentes sociais adentrem o museu. Todas elas são concepções paternalistas, que excluem a capacidade de ação e cultura de outros agentes sociais. Simultaneamente, reinscrevem o museu como único lugar de conhecimento cultural que deve se impor sobre um território. De resto, o museu se posiciona como uma vitrine: se engrandece como estandarte urbanístico de um neocolonialismo cultural, agora centrado na metrópole e nas suas periferias.

Frente a esse cenário descrito, propomos uma alternativa. Se seguimos a proposta das políticas em rede, tomando as considerações utilizadas anteriormente da teoria do Ator-Rede, situamo-nos em um ponto de partida contrário ao estabelecido pelas políticas centralistas e de acesso. Aqui trataríamos de reconhecer a capacidade política de ação de cada agente social e das redes que se produzem. Desse modo, se repensariam os modos em que as políticas funcionam e se articulam em nós de atores[10]. Essa política não se concentraria, portanto, na produção cultural a partir de um centro irradiador e mediador da cultura por meio de diversos artefatos ou narrativas culturais (exposições, eventos, seminários, ateliês, etc.), mas sim geraria formas de democracia participativa e distribuída, onde se poderiam produzir múltiplas mediações, não tanto em um sentido dentro-fora, mas sim a partir de um complexo diálogo multidirecional, desbordante, entre discursos, agentes e saberes, em negociações culturais. Dentro dessa negociação, ao mesmo tempo, colocar-se-iam em dúvida os mecanismos de poder que ofereem esses artefatos e narrativas. Essa aproximação questionaria diretamente por que determinados processos de governo não facilitam que outros agentes participem da construção dos artefatos discursivos do museu (exposições ou seminários), ao serem rotulados como não especialistas, ignorantes ou subalternos. Assim, a mediação não consiste em estender pontes para que determinados grupos ou agentes sociais, as comunidades, por exemplo, entrem no museu e possam vencer o fosso que rodeia esta fortificação cultural (a ideia tão europeia de superar a distância entre arte e sociedade). Mais do que isso, tratar-se-ia de gerar múltiplos canais de conversa, negociação e tradução entre agentes sociais como nós: construir praças intermédias, cavar passagens, praças-pontes, andaimes para adentrar o museu por outro lado, para gerar rotas de escape, para introduzir-lhe outras linguagens, etc. Ou seja, lugares de interstício, arquiteturas informais e espaços intermédios. Zonas de contato nas quais se possa gerar relações a partir de posições concretas, que desmantelem os modos hegemônicos de produção cultural e possibilitem outras articulações entre os agentes sociais.

 

2. Outra mediação possível: as pedagogias em museus como espaços políticos e amigas críticas do museu

Uma vez descrita a mudança de perspectiva em relação ao museu como espaço de rede e a partir do conceito de zona de contato, agora nos defrontamos com algumas consequências e desafios que se lançam ao trabalho de mediação. Partimos, sobretudo, do âmbito das pedagogias críticas feministas e das experiências recentes de educação em museus de tradição crítica, almejando entender outras políticas pedagógicas possíveis. Para dar este passo, situamos previamente um marco diferente de outra história política da educação em museus.

Se, assim como temos argumentado, o museu é um espaço de conflito, um marco aberto de debate, a pedagogia em museus como disciplina e área de conhecimento não pode isentar-se de se produzir nos mesmos termos de dissonância e, inclusive, de gerar outras pedagogias. Afinal, a educação em museus é uma disciplina recente, mas com uma genealogia e conflitos próprios que, de algum modo, estão reinscrevendo outras histórias e formas de pensar os museus. Como decorrência disso, assistimos a construção de uma genealogia da educação como prática crítica e política em museus. Um exemplo claro no Reino Unido é o texto escrito por Felicity Allen, antiga coordenadora de educação da Tate Britain, em 2008. Essa autora mapeia as coalisões entre feminismos, movimentos sociais e educação popular, a partir das quais foi gerada uma posição crítica da educação em centros de arte (comumente definida como “gallery education”). Assim, este texto desvela outra genealogia possível, que encontra um cruzamento produtivo nas primeiras posições e iniciativas da educação em centros de arte, ligadas ao ativismo e feminismo das educadoras/artistas; que repolitiza essa prática ao repensar suas consequências lógicas na produção cultural e nas políticas museológicas, para além de simplesmente enaltecer a demanda por educação em museus no Reino Unido[11]. Outro exemplo, dentro da linha de outras políticas e esferas públicas da produção cultural no Estado espanhol, é a pesquisa coletiva de Desacuerdos 6 (2011). Nesse caso, o conceito de “virada educacional” é colocado em jogo de forma complexa, ao se indagar os legados e conflitos da educação moderna, da transição e suas brechas, assim como das políticas atuais de arte, educação, formação de artistas e museus. Nessa publicação, destacamos, entre outras contribuições, o texto de Aida Sánchez de Serdio e Eneritz López (2011), sobre o legado e as políticas dos DEACS (Departamentos de Educação e Ação Cultural). Nessa pesquisa, as autoras nos traçam uma genealogia de encontros entre profissionais de diferentes posições sobre educação e alternativas atuais. Essas posições nos mostram o trabalho prático e investigativo que muitos departamentos educativos de museus têm desenvolvido nos últimos anos, para além das novas tendências curatoriais sobre a chamada “virada educacional”. Como último exemplo, talvez o mais relevante, por sua posição geopolítica e pelo impacto qualitativo e internacional, destacamos a série de dois tomos, editados pelo Institute for Art Education da Universidade de Zurique, a partir do trabalho da equipe educativa da Documenta anterior, a 12 (VVAA, 2009). Ressaltamos aqui, por um lado, o trabalho de propostas educativas e cidadãs desenvolvido mediante um conselho local, descrito ao longo do primeiro tomo, onde se travou um diálogo e negociações complexas com redes de agentes sociais a partir das quais foram criadas e mediadas colaborações com diversos artistas, assim como iniciativas de caráter autônomo. Por outro lado, nos interessa sobretudo sublinhar o trabalho de pesquisa-ação que se descreve no segundo tomo. Esse trabalho, a meio caminho entre pesquisa coletiva e prática de mediação crítica, foi desenvolvido por uma equipe de 20 mediadoras sobre suas próprias práticas e discursos[12]. Nessa pesquisa, são especialmente relevantes os marcos discursivos apontados pela pesquisadora Carmen Mörsch (2009) sobre a história da educação na Alemanha. Além disso, nesse texto[13] a autora nos descreve quatro discursos educativos em cruzamento e conflito, que se articulam e convivem como posições dentro da educação em museus. Em resumo: esses três exemplos aqui descritos supõem uma clara amostra de como pesquisar e gerar outra arquitetura sobre a mediação crítica em museus[14].

Como temos visto até aqui, é importante sublinhar que uma genealogia repolitizada da pedagogia em museus situa essa disciplina como espaço de tensão e conflito com a mesma instituição cultural. Assim se revelam tensões, discursos e outras narrativas com e contra a instituição. Essas tensões são produtivas, na medida em que têm gerado outras possibilidades de pedagogias alternativas e de relações com outros agentes sociais. Agora ponderaremos que papel e quais posições ocuparia a educação nos museus se a concebemos como uma amiga crítica[15] (Mörsch, 2009), quer dizer, uma mediação crítica na qual são gerados conhecimentos e novas práticas culturais a partir do museu.

Em primeiro lugar, a mediação crítica trabalharia em diálogo com e contra os discursos do museu, não para desprestigiá-los, mas sim para desconstrui-los. Sua ação política gera outros pontos de vista, que desvelam os dispositivos, aparelhos e relações de poder que cruzam as instituições culturais. Quer dizer, contradiscursos. Essa tendência, denominada por Eva Sturm “educação artística como desconstrução” (2002), levaria à criação de múltiplas possibilidades de vozes e espaços de tradução, em um tipo de “rizovocalidade” (Sturm, 2007). Ela não defende, privilegia ou demarca um único discurso, mas sim busca múltiplas possibilidades de vozes e relações no museu. Sua ação desdobra outras vozes, que se bifurcam como rizomas e assinalam outros modos de conhecimento. Carmen Mörsch (2009: 10) situa essa prática como um discurso desconstrutivo, na medida em que se afasta de um discurso meramente reprodutivo ou autoritário de educação em museus. Ela bebe da fonte da crítica institucional ao entender os processos civilizatórios e disciplinares gerados pelo museu. Desenvolve análises nas quais as exposições são entendidas como “mecanismos que produzem distinções/exclusões e constroem verdades” (Mörsch, idem). Esse tipo de prática se situa dentro de um legado intervencionista e pós-estruturalista de educação artística (Mörsch, 2008; Sturm, 2007). Assim, mostra-nos as contradições e pontos cegos no museu como material pedagógico, ao mesmo tempo em que gera táticas de intervenção e novos conhecimentos sobre as arquiteturas discursivas do museu.

Em segundo lugar, seria importante compreender a educação como investigação coletiva, baseando-nos em processos de longo prazo, mediante conversações culturais complexas. Isso é possível se situamos a prática educativa no quadro do trabalho de comunidades de aprendizagem[16], já que articula a pedagogia como um motor do paradigma de pesquisa-ação participativa (Rodrigo, 2010) ou militante (Malo, 2004). Nesse caso, a educação não se articula simplesmente em programas de ateliê ou atividades pontuais, mas sim concebe a si mesma como um processo a longo prazo de investigação compartilhada. Implica diversos agentes e saberes, onde o conhecimento e os limites disciplinares do museu são colocados em jogo, abrindo diálogos, debates e novos conhecimentos. Desse modo, não somente se reafirma o conhecimento pré-estabelecido pelo discurso curatorial. Essa tarefa política se realiza em um plano duplo e inter-relacionado: por um lado, nos limites internos do museu, ao gerar projetos híbridos a meia distância da curadoria, do trabalho colaborativo e do educativo. Forçam-se, por aí, coalisões entre departamentos e profissões do museu, assim como se extrapolam os limites e disciplinas profissionais. Por outro lado, a investigação compatilhada produz intercâmbios entre o museu e outros agentes, ao criar relações complexas e novos saberes que transformam o modo de trabalho e as subjetividades das instituições envolvidas. Esse tipo de modelo de trabalho é o que Carmen Mörsch situa como discurso transformativo (2009: 10-11). Ele gera um trabalho com o contexto no qual se questionam as instituições culturais em relação a problemáticas da sociedade do conhecimento, das hierarquias de saberes e dos modos com os quais a cultura, a sociedade e a economia se entrelaçam criticamente. Nesse sentido, esse tipo de abordagem promove desbordamentos reversivos (Villasante, 2006), eis que supõem espaços que não só se desbordam rumo a outra instituição ou agentes com os quais trabalhamos, como também, em último lugar, fruto do trabalho intermédio, geram outros modos de operar no mesmo museu. Provocam assim uma pedagogia institucional ou em rede, já que as instituições aprendem a criar novos saberes e modos de relação. Isso é uma aprendizagem desbordante da política, e não somente uma interação com os grupos envolvidos. Aqui, cabe matizar que a educação também produz, apresenta e faz circular narrativas críticas sobre seus próprios processos. Nesse sentido, tenta representar várias vozes, discursos e registros, seja através de projetos comissionados, publicações ou outro tipo de materialização.

Em terceiro lugar, finalmente, a educação como mediação crítica também reconhece as lutas sociais e os conflitos da divisão do trabalho, assim como as condições nas quais a educação nos museus é gerada. Comprometida com o trabalho desconstrutivo e transformativo, a mediação como amiga crítica também põe em tensão esferas e epistemologias que se reproduzem estruturalmente no museu e em outros âmbitos da produção cultural. Essa aproximação interrogaria também o tempo de tarefas e as condições feminizadas e precarizadas nas quais se produz a educação nos museus, como um espaço político de investigação e ação (López & Alcaide, 2011). Isso supõe entender também que a educação é um lugar de pesquisa e mudança estrutural das condições políticas do trabalho, que revisa a exploração de diversos subalternos no sistema cultural (Graham, 2010). Felizmente, essa amiga crítica assinala as possibilidades de outro tipo de aliança para gerar instituições mais justas e igualitárias, que reconheçam a feminização do trabalho em certas tarefas reprodutivas, tal como descreve Carmen Mörsch (2011). Seguindo essa linha de argumentação descrita pela autora, um dos campos de tensão e desafios da educação nos museus se concentraria em desconstruir a dimensão produtiva e reprodutiva gerada no trabalho cultural. Normalmente, assimila-se a dimensão produtiva a tarefas de inovação, vanguarda, pesquisa cultural e produção de discursos (a produção cultural de curadores ou artistas). Enquanto isso, a dimensão reprodutiva resta como algo pejorativo, ao ser referida a tarefas de cuidado, de dimensões domésticas, de reiteração, repetição ou epistemologias brandas. Todas elas são comumente associadas a educadoras e ao trabalho feminino ou afetivo, institucionalmente demarcados como “degradados” (Sánchez de Serdio e Y López, 2011). Essa dimensão reprodutiva configuraria um núcleo central do trabalho em museus, como um tipo de infrapolítica ou trabalho intangível que conformam as políticas de afeto. Esse é um aspecto sumamente importante no trabalho em rede, que, contudo, supõe um trabalho político de fundo, mal remunerado e invisível, com pouco glamour (Sternfeld, 2010).

Considerando os três pontos assinalados anteriormente, propomos uma educação nos museus que seja pós-colonial, como descrito por Castro Varela e Nikita (2009). Essa educação analisa e compreende o museu como uma instituição atravessada por relações de poder, com uma constante subordinação, mantendo em tensão o significado cultural e as vozes e narrativas que o museu apresenta. Aproxima-se da instituição museu de forma problemática, como centro colonial e patriarcal do conhecimento cultural. O museu é concebido como uma instituição conflitiva marcada por histórias de colonização e hegemonia cultural. Essa abordagem cria zonas de contato e diversas resistências, descolonizando o museu, a noção centro-europeia de patrimônio e cultura, assim como os imaginários e narrativas que daí se projetam. Paralelamente, trata-se de problematizar as subjetividades que conformam essas instituições, produzindo tensões internas ligadas à produção da alteridade e à validação/regulação dos sujeitos. Simultaneamente, essa proposta se articularia mediante uma educação “queer”, eis que desmantela as categorias e identidades que atravessam o museu (públicos, artistas, curadores, diretores, educadoras, etc.). Uma política queer altera a regulação heteronormativa e as dicotomias da concepção dos públicos, das subjetividades do museu, e, sobretudo, os tempos e relações entre produção e reprodução. Ou seja, repensa a instituição museu também por meio de outras políticas afetivas e de outras pedagogias de contato (Vidiella, 2012).

 

3. Iniciativas e propostas de trabalho em rede: cenários de outras pedagogias.

Passaremos agora a narrar brevemente exemplos de diversos projetos do Estado Espanhol, a partir dos eixos sobre os quais se poderia articular de forma complexa as práticas de uma pedagogia pós-colonial e queer, isto é, da educação como mediação crítica, como investigação coletiva e como política afetiva que extrapola os tempos normatizados da produção cultural.

Um dos primeiros cenários que descreveremos teve lugar entre os anos de 2005 e 2008, em quatro edições diferentes, sob o nome de ArtUOM. Foi um projeto colaborativo entre a Universitat Oberta per a Major – ou UOM (uma universidade popular de aprendizagem contínua da Universidad de las Isles Balears) – e a Fundación Pilar i Joan Miró (FPJM) de Palma de Mallorca. O projeto foi coordenado pela equipe educativa da FPJM e por mim [Javier Rodrigo] em suas três primeiras edições. A meio caminho entre um projeto comunitário, um processo de pesquisa coletiva e um trabalho curatorial, essa iniciativa se focava, a cada ano, em uma problemática ou temática negociada com a FPJM. ArtUOM se desenvolvia como um ateliê prático em convênio com a UOM, de modo que dois grupos, de uns 15 alunos cada, trabalhavam durante quatro ou cinco meses na FPJM. Os grupos investigavam temas e problemáticas do museu que terminariam plasmando-se em algum tipo de formato, sempre sob a sigla de ArtUOM, como projeto coletivo. Nas duas primeiras edições (2005, 2006), foram geradas duas exposições, nas quais a equipe teve que repensar e propor uma exposição coletiva e pedagógica. Na terceira edição (2007), criou-se uma publicação polifônica editada por um grupo de trabalho (Rodrigo y Martorell, 2007), e, no último ano (2008), produziu-se um trabalho com vídeo comunitário com outro colaborador[17].

Para entender o trabalho polifônico e de desconstrução desse projeto, me focarei no projeto específico do ano de 2006, no qual o trabalho de ArtUOM gerou a exposição denominada Cercant i Recercant la FPJM – um jogo de palavras que significa “buscando e investigando/rebuscando na FPJM”. O trabalho de campo focava-se na atuação com dois grupos diferentes, mediante três sessões de três horas de trabalho semanais nas quais investigamos as diversas dimensões da FPJM e seus espaços arquitetônicos. Produzimos materiais sobre os diversos departamentos, os espaços de ateliês expositivos, o ateliê de artista de Miró, projetado com o arquiteto J. Luis Sert, ou a antiga casa de veraneio, que agora é o espaço expositivo Son Boter. A partir desse trabalho, foram levados a cabo quatro projetos de intervenção nos espaços do museu que, na forma de peças de interpretação e diálogos múltiplos, pesquisavam e materializavam seus resultados por meio de processos de arte pública e participativa. Considerando os espaços escolhidos, foram criados quatro projetos: [1] “Espaços de arte e arquitetura”, uma iniciativa trabalhada no espaço da Sala Estrella, que foi fixada na parede de entrada do edifício Moneo. Essa intervenção interpretava o museu como um espaço cultural e de cruzamento entre as culturas e suas relações diversas com outros espaços culturais de Mallorca. O trabalho [2] “Somos todos a FPJM” era como uma colagem com as letras da FPJM numa escala gigante e ficava no corredor de entrada do mesmo edifício, instalado sobre uma cristaleira. Essa peça gerava,  por um lado, uma interpretação irônica e lúdica sobre as diversas profissões do museu, com imagens inspiradas na estética dos anos 1960. Por outro lado, descrevia todos os espaços e departamentos de trabalho da FPJM. Por sua vez, o trabalho [3] “Arquivos da vida cotidiana” propunha, no espaço do Ateliê Sert, um olhar sobre o arquivo e o processo de colecionista popular cultivado por Miró. Situado no pátio interno do ateliê, [Arquivos da vida cotidiana] constituiu um arquivo coletivo atual de outros objetos da cultura popular, compilados pelos alunos da UOM. Finalmente, o projeto [4] “Son Boter através dos tempos” apresentava uma instalação em frente a casa do começo do século XX, na parte superior do espaço da FPJM. Essa instalação mostrava a cultura, hábitos, profissões e arquiteturas da época, ao mesmo tempo em que mostrava partes do interior do edifício, fechadas para o público geral. No dia da exposição, o mesmo grupo me deu uma visita guiada, na qual se propôs um tour com músicos locais tradicionais (Es xeremies) e um happening final, intitulado “Comemos a FPJM”. Essa ação de caráter culinário representava os quatro edifícios da FPJM com diversos materiais comestíveis, como se fosse um “buffet comunitário”. Todo esse trabalho foi criado em constante diálogo e negociação entre o grupo de alunos, a equipe educativa e a direção da FPJM. Fora isso, contava-se com a ajuda de outros departamentos do museu (acervo, comunicação e setor gráfico) na produção e na pesquisa. Esse trabalho coletivo pôde ser pesquisado e mostrado por meio de um catálogo polifônico na edição do ano seguinte. Assim, criou-se um processo de trabalho pedagógico sobre a publicação e a narrativa de projetos de arte públicos, comunitários e pedagógicos, de maneira que o modo de escrita, o formato e a autoria coletiva do catálogo foram o mais acessível e próximo do universo e do imaginário do grupo ArtUOM[18].

Podemos descrever um exemplo de trabalho de pesquisa coletiva e prática transformativa a longo prazo por meio do projeto e programa estável de museus e escolas denominado Cartografem-nos. Essa iniciativa tem sido desenvolvida desde 2006-07 até hoje [2012], impulsionada pela equipe educativa do museu Es Baluard de Palma de Mallorca. Desde o início, criou-se uma estrutura colaborativa com escolas primárias na qual a equipe educativa do museu, junto com a comunidade docente de cada centro [Centro de Educação Inicial e Primária – CEIP], projeta e desenvolve um projeto pedagógico. Para isso, a equipe cria um espaço de intercâmbio e designa uma metodologia para o projeto colaborativo, a partir de um curso homologado de formação contínua sobre arte contemporânea e educação. O projeto é sempre criado em três etapas, mais ou menos flexíveis e complexas, dependendo de cada centro [CEIP]. Há uma primeira pesquisa e levantamento de questões dos grupos escolares sobre seu território, as pessoas e saberes que ali interagem, assim como as histórias e problemáticas sociais que cruzam os bairros onde está cada escola. Aqui, cada aluno recolhe, ao modo de um etnógrafo crítico, os materiais visuais, entrevistas, documentos ou os objetos relativos a sua questão. Na sequência, cria-se uma visita ao museu com todos os grupos escolares envolvidos, na qual se analisam noções conflitivas sobre o patrimônio, a representação de Mallorca como um paraíso turístico, e o museu dentro do território e do projeto urbanístico da cidade. Por exemplo, cria-se um RPG [role-playing game] que simula um programa de rádio entre os grupos escolares. Cada grupo debate a viabilidade de construir um centro comercial em seu bairro, partindo de posicionamentos opostos. Ao final dessa visita, expõe-se os materiais compilados. Os grupos escolares debatem e selecionam, entre todos, o tema e a problemática que vão trabalhar em seu centro.  Em um segundo momento, é levado a cabo um projeto educativo entre arte, espaço público e pesquisa social, de claro componente intervencionista. Desse modo, os grupos trabalham em média dois meses, de forma autônoma e com a ajuda das educadoras do museu. Na última fase desse processo, recolhe-se o trabalho para gerar uma exposição dupla: em primeiro lugar, no bairro, em um espaço comunitário ou em um centro afim, onde os estudantes e pessoas com as quais se trabalhou mostram e medeiam o projeto; em segundo lugar, na sala polivalente de eventos do museu, relatando nesse caso o processo com documentos e materiais gerados pela equipe educativa. Esse projeto foi reconhecido pelo plano educativo da cidade, o Palma Innova, que recebia o apoio da prefeitura anterior e possibilitava que escolas o adaptassem a um projeto educativo próprio. Ao final de 2010, veio à tona uma publicação[19] de todo o processo depois de quatro anos, incluindo as experiências da equipe educativa e de algumas professoras implicadas no projeto. Esse tipo de experiência a longo prazo, com espaços de planejamento conjunto e aprendizagem dialógica entre professores, educadores e agentes comunitários, permite uma transformação lenta e duradoura, ao mesmo tempo em que situa a profissão pedagógica nos museus como um trabalho em rede, para além de um mero complemento ou acessório das exposições. Assim se evitam as posições paternalistas sobre as escolas, já que se negocia e planeja conjuntamente com o professor todo o trabalho, reconhecendo seus saberes. Experiências similares podem ser encontradas em projetos como a 2ª e a 3ª edição de ZonaIntrusa (cursos de 2008-09 e 2009-10, respectivamente), criados por Oriol Fontdevilla e La Fundació; Transart Laboratori (2009-10) de Sinapsis em colaboração com o espaço expositivo de Can Felipa, dois centros escolares e o apoio da Área de Educação do distrito de Poble Nou. Aqui, em outra esfera, pontuamos também o projeto Arte de Desplazamiento[20] [Arte do deslocamento], iniciado em 2008 pela educadora Amparo Muñoz do MUSAC [Museu de Arte Contemporânea de Castilla e León], em colaboração com o grupo de parkour e a associação 3RUN León (Casilla e León).

Por fim, descreveremos outros exemplos relacionados ao trabalho de produção-reprodução das práticas pedagógicas, com base nos desdobramentos dos tempos e políticas de trabalho. Um primeiro exemplo seria a iniciativa desenvolvida por Transductores[21] durante o ano de 2011, na Sala Amarika de Vitoria/Gasteiz, sob a coordenação do projeto Amarika, uma iniciativa cidadã em cultura, com orçamento participativo, liderada por uma assembleia popular[22]. A experiência de trabalho durou três meses, entre março e maio, e foi denominada TRAN LAB: Laboratorio Pedagógico. Foi planejada conjuntamente com Txelu Balboa, de ColaBoraBora, e Ainhoa Garagalza, mediadora local do projeto e ativista sociocultural, participante da Plataforma Amanda e Munduko Arrozak. Esse projeto buscou criar um contexto de articulação entre Transductores e seu arquivo, em relação com diversas redes locais e ativistas da cidadania. Essa iniciativa organizou um laboratório de cidadania em rede, com o objetivo de gerar suas próprias relações e formas de mediação, nas quais ao mesmo tempo se produzisse, em processo, um trabalho expositivo e de autogestão do espaço e dos materiais disponíveis no arquivo. Para isso, em vez de criar uma exposição comum, projetou-se e construiu-se, em especial, um grupo motor composto por quatorze iniciativas locais da cidade de caráter diverso (educadores sociais, propostas agroambientais, de cidadania digital, de arte e espaço público, saúde comunitária, entre outros). A criação do grupo foi um trabalho invisível, feito pela da equipe de coordenação local por quase três meses, mediante convites objetivos e um projeto adaptado e negociado segundo os diversos interesses encontrados. Com isso, o grupo motor se reuniu, debateu e constituiu um processo em rede mediante um Laboratório Pedagógico, isto é, um experimento de aprendizagem colaborativa e de micro-assessorias, assim como uma proposta de programação própria, que durou uma semana inteira. O objetivo não era tanto mostrar boas práticas, mas sim dialogar de forma complexa com os materiais e estudos de caso mostrados na exposição, com o objetivo específico de gerar materiais, dinâmicas e mapas analíticos de cada projeto local de forma coletiva, entre todas as entidades e iniciativas participantes. Desse modo, toda a documentação gerada ia sendo mostrada e cruzada com os materiais expostos, graças à expografia baseada em tábuas e lousas, que, como estruturas modulares, permitiram uma exposição em contínua mutação[23]. No final desse laboratório, criou-se uma programação cultural participativa, composta por ações de autoeducação entre os diversos grupos e eventos públicos, que aquele mesmo grupo motor gestou de forma democrática e transparente[24]. Esse trabalho de autogestão durou quase um mês e meio, tempo em que cada entidade gerou ações e usos diversos do espaço segundo seus recursos e interesses, culminando em jornadas sobre cidadania em rede no dia 14 de maio. Essa jornada terminou transformando completamente o espaço, deixando somente os materiais gerados ali. Após o término da exposição, todos os materiais produzidos (tábuas e lousas) foram distribuídos entre as redes locais, e alguns grupos seguiram colaborando de modo autônomo. Outra experiência similar de trabalho em rede pode ser encontrada no projeto Obert per Reflexió, um laboratório experimental de trabalho colaborativo desenvolvido pelo LABmediació do Centro de Arte Tarragona (CA Tarragona), com o objetivo de reforçar o trabalho com o ecossistema desse território[25]. Essa atividade supunha a primeira ação do CA Tarragona. Ela desenvolveu durante quase dois meses um trabalho de elaboração compartilhada de projetos e plataformas com quase 40 entidades diversas de cidadania, a partir de três eixos de trabalho: comunicação e difusão, iniciativas locais de cultura e educação. O trabalho se desenvolveu com três grupos interdisciplinares, divididos segundo aqueles eixos, dando lugar a propostas de relação do trabalho em rede com o centro [CA Tarragona] e a dois microprojetos que ainda estão em desenvolvimento. Primeiro, “L’antena”, uma plataforma de difusão de trabalho e comunicação em rede de agentes locais de cultura, com a finalidade de projetar e gerar outros modos de produção cultural no tecido urbano de Tarragona. Depois, um “ateliê de co-criação”, para projetar iniciativas de mediação com agentes de educação da cidade, denominado Em relació[26]. Projetado por LABmediació e Mart Ricard, em colaboração com a Fundación Casal l’Amic, tinha por objetivo criar formas de mediar a exposição “Wet Feet”, de Bouchra Khali.

 

4. Conclusões e questões: sobre a descolonização do museu e outros desafios

Queremos fechar este texto pontuando resumidamente algumas das complexidades apresentadas por essas práticas e seus desafios dentro do marco descolonial de trabalho em museus e mediação. Parece-nos importante concluir apontando algumas das tensões que emergem das práticas e linhas de trabalho discutidas nestas páginas.

Uma primeira tensão latente tem a ver com os termos com os quais avaliamos esses projetos, inclusive com o modo como extrapolam políticas baseadas em qualificações de êxito, fracasso, alta participação ou mesmo políticas de empoderamento. Cabe pontuar que nesse tipo de projeto, nos quais se planeja em rede e no qual se colocam agentes, saberes e ritmos diversos – até mesmo antagônicos –, as condições de efetividade não podem ser medidas nunca em termos de êxito, de participação quantitativa ou de seguimentos numerosos. Ele sempre cria uma tensão entre o qualitativo e o quantitativo, que responde a agendas muito distintas de trabalho, solicitando o trabalho de políticas invisíveis e afetivas. Nesse ínterim, processos como esses não estão isentos de relações de poder, contradições e práticas discursivas, de modo que devemos evitar narrá-los e descrevê-los com a linguagem universalista e dos modos neoliberais que se enunciam sob relatos apologéticos, de boas práticas ou como paradigmas ideais. Às vezes, discursos enunciados por termos como “good practice”, “hibridização”, “empowerment” ou “the commons” são resultado do mercado acadêmico geopolítico anglo-saxão, e os usamos de antemão, sem nos darmos conta da colonização implicada na linguagem e sem repensarmos sua tradução e complexidade situada em cada caso. Assim, o risco de planejar a partir da complexidade do social escapa à planificação tecnocrática da gestão cultural, gerando muitas complexidades. A bateria de iniciativas aqui relatadas compõe uma trama de experiências nas quais as micropolíticas e os afetos cruzam os trabalhos; onde, muitas vezes, os marcos do trabalho são criados e projetados em processo, de modo que o imprevisível e o inapropriado surgem como material constante de trabalho, muitas vezes impossível de traduzir, capturar ou mensurar em termos de gestão e difusão.

Outra tensão que vale a pena apontar surge da divisão do trabalho e das condições de retribuição e redistribuição dos capitais dos projetos colaborativos. É importante sublinhar que este tipo de trabalho é sustentável quando há condições políticas, profissionais e pedagógicas para desenvolver estruturas a longo prazo, equipes estáveis de profissionais e condições de trabalho e institucionais que sustentem e ajudem a gerar esses laços e redes sociais. Às vezes, é necessário negociar e ter em conta os objetivos próprios e os do grupo. É importante repensar com clareza os benefícios e colaborações factíveis que se pode alcançar, repensando também as temporalidades da mediação, ao mesmo tempo em que pensamos as contradições da participação não remunerada, as condições sociais e simbólicas de reconhecimento do trabalho, os modos e hierarquias do trabalho que estão sendo reinscritos em tantas práticas. Nem sempre as agendas e temporalidades dos museus podem ser facilmente conciliadas com a das escolas e outras redes de trabalho. Inclusive, às vezes, as agendas culturais são rejeitadas ou encontram resistência.

Uma última tensão a pontuar é sobre a linguagem e os modos de se relacionar em que essas práticas são criadas, já que sempre se constituem mediante dispositivos de poder e modos hegemônicos, nos quais se legitimam certos saberes em detrimento de outros. O desafio estaria em encontrar formas alternativas de subverter esses dispositivos, levando-nos a buscar outros espaços e linguagens de encontro que não reflitam em sua estrutura o capital cultural do discurso de certos agentes (teóricos, curadores ou pesquisadores que demarcam a validade da linguagem e seus enunciados). É necessário, pois, descolonizar os saberes e espaços a partir dos quais falamos e trabalhamos, reconhecendo outros modos de nos encontramos e de trabalhar coletivamente. Como vimos, o tipo de experiência aqui descrito, definitivamente, não deixa de ser um microuniverso complexo, que pouco a pouco se revela e cria em sua ação outras formar de gerar, mediar e produzir conhecimentos e cultura. A precariedade das equipes, a imposição da produção de ateliês e de eventos para as exposições, assim como a hiperprodutividade cultural do mercado de centros artísticos, deixam um espaço mínimo ou praticamente afogam as equipes e recursos dessas iniciativas. Muitas delas são geradas a partir da precariedade laboral, emocional e profissional, dando lugar a situações de desgaste ou desconforto institucional. Apesar disso, são espaços de resistência alternativos, que conseguem parar a maquinaria neoliberal do sistema cultural.

Como vemos, essas tensões aqui levantadas nos situam frente a um desafio muito claro, sobre a possibilidade de descolonizar o museu em seus modos, ritmos, epistemologias e discursos nos quais se criam saberes e políticas. É necessário o reconhecimento de outras epistemologias, temporalidades e espaços de coletividade a partir dos quais se pode gerar cultura. Esses são questionamentos centrais para uma museologia descolonial. Essa aproximação buscaria analisar o poder da perspectiva colonial, seus saberes universalizantes e seus diversos modos de representar e narrar. Ou seja, ela nos leva à pergunta sobre a colonialidade do saber, do ser e, sobretudo, do ver[27]. Um olhar descolonizador se focaria nas contradições produtivas da criação de zonas de contato, desconstruindo de forma pragmática as identidades e verdades hegemônicas que se enunciam a partir dos museus, gerando outras formas de mediação e pesquisa em rede. Essa mediação descolonial, portanto, tenta suspender e interromper os discursos, para mostrar suas contingências e pretensões de objetividade universal, sob uma nova “epistemologia descolonial feminista-queer” (Rodriguez: 2010), criadora de outras formas de conhecimento e transculturalidade.

Sob esses parâmetros, seria interessante deixar de lado as políticas paternalistas de acesso e vitimização, a hiperprodutividade do mercado global da cultura e dos museus, assim como sua pretensão universalista/ilustrada sobre o conhecimento cultural e o patrimônio – parâmetros que articulam o neoliberalismo global com um neocolonialismo cultural local em muitos dos projetos de vanguarda museológica. Uma mediação crítica propõe outro tipo de cidadania em rede, tendo o museu como um nó a mais, deixando em suspenso essa articulação e trabalhando com suas contradições internas. Ela tenta deixar de lado as metáforas colonizadoras de fronteira, território ou divisão entre o social e o cultural. Assume os riscos das epistemologias brandas, não universais e contraditoriamente frutíferas. Essas são necessidades latentes para se repensar a museologia do futuro. Descolonizar o museu pressupõe pararmos para repensar coletivamente outros modos de negociação e de trabalho em redes complexas; outros lugares onde o produtivo e o reprodutivo entrem em uma tensão complexa e frutífera; onde se reconheçam outros saberes e tempos não colonizadores e onde se criem equipes estáveis e condições profissionais para assumir essa tarefa.

Para terminar, gostaríamos de concluir abrindo um debate com duas perguntas problematizadoras, no sentido de propor um desafio vinculado à complexidade do pensamento altermundista latinoamericano. É a pergunta que tenho me colocado tantas vezes em diversas ocasiões nas quais pude visitar museus e espaços culturais na América Latina, tendo assim a oportunidade de sair de países anglo-saxões. É uma questão que tem se repetido para mim, como um murmúrio de fundo, e que de algum modo também me coloco a partir da península ibérica, no cone sul da Europa:

Podemos traçar uma política que emerja como uma contramirada e um contradiscurso em relação aos paradigmas globalizadores do patrimônio e da cultura, de caráter centroeuropeu ou anglossaxão, como os da UNESCO ou do ICOM?

É possível gerar uma museologia e pedagogia outra, de caráter latinoamericano, descolonizadora e híbrida, com suas próprias referências, conflitos, relações, conhecimentos e contradições.

 

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[1] Artigo originalmente publicado na Revista Museos, nº 31, 2012, p. 76-87 – uma publicação da Subdireção Nacional de Museus do Chile. Segundo nota do autor, “Este texto é fruto de um convite ao congresso [Simpósio Internacional de Museologia] ‘Novas práticas, novas audiências: a 40 anos da Mesa de Santiago’, ocorrido nos dias 2 e 3 de outubro [de 2012]. É resultado do diálogo e da relação com outros textos, mas sobretudo com outras pessoas, equipes de educadoras e  experiências com as quais tenho colaborado, aprendido e discutido nos últimos anos”. Para esta tradução, também consideramos um PDF disponibilizado pelo autor, que faz pequenos acréscimos ao texto original. (N. do T.)

[2] Sigla para “Centro de Educação Inicial e Primária”. (N. do T.)

[3] Lembremos que a ágora era constituída por um sistema político que permitia a escravidão e a exclusão da mulher da vida democrática. Ademais, era parte de um império, o grego, com colônias; enquanto a praça sempre foi o cenário das revoluções, conflitos e expulsões constantes, e não simplesmente um espaço de convivência ou de consenso.

[4] Assim, outras instituições como a escola, o hospital ou a prisão estão sujeitas à mesma condição crítica. Não somente desde sua gênese e criação como instituições disciplinares com discursos normativos (Foucault), mas também no momento em que se repensam as relações destas instituições com a modernidade europeia, como fenômeno de colonização, exploração e submissão de outros saberes, epistemologias e sujeitos. Esta aproximação teria como resultado um marco de museologia crítica descolonial, algo que apontaremos no final deste texto.

[5] Por exemplo, Nancy Fraser, no texto “¿Estructuralismo o pragmática?: sobre la teoría del discurso y de la política feminista”, publicado em: FRASER, Nancy (1997). Iustitia Interrupta: Reflexiones críticas desde la posición “postsocialista”. Siglo de hombres Editores: Santa Fé de Bogotá, pp. 201-225.

[6] Aqui, utilizo deliberadamente o termo “intermédio” segundo a posição e escrita do teórico Hommi Bhabha em sua tradução para o espanhol (2002).

[7] A autora descreve especificamente em sua pesquisa a substituição da noção colonial de fronteira pela de zona de contato, a partir do exemplo das populações andinas ou indígenas com núcleos metropolitanos coloniais na América Latina.

[8] Tratarei deste aspecto no capítulo seguinte, ao repensar os desafios de uma pedagogias a partir dessa abordagem.

[9] Um exemplo típico do paradigma paternalista de inclusão social são os programas educacionais de diversidade cultural e exotização da cultura indígena. Uma crítica destas políticas e da sua repercussão social no Reino Unido, desenvolvidas pelo “New Laborism”, pode ser encontrada no livro de Ruth Levitas (1998).

[10] Uma descrição mais detalhada desse tipo de política, a partir de um marco conceitual, pode ser encontrada no texto: “El trabajo en red y las pedagogías colectivas: retos para la producción cultural”. (Rodrigo, 2008)

[11] Essa tendência é muito ressaltada pelo governo trabalhista anterior e referendada pelo governo atual, sob o paradigma hegemônico do “creative learning” e de programas como Creative Partnerships. Uma crítica a essas complexidades em relação à arte e educação foi descrita no capítulo “Segundo Campo: Ponga un artista en su vida: La hegemonía del diálogo y la creatividad en las pedagogías estetizadas”. Em: RODRIGO MONTERO, Javier. Educational Tendencies y líneas de tensión entre las políticas culturales e las educativas. Biblioteca y productions, Barcelona, 2010, p. 07-16.

[12] Um resumo dessas propostas e trabalho, em castelhano, pode ser encontrado no texto “La otra documenta: contrapartidas pedagógicas”. (RODRIGO, 2008)

[13] Esse texto se encontra traduzido para o português, neste mesmo número da Revista Periódico Permanente, com o título “Numa encruzilhada de quatro discursos”. (N. do E.)

[14] Existem outros textos como GRAHAM & YASI, 2007; RODRIGO, 2010; AMENGUAL, 2012; os fundamentos da museologia crítica da pesquisadora Carla Padró (2003), ou a tese de doutorado de Eneritz Lópes (2009), que também traçam outras histórias e possibilidades políticas, entre outros textos.

[15] A metáfora da “amiga crítica”, no sentido acadêmico, de pessoa que revisa, acompanha e questiona um texto de forma construtiva, para sugerir modificações e possibilidades de melhora.

[16] Descrevi essa dimensão com maior detalhamento no texto “Pedagogía crítica y educación en museos: marcos para una educación artística desde las comunidades”. (Rodrigo, 2007)

[17] Nesse caso, Carlos Sánchez, técnico de vídeo, sob a coordenação da equipe educativa, desenvolveu três curtas metragem dentro do projeto de 2008 denominado “A dinsi al coltant de ‘FPJM’” (Adentro e ao redor da FPJM).

[18] Uma descrição desse tipo de trabalho como tradução cultural e política da escrita e pesquisa etnográfica pode ser encontrada no texto “ArtUOM 05/07: Participación y traducción cultural”.
 (Rodrigo Montero, 2007)

[19] Ver a publicação coordenada por Aina Bauza (2010).

[20] Ver: <http://3runleon.wordpress.com/3run-leon/>, acesso em 11/02/2016.

[21] Coordenado por Javier Rodrigo Montero e Antonio Collados Alcaide, Transductores é “uma plataforma interdisciplinar que realiza projetos de investigação e mediação com três eixos principais de interesse: as pedagogias coletivas, as práticas artísticas colaborativas e os modos de intervenção na esfera pública”. Vem mais em: <http://transductores.net/que-es-transductores-2/>, acesso em 11/02/2016. (N. do E.)

[22] Ver: <www.amarika.org>, acesso em 11/02/2016.

[23] A descrição de todo o processo, assim como os materiais visuais, podem ser encontrados na página do projeto: <http://transductores.net/properties/memoria-trans-lab-amarika/>, acesso em 11/02/2016.

[24] Para isso, criou-se um calendário coletivo, gerido pelos componentes do grupo motor na ferramenta “calendários” do Google: <http://www.transductores.net/?q=es/content/translabcalendar>, acesso em 11/02/2016. (Ver abril e maio de 2011)

[25] O endereço eletrônico constante no PDF em que se baseou esta tradução (<http://catarragona.net/projecte/ca/obert-per-reflexivo>) não disponibilizava qualquer conteúdo na data de sua edição. (N. do E.)

[26] Ver: <http://enrelacio.wordpress.com>, acesso em 11/02/2016.

[27] Nesse sentido, recomendamos ver o grupo de trabalho da Troncal, um grupo de práticas geopolíticas e simbólicas, especialmente o seminário sobre “a colonialidade do ver”, coordenado por Joaquim Barrientos. Sobre outros debates acerca da colonialidade do saber e do ser, nos remetemos a outras opções de leitura dentro do escopo do pensamento sobre a descolonização e suas tensões, entre outros: Riviera (2010) ou a compilação de Castro Gómez e Grosfoguel (2007).

Museus como zonas de contato

 

Autor: James Clifford

Tradução: Alexandre Barbosa de Souza e Valquíria Prates

Revisão técnica: Diogo de Moraes

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Museus como zonas de contato

 

No início de 1989, eu estava sentado junto a uma mesa no porão do Museu de Arte de Portland, Oregon[a]. Cerca de vinte pessoas tinham vindo conversar sobre a coleção de arte Indígena da Costa Noroeste do museu. O grupo incluía membros da equipe do museu, vários antropólogos conhecidos e especialistas na arte da Costa Noroeste, e um grupo de velhos tlingit[b], acompanhados por dois jovens tradutores tlingit. Eu estava lá como "consultor", parte de uma bolsa que apoiava aqueles procedimentos.

A Coleção Rasmussen[c] do museu fora adquirida na década de 1920 no sul do Alaska e na costa do Canadá. Por muito tempo ficou exposta de maneira discreta, sem graça, um tanto excessivamente "etnográfica", e já havia passado da hora de uma nova instalação. O diretor do Instituto de Artes de Portland, Dan Monroe, que havia trabalhado com tribos nativas do Alaska, tomou a decisão incomum de convidar um grupo representativo de autoridades tlingit, velhos líderes de clãs importantes, para participar da discussão.

No porão do museu, os objetos da coleção foram retirados, um por um, e apresentados aos velhos tlingit para algum comentário: uma máscara de corvo, uma máscara cravejada de abalone, um chocalho entalhado... O que se seguiu foi uma série de complicadas e comoventes performances, ora sérias, ora divertidas.

A equipe curatorial aparentemente esperava que a discussão se concentrasse nos próprios objetos da coleção. Eu, desde o início, contava que os velhos fariam comentários detalhados, contando-nos, por exemplo: essa máscara era usada assim, era feita disso e daquilo; este é o poder disso para o clã, nossas tradições, e assim por diante. Na verdade, os objetos não tiveram muitos comentários diretos dos velhos, que tinham sua própria agenda para aquele encontro. Eles se referiram aos artefatos com apreço e respeito, mas aparentemente só os usavam como aides-mémoires, pretextos para contar suas histórias e cantar suas canções.

Canções foram cantadas e histórias contadas de acordo com os cristalinos protocolos que regem a autoridade de alguns indivíduos e clãs, regras que estabelecem direitos de apresentação. Um velho representante de um clã apresentava suas canções e histórias; depois outro velho de outro clã agradecia e retribuía. O evento inteiro tinha uma dimensão cerimonial, pontuada por intensa emoção, silêncios, e risadas. Os objetos da Coleção Rasmussen, foco da consulta, foram deixados – ou pelo menos foi o que me pareceu – de lado. Por longos períodos ninguém prestou qualquer atenção aos objetos em si. As histórias e as canções roubaram a cena.

Amy Marvin disse que as orações que ela cantava faziam-na "balançar", "como em um barco", e assim ela era capaz de contar histórias. Ela começou de repente, parecendo procurar pontos em uma paisagem familiar; lugares "lá longe"... Ela contou a "História da Baía dos Glaciares", sobre uma aldeia coberta de gelo: uma sensação de uma grande perda. Ela cantou uma música que lembrava isso. "Onde está a minha terra?" "Não verei minha aldeia nunca mais..." Ela se referia ao dia anterior, quando um tambor de pele de orca foi trazido – um tambor que o clã não sabia que havia sido preservado. Um momento bastante pesado, ela disse. Jimmy George, um velho de quase noventa anos, contou a história da baleia assassina, que pertencia ao seu clã... história que uma vez ele contou no parque Sea World de San Diego. Ela agradeceu.

A história da Baía dos Glaciares está ligada ao território atual onde ela vive, perto de Hoonah, Alaska. Isso ficou explícito quando Amy Marvin associou a perda das terras da tribo na história às atuais políticas do Serviço Florestal que regulam seu uso.

Uma máscara representando um polvo foi trazida. Então ela contou uma história a respeito de um polvo, um monstro enorme que bloqueava toda a baía com seus tentáculos e impedia o salmão de entrar na baía. (Todas as histórias eram contadas em tlingit com tradução e explicação dos participantes mais jovens – elaboradas performances, por vezes interrompidas por diálogos.) O herói tlingit precisava lutar e matar o polvo para deixar o salmão entrar na baía, salmão que é o principal alimento do grupo. O herói abre a baía de modo que o grupo possa viver. E, ao final da história, o polvo se metamorfoseou nas agências estaduais e federais que restringiam no presente os direitos dos tlingit de pegar o salmão, segundo a tradição.

Tal como foram apresentados no porão do museu, as histórias e mitos "tradicionais" sugeridos pelos velhos objetos do clã acabaram se revelando histórias específicas com significados presentes nas lutas políticas concretas.

Um dos tlingit mais jovens disse: Um dia voltaremos a pescar lá. E um velho, Austin Hammond, falando pela Casa Corvo em Haines, Alaska, defendeu Amy Marvin, dizendo que ele sentiu as emoções dela enquanto ela falava. Ele disse isso chorando. A história da Baía dos Glaciares lembrou, ele disse, de como ele costumava pescar e colocar armadilhas lá. Agora o mesmo monstro estava vindo por baixo da nossa canoa outra vez. A terra está sendo tirada de nós, e é por isso que ele estava contando aquilo. Eles já estavam afiando as facas, por assim dizer. Palavras têm essa força, ele disse.

Ela agradeceu pelas palavras dele: as palavras devem ser captadas, ela disse. Então Austin Hammond contou sobre o cobertor de polvo feito por seu pai (que não estava na coleção do museu), sobre o poder desse cobertor. Estamos contando essas coisas para vocês, ele disse aos brancos reunidos. Esperamos que vocês nos apoiem depois.

Lydia George, do conselho municipal, relatou em detalhes a situação atual das reivindicações de terra. Ela enfatizou que diferentes clãs e lugares se unem nessas lutas. Ela evitou fazer generalizações sobre os "tlingit".

Austin Hammond nos contou uma longa história sobre um Corvo, tendo o cobertor de seu pai estendido à sua frente. Ele falou em grande detalhe sobre os diferentes tipos de peixe, os momentos específicos de cada um deles entrar na baía e nos rios. Ele contou como o Corvo é quem determina essas coisas – todos os tipos de salmão, as regras do comportamento do salmão, e da nossa pesca. Por que eu estou contando isso?, ele mesmo perguntou. Quatro pessoas de Washington, D.C., vieram para a nossa convenção. Disseram que nós estávamos tirando todo o salmão. Eu contei a história – de como o Corvo trabalhou no salmão para todo mundo aqui na nossa terra.

Um casaco de contas estava à mesa. Austin Hammond contou uma "história da Bíblia" – uma história de Corvo que lembrava remotamente Jonas e a Baleia. Nós não temos escrita, ele disse, então fizemos cópias em nossas roupas, cobertores. Ele agradece a outro velho pela permissão de contar a história. Nela, o Corvo pousa no espiráculo da baleia, faz ali um pequeno forno, e cozinha o salmão que a baleia engoliu. Mas o Corvo não consegue mais sair dali. O que era humorístico vira tragédia. Para nossos irmãos brancos aqui, Hammond disse, nossas orações são como as do Corvo. Quem cortará a baleia para nós sairmos? Precisamos de todos os nossos ancestrais, pois a nossa terra está sendo tomada de nós. Nossas crianças... quem cuidará delas? Talvez vocês possam nos ajudar, ajudem-nos a abrir a baleia. É assim que eu me sinto.

Com tristeza, ele contou que vive sozinho na casa de seu clã. Ele invocou os avós e ancestrais, então cantou uma música composta por seu tio, Joe Wright, emendando uma parte dela em seu discurso urgente. Estamos perdendo nosso território, ele disse, então eu canto essa canção.

Mais discursos, mais histórias, e explicações se seguiram – respostas formais aos falantes. Depois do almoço, o clima estava mais leve: foram entoadas canções de amor, temperadas com humor rançoso e indiretas. Todos puderem cantar essa. Um jovem tlingit explicou que nas festas e celebrações existe um lado pesado – lidar com a perda, com os ancestrais, com a escolha dos nomes – e um lado leve: humor e expressões de amor de uns pelos outros.

O processo continuou por três dias, com objetos da Coleção Rasmussen sobre as mesas ou dentro de caixas.

 

Reciprocidades

A experiência de "consulta" deixou a equipe do Museu de Arte de Portland com dilemas difíceis. Ficou claro que do ponto de vista dos velhos tlingit os objetos colecionados não eram essencialmente "arte". Eles se referiam aos objetos como "registros", "história" e "lei", inseparáveis dos mitos e histórias, expressando lições de moral atuais com força política atual. O museu ficou claramente convencido de que as vozes dos velhos tlingit deviam ser apresentadas ao público quando os objetos fossem expostos. Essa exigência pressupunha um genuíno grau de confiança, uma vez que muitas daquelas histórias e canções eram propriedade daqueles tlingit. Seriam necessárias permissões específicas. Na verdade, um acordo prévio estipulava que qualquer informação revelada durante a consulta seria controlada conjuntamente pelo museu e pelos velhos tlingit. Em mais de uma ocasião durante aqueles procedimentos, o museu foi advertido diretamente: Nós estamos correndo o risco de confiar coisas importantes a vocês. É importante que isso seja registrado para a posteridade. O que vocês vão fazer com o que nós lhes dermos? Nós estaremos prestando atenção. [1]

A equipe do Museu de Portland fez realmente questão de que a administração da Coleção Rasmussen incluísse comunicações recíprocas com as comunidades cuja arte, cultura e história estavam em questão. Mas será que conseguiriam conciliar os diferentes tipos de significado evocados pelos velhos tlingit com os significados impostos pelo contexto de um museu de "arte"? Até que ponto seriam capazes de descentralizar os objetos físicos em favor de uma narrativa, de uma história, de uma política? Existiria alguma estratégia capaz de expor uma máscara simultaneamente como uma composição formal, um objeto de funções tradicionais específicas na vida do clã ou da tribo, e ao mesmo tempo como algo que evocasse uma história atual de luta? Quais significados deveriam ser enfatizados? E quais comunidades tinham o poder de determinar a ênfase escolhida pelo museu? O museu deveria agora consultar indivíduos com autoridade no clã associados a outros objetos tribais da coleção – kwagiulth, haida, tsimshian? Seria possível estabelecer relações de confiança com todos os grupos e indivíduos relevantes? Até que ponto o processo inteiro dependia de contatos pessoais específicos? Como seria possível, nessa relação, lidar com conflitos internos das comunidades tribais contemporâneas? (Os velhos tlingit que vieram a Portland não representavam todos os clãs associados aos objetos.) Quanta discussão e negociação seria o suficiente? E quanto dinheiro um único museu esperaria receber em apoio a tais atividades? Não posso me alongar sobre as contingências pessoais, institucionais e financeiras que atrasaram a reinstalação da Coleção Rasmussen. Basta dizer que as escolhas impostas pelos velhos tlingit permanecem sem solução, suas propostas (e desafios) sem resposta. [2]

Conforme o encontro prosseguia, o porão do Museu de Arte de Portland foi se tornando algo mais do que um lugar de consulta ou pesquisa; aquele local se tornou uma zona de contato. Tomo emprestado o termo de Mary Louise Pratt. Em seu livro Imperial Eyes: Travel and Transculturation [Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação] (6-7), ela define "zona de contato" como o "espaço de encontros coloniais, o espaço onde povos geográfica e historicamente separados entram em contato uns com os outros e estabelecem relações concretas, geralmente envolvendo condições de coerção, desigualdades radicais e conflitos irredutíveis." Diferentemente do termo "fronteira", que se "baseia na perspectiva da expansão europeia (a fronteira só é uma fronteira em se tratando da Europa)", a expressão "zona de contato"

é uma tentativa de invocar a co-presença espacial e temporal de sujeitos anteriormente separados por disjunções geográficas e históricas, e cujas trajetórias agora se cruzam. Ao usar o termo "contato" pretendo enfatizar as dimensões interativas, improvisadas, dos encontros coloniais, tão facilmente ignoradas ou suprimidas pelos relatos difusionistas de conquistas e dominações. Uma perspectiva de "contato" destaca como os sujeitos são constituídos e as relações que têm uns com os outros. Ela enfatiza a co-presença, a interação, inter-relacionando entendimentos e práticas, muitas vezes dentro de relações de poder radicalmente assimétricas.

Quando os museus são vistos como zonas de contato, sua estrutura organizacional enquanto coleção se torna uma relação atual, política e moral concreta – um conjunto de trocas carregadas de poder, com pressões e concessões de lado a lado. A estrutura organizacional de um museu-enquanto-coleção funciona como a fronteira de Pratt. Um centro e uma periferia são assumidos: o centro como ponto de reunião, a periferia como área de descoberta. O museu, geralmente localizado em uma cidade metropolitana, é o destino histórico das produções culturais cuidadosa e autoritariamente salvaguardadas, cuidadas e interpretadas[d]. [3]

O que se passou no porão do Museu de Portland não era redutível a um processo de aconselhamento ou informação sobre uma coleção. E aconteceu mesmo um certo excesso de consultas. Uma mensagem foi passada, apresentada, dentro de uma história concreta de contato. Tal como foi evocado no porão do museu, a história tlingit não iluminou ou contextualizou essencialmente os objetos da Coleção Rasmussen. Mais do que isso, os objetos provocaram (propiciaram, deram voz a) histórias concretas de lutas atuais. Do ponto de vista do museu colecionador e do curador consultado, esta era uma história de rupturas que não podia ser restrita a fornecer contextos tribais do passado aos objetos. O museu foi relembrado de uma noção de responsabilidade, enquanto administrador dos objetos do clã. (O repatriamento, na ocasião, não era uma questão explícita.) O museu foi solicitado a assumir responsabilidades de um modo que ia muito além da conservação. O museu foi convocado a agir em favor das comunidades tlingit, não simplesmente a representar a história dos objetos tribais completa e precisamente. Uma espécie de reciprocidade foi reivindicada, mas não como um toma-lá-dá-cá que poderia levar a um acordo final de pensamentos, uma reunião que apagaria as discrepâncias e a atual desigualdade de poder das relações de contato.

Antes de explorarmos essa reciprocidade desigual, é importante nos darmos conta dos limites da perspectiva de contato que estou desenvolvendo aqui. Por exemplo, algo do que ocorreu em Portland certamente não era essencialmente um trabalho de zona de contato. Certas canções, discursos, histórias e conversas eram performances entre os próprios tlingit, não dirigidas ao museu e suas câmeras, mas um trabalho interno do próprio clã – o que deveria ser feito se os objetos fossem abordados de todo modo. (Essa dimensão era bastante obscura para mim na posição marginal em que me encontrava.) Sobretudo, embora não se possa separar uma história de perdas, deslocamentos e reconexões, do significado das máscaras, tambores e vestimentas exibidos aos velhos do clã, seria errado reduzir os significados tradicionais dos objetos, os sentimentos profundos que eles ainda evocam, a reações de "contato". Se uma máscara evocava um avô ou uma velha história, ela também devia incluir sentimentos de perda e luta; mas também devia incluir o acesso a uma poderosa continuidade e conexão. Dizer que (dada a experiência colonial destrutiva) todas as memórias indígenas devem ser afetadas por histórias de contato não é o mesmo que dizer que essas histórias as determinam ou que as esgotam. O presente "tribal" é um tecido e alguns de seus fios se estendem desde muito antes (e depois) do encontro com as sociedades brancas – encontro que pode parecer interminável mas que é na verdade descontínuo e, em alguns aspectos, terminável. [4] Os velhos objetos certamente evocaram essas outras histórias (memórias, esperanças, tradições orais, associadas à terra). Mas na zona de contato do porão do Museu de Portland os significados dirigidos aos interlocutores brancos foram essencialmente relacionais: "Isto é o que os objetos nos inspiram a dizer em resposta a nossa história compartilhada, os objetivos da responsabilidade e da reciprocidade em curso que adotamos diferentemente."

Se a reciprocidade é uma questão crucial, ela não será entendida da mesma maneira por povos de culturas diferentes em relações de poder assimétricas. A reciprocidade nas exigências dos tlingit de ajuda não envolvia, como em uma transação comercial, o objetivo de serem pagos, encerrando outras obrigações. Mais do que isso, a intenção era desafiar e retrabalhar uma relação. Os objetos da Coleção Rasmussen, mesmo tendo sido justa e livremente comprados e vendidos, jamais poderiam ser inteiramente possuídos pelo museu. Eles eram lugares de negocição histórica[e], ocasiões de um contato concreto e atual.

Em Paradise, texto que compõe o capítulo 6 do livro Rotas: viagem e tradução em fins do século XX, abordei outro espaço e outras práticas museológicas em uma perspectiva de contato. Lá, o Museum of Mankind [Museu da Humanidade] de Londres foi mostrado em meio a relações potencialmente complexas e assimétricas com grupos e indivíduos das montanhas da Nova Guiné. O museu, ainda que não necessariamente seu curador e etnógrafo, Michael O'Hanlon, desejava estar quite com suas obrigações para com os waghi, cuja cultura e história estavam expostas nas galerias. Mas um olhar para o lado dos waghi na transação, ou pelo menos para as aspirações de certos indivíduos, sugere uma compreensão mais atual, e diferentemente politizada, dessa relação. A "reciprocidade", um parâmetro para acordos justos, é um termo traduzido, cujo significado depende de situações de contato específicas. Assim, os diferentes contextos e significados do termo, as localizações do poder a partir das quais o termo é usado, devem sempre ser observados. Essas diferenças de localização e significado estavam em questão no porão do Museu de Portland.

Nas zonas de contato, segundo Pratt, grupos separados geográfica e historicamente estabelecem relações concretas no presente. Não são relações de igualdade, mesmo que processos mútuos de exploração e apropriação possam estar em ação. [5] Como já vimos, suposições fundamentais sobre a própria relação – noções de troca, justiça, reciprocidade – podem ser tópicos de luta e negociação. Sobretudo, as zonas de contato são constituídas através de movimentos recíprocos dos povos, não só dos objetos, mensagens, mercadorias e dinheiro. As montanhas da Nova Guiné são distantes de Londres, mas os waghi que cooperaram com O'Hanlon para formar a coleção de "cultura material" para o Museu da Humanidade se sentiam conectados, e até mesmo no direito de visitá-la. A expectativa deles era de que seria organizada uma visita a Londres, semelhante à visita que muitos anos antes seus vizinhos do Monte Hagen, uma trupe de dançarinos, fizeram. Alguns waghi, pelo menos, estavam dispostos a "trabalhar" por seus próprios propósitos nessa zona de contato entre Londres e as montanhas da Nova Guiné. O'Hanlon precisou explicar que sua gestão no museu não incluía fundos para tal viagem. Diferenças de poder, controle e detalhamento do orçamento determinavam quem seriam os colecionadores e quem seriam os colecionados.

A Universidade de Stanford também fica longe da Nova Guiné. Recentemente, ali foi o local de um conjunto bastante diferente de relações de contato. Cerca de uma dúzia de escultores da região do rio Sepik viajaram a Palo Alto para esculpir e instalar um jardim de esculturas no campus da universidade. O projeto foi organizado com poucos recursos por Jim Mason, um estudante de antropologia, a partir de pequenas doações e contribuições. Uma vez em Stanford, os escultores ocuparam um bosque do campus central e começaram a trabalhar. Ao longo do verão de 1994, eles transformaram troncos de árvores trazidos da Nova Guiné e algumas rochas trazidas de Nevada em figuras humanas entrelaçadas com animais e desenhos fantásticos. O local de trabalho deles ficava aberto a qualquer um que passasse por ali, e nas noites de sexta-feira o lugar virava uma festa, com churrascos, pinturas faciais, tambores e danças. Os artistas da Nova Guiné ensinaram seus desenhos aos interessados de Palo Alto. Um grande número de pessoas aparecia toda semana para conviver com eles, para fazer arte, e celebrar.

Quando eu os visitei no outono de 1994, os artistas já haviam retornado ao rio Sepik e o "Jardim de Esculturas da Nova Guiné" consistia de várias dezenas de troncos esculpidos e pedras espalhadas entre as árvores. Os troncos eram presos por cabos (recentemente um havia sido roubado) e protegidos da chuva por folhas de plástico transparente. As pessoas passavam por ali e retiravam a cobertura plástica de crocodilos e pássaros de longos bicos. Um panfleto informava os visitantes de que o projeto ainda precisava levantar U$40.000 para a instalação e para o paisagismo. As contribuições sugeridas iam de U$10.000 para passagens da Nova Guiné a U$250 por uma samambaia, U$100 por um refletor, U$25 de ajuda de custo para as despesas pessoais dos artistas. Enquanto escrevo isto, um ano mais tarde, o jardim vem ganhando forma. Os voluntários fixaram os mastros em cimento e instalaram as esculturas de pedra. Montes de terra e plantas foram trazidos segundo os estilos de paisagismo da Nova Guiné. Os mastros mais altos formavam uma “casa do espírito”, enquanto outros mastros retorcidos, alegremente coloridos ou elaboradamente entalhados, e gongos iluminados se espalhavam por todo o jardim.

No Jardim de Esculturas da Nova Guiné, processos interativos foram importantes enquanto produção e coleção de "arte" e "cultura". Embora exista uma longa tradição de trazer povos exóticos para museus, zoológicos e feiras mundias do ocidente, os escultores em Stanford não foram oferecidos como espécimes em exposição. Eles foram apresentados como "artistas" praticantes, não como "nativos". As pessoas podiam, é claro, vê-los como exóticos, mas isso ia contra o espírito do projeto, que convidava as pessoas a participar, financeira e pessoalmente, na feitura do jardim. Os artistas viajantes podiam ir atrás de suas próprias aventuras, reunindo prestígio, informação e diversão, enquanto se mantinha contato com a região do rio Sepik por telefone. Eles fizeram amizades com as várias comunidades em torno de Stanford. Eles foram levados à Disneyland e ao Instituto Esalen, foram apresentados aos bombeiros locais e aos membros da Igreja Comunitária Africana WO'SE, em Oakland. Centenas de pessoas foram ao aeroporto acompanhar a partida dos artistas. Novas visitas, em ambas as direções, foram planejadas. Um visitante frequente do jardim do campus comentou: "Parece um milagre caído aqui do espaço sideral, dentro dessa comunidade branca e de alta classe." Um dos escultores disse: "Todas as pessoas que vêm aqui são boas. As pessoas ficam felizes de nos ver, e nos trazem comida" (Koh, 1994: 2B).

Por ora, podemos deixar de lado a importante questão de quem em útlima análise será dono e usará o jardim, e considerar como o processo interativo de sua feitura abre um espectro diferente de relações se comparado às normalmente praticadas em contextos de coleção e exposição. Richard Kurin (1991) descreve fenômenos similares durante duas exposições/performances feitas no Mall de Washington, D. C., como parte do Festival da Índia de 1985. Os eventos foram intitulados "Aditi: A Celebration of Life" [Aditi: uma celebração da vida] e "Mela! An Indian Fair" [Mela! uma feira indiana]. O primeiro trouxe artesãos da Índia rural e artistas performáticos para o Museu de História Natural; o segundo evento era uma "feira composta por rituais, artesanato, apresentações, comidas e tradições comerciais de uma série de regiões da Índia" (319). Kurin descreve em detalhes muitas maneiras pelas quais os artesãos e artistas de rua modelaram e adaptaram seus contextos "expositivos". Ele também aborda os diferentes interesses políticos envolvidos – do Smithsonian Institution, do governo indiano e dos artistas de rua da Índia. Estes últimos usaram o reconhecimento obtido pela viagem a Washington para melhorar sua situação empobrecida no país natal, para induzir os políticos a reconsiderar as duras leis anti-mendicância aplicadas aos artistas populares, e em alguns casos, para adquirir títulos de terra. O complexo relato de Jurin sobre os acontecimentos no Mall sugere um espaço utópico de interação e improvisação performativa, definido pelas castas e classes políticas na Índia e pela comoditização das tradições "folclóricas" e "culturais" no mercado geopolítico dos "festivais" nacionais. Imigrantes recentes da Índia para os Estados Unidos que trabalharam como intérpretes e ajudaram nos eventos se viram identificados com as apresentações de rua "vulgares", das quais teriam vergonha na Índia. Hierarquias de classe e casta se aplainaram, ao menos por algum tempo, pois os artistas eram convidados para fazer refeições nas casas dos intérpretes. O respeito pela diversidade das subculturas indianas foi estimulado. E o museu que patrocinou tudo foi obrigado a modificar seus modos objetificadores de exposição para acomodar os visitantes que acharam que aquilo era apenas mais uma feira, só que desta vez dentro do Mall em Washington, D.C. Como organizador do evento, Kurin se viu entre as necessidades das apresentações e as necessidades de ordem institucional. Diariamente ele pedia aos homens-macaco de Mela para desceram das árvores, com ameaças de prisão pela polícia do parque, mas seus pedidos não "eram vistos nem como avisos oficiais, nem como orientações cênicas, mas como meras falas a serem incorporadas na rotina das apresentações para o deleite do público" (324). [6]

 

Explorações

É importante manter as possibilidades de subversão e reciprocidade (ou de mútua exploração relativamente benigna) em tensão com a longa história de exposições do "exótico" no ocidente. Essa história fornece um contexto de duradoura desigualdade de poder dentro da qual e contra a qual se dá o trabalho de contato da viagem, exposição e interpretação. Uma matriz ideológica concreta e atual governa a compreensão dos povos "primitivos" em lugares "civilizados". Como Coco Fusco e Guillermo Gómez-Peña[f] descobriram ao apresentarem uma sátira declarada em que ameríndios "que não foram descobertos" eram confinados dentro de uma gaiola dourada, muitos visitantes tomaram aquilo literalmente. Fusco (1995) distingue uma "outra história" de performances interculturais, que vai dos arauaques raptados por Colombo e os canibais de Montaigne às "aldeias" e "ruas" povoadas nas feiras mundiais, até os ishi no Museu de Antropologia da Universidade da Califórnia. Ela extrapola a história para incluir todas as performances de identidade mais ou menos coagidas: a espetacularização dos "nativos" em documentários ou a coleção de arte (e artistas) "autênticos" do Terceiro Mundo para exposições como "Les Magiciens de la Terre" [Os mágicos da terra] em Paris. Um crescente conjunto de textos começou a fornecer detalhes sobre essa história bastante extensa e contínua dos contatos expositivos (Rydell, 1984; Bradford e Blume, 1992; Corbey, 1993; Fusco, 1995). Essa história revela o racismo, ou na melhor das hipóteses a condescendência paternalista, de espetáculos que ofereciam espécimes mudos, exotizados, para multidões curiosas e excitadas. A degradação era física e também moral, frequentemente resultando na morte imprevista dos viajantes. As exposições eram zonas de contato onde os germes faziam suas próprias conexões. [7]

A ênfase, inteiramente apropriada, na coerção, exploração e incompreensão, contudo, não esgota as complexidades da viagem e do encontro. [8] Montaigne, por exemplo, extraiu mais do que um frissom etnocêntrico de seu encontro com os tupinambá em Rouen. Mesmo os encontros que são etnocêntricos – algo que todos são em alguma medida – são capazes de produzir reflexões e críticas culturais. As reflexões críticas e os agenciamentos de "viajantes" exóticos são mais difíceis de descobrir, diante dos registros limitados e de uma tendência, quando existem os registros, de relatar o comportamento dos viajantes em vez de sua expressão independente. Uma vez que eles eram tratados geralmente como espécimes passivos (ou vítimas), suas opiniões raramente entravam nos registros históricos. Suas "narrativas do cativeiro" ainda estão para ser descobertas ou agrupadas, inferidas, dos fragmentos históricos. [9] Alguns desses "viajantes" expostos em cortes europeias, museus, feiras e zoológicos eram raptados, e suas viagens não tinham nenhum voluntarismo envolvido. Em muitos casos, tratava-se de um misto de força e escolha. As pessoas se deixavam levar pelos projetos dos exploradores e empreendedores por uma série de razões, incluindo o medo, a necessidade econômica, a curiosidade, um desejo de aventura, uma busca de poder.

"Um colega meu", escreveu Raymond Corbey, "que cresceu na Berlim do pós-guerra me contou de seu espanto quando, ainda menino, ele se deparou com um homem africano, que horas antes ele vira em trajes nativos no Panoptikum de Castan, vestindo roupas europeias dentro de um bonde, fumando um cigarro." (Corbey, 1993: 344). O espanto, mesclado talvez a uma sensação de traição, foi uma reação apropriada de alguém acostumado ao primitivismo cuidadosamente encenado. Mas qual era a atitude do africano diante do movimento entre o espetáculo racial/étnico e o bonde? Atuar como africano era um sacrifício? Uma sátira? Um motivo de orgulho? Só um emprego? Tudo isso junto? E mais ainda? Uma resposta adequada depende de sabermos sobre as histórias individuais e as relações de poder específicas. Na maioria dos casos, os detalhes não se encontram disponíveis. Mas existe a documentação para uma experiência reveladora na qual a cultura nativa foi transformada em espetáculo – uma experiência que, embora longe de ser típica, pode esclarecer as relações sociais e os diferentes investimentos em questão.

Em 1914, Edward Curtis, o elegíaco fotógrafo dos índios norte-americanos, fez um longa-metragem chamado In the Land of the Headhunters [Na terra dos caçadores de cabeças]. Trabalhando no norte de Vancouver Island, Curtis contratou um grande contingente de índios kwakiutl para representar uma história anterior ao contato com a vida da costa noroeste do Canadá, incluindo um romance entre um menino e uma menina, feiticeiros malignos, máscaras e canoas de guerra, e cabeças cortadas. Com auxílio de autoridades locais – especialmente George Hunt, o principal assistente de Franz Boas – foi feita uma tentativa séria de recriar cenários tradicionais autênticos, artefatos, danças e cerimônias. T. C. McLuhan, em seu filme The Shadow Catcher [O caçador de sombras] (1975), registra lembranças de três velhos que participaram da recriação de Curtis. Eles lembram que foi muito divertido, vestir-se e fazer coisas à maneira antiga. Todo mundo se divertiu. As conversas de Bill Holm com outros participantes sobreviventes, durante a exibição do filme restaurado em 1967, confirmaram essas opiniões (Holm e Quimby, 1980).

Em um sentido importante, os kwakiutl foram explorados por Curtis, obrigados a representar um estereótipo de si mesmos para o consumo dos brancos. O título sensacionalista apresentando os "caçadores de cabeças" é indicativo daquilo que Fusco defende sobre a inevitável violência desses projetos. E nos cabe perguntar: Se o filme tivesse sido um sucesso comercial, quanto dos lucros voltaria para o norte de Vancouver Island? Em outros sentidos importantes, no entanto, as relações não foram de exploração. Os participantes do filme ganharam um bom dinheiro e se divertiram. Eles doaram voluntariamente adereços de cabeça, rasparam seus bigodes, e suportaram as cócegas dos anéis de nariz feitos de madrepérola. Eles sabiam que o retrato feito por Curtis de suas tradições, ainda que sensacionalista, era respeitoso. O espetáculo era, afinal, parte importante da cultura kwakiutl, e Curtis registrou uma rica tradição de representação indígena. Sobretudo, George Hunt desempenhou um papel crucial nesse processo, interpretando a tradição, recrutando atores, e reunindo roupas e adereços. Fotografias sobreviventes da filmagem mostram Curtis atrás da câmera, com Hunt ao seu lado, segurando um megafone e dirigindo a ação (Holm e Quimby, 1980: 57-61). Segundo os padrões locais, no contexto do comércio e dos contatos etnográficos anteriores, Curtis lidou dignamente com as comunidades por ele mobilizadas. Seu interesse por uma cultura "em extinção" parecia acompanhado produtivamente pelo próprio interesse dos kwakiutl por um modo de vida que alguns deles conheceram através de seus pais e avós e com o qual eles sentiam uma forte continuidade ao longo daqueles tempos de transformação. [10]

A encenação de espetáculos culturais pode assim ser um processo de contato complexo com diferentes roteiros negociados por empresários, intermediários e atores. É claro que o filme de Curtis, realizado em território indígena com a assistência de autoridades locais, era muito diferente dos espetáculos itinerantes e exposições, que costumavam ser eventos mais dominadores e exploradores. O mais famoso de todos esses estereótipos comerciais, o Buffalo Bill's Wild West Show [Espetáculo do oeste selvagem de Buffalo Bill], era mantido por relações pessoais respeitosas com os participantes indígenas. Mas as condições de viagem eram duras, e poucos índios duravam mais de uma ou duas temporadas no elenco. Alguns se juntavam ao espetáculo pelos salários oferecidos (baixos, mas não havia como ganhar dinheiro nas novas reservas indígenas na época); outros desejavam fugir da inatividade imposta pela "pacificação"; eventualmente, o governo enviava "baderneiros" para o espetáculo como alternativa à prisão; outros queriam apenas viajar e observar o mundo dos brancos (Blackstone, 1986: 85-88). Black Elk [Alce Negro], um sioux oglala, juntou-se a Buffalo Bill por este último motivo, e suas recordações de Chicago, Nova York, Londres e Paris fornecem um valioso olhar sobre as viagens e a crítica cultural desde um ponto de vista indígena (Black Elk, 1979; DeMallie, 1984; ver também Standing Bear [Urso Parado], 1928). É imperativo reconhecermos que as performances culturais nesses espetáculos eram pautadas por um script e que seus atores eram frequentemente explorados. Mas é também essencial reconhecermos uma gama de experiências e não excluir dimensões de agenciamento (e ironia) nessas participações. O tema crucial do poder muitas vezes aparece diferentemente em variados níveis de interação, e não podemos simplesmente repetir o que está prescrito pelas localizações geopolíticas. Poder e reciprocidade são articulados juntos de maneiras específicas. Quem decide o quê? Quando? As relações estruturais e interpessoais de poder reforçam ou complicam umas às outras? Como diferentes agendas se acomodam em um mesmo projeto?

Na cena contemporânea, a performance da cultura e da tradição – aquilo que Robert Cantwell (1993) chama de "etnomimese" – pode incluir o empoderamento e a participação em uma esfera pública mais ampla assim como a comoditização dentro de um jogo de identidade cada vez mais hegemônico. Por que um povo tribal desejaria dançar em Nova York ou Londres? Por que vir para Stanford? Por que fazer esse jogo da autorrepresentação? [11] Esses visitantes, seus anfitriões e empresários, não são imunes aos legados coloniais do exotismo e dos processos neocoloniais de comoditização. Nem tampouco estão inteiramente confinados por essas estruturas repressoras. É importante reconhecermos essa complexidade. Pois o que excede o aparato coercitivo e os estereótipos nas relações de contato talvez possa ser reivindicado para as práticas atuais em movimentos que expandam e democratizem aquilo que pode acontecer em museus e outros lugares afeitos à etnomimese. As possibilidades históricas das relações de contato – negativas e positivas – precisam ser confrontadas.

Em casos em que a coerção não é direta, quando artistas não-ocidentais, produtores de cultura e curadores entram em museus ocidentais segundo seus próprios termos (negociados), os lugares de coleção de arte e antropologia já não podem mais ser entendidos essencialmente em termos de descobertas prometeicas e de uma seleção criteriosa. Eles se tornam lugares de cruzamento, explícitos e não-reconhecidos, ocasiões para descobertas e seleções diferentes. Alguns exemplos esclarecedores e atuais podem ser encontrados no livro Fusion: West African Artists at the Venice Biennale [Fusão: artistas da África Ocidental na Bienal de Veneza], com entrevistas conduzidas por Thomas McEvilley (1993). Tamessir Dia – um senegalês, nascido no Mali, criado na Costa do Marfim, e educado na França – expressa uma "perspectiva de contato" africana. Depois de observar sua admiração por Delacroix, Cézanne, e especialmente Picasso, Dia acrescenta:

Segundo a minha percepção, aquilo que acontece na Europa e na América me pertence. Um dia me perguntaram o que eu achava de Picasso e outros pintores europeus e eu disse, "Na França, eu peguei o que era meu. Picasso veio e levou coisas da minha terra natal. Eu fui à França e peguei coisas que eram minhas." Para mim, a tradição europeia foi uma maneira de compreender novamente o valor da minha própria civilização, porque a Europa depois da Primeira Guerra Mundial estava com uma crise de imaginação, uma crise de desenvolvimento no sentido artístico, cultural. E eles se voltaram para a África. Eu também entendi que eles usaram o meu patrimônio [heritage] para desenvolver o deles, então por que eu não poderia usar o deles, qualquer coisa que tecnicamente fosse útil para mim, para me expressar?

McEvilley respode: "Quando você diz que foi à França e pegou o que era seu, você não quer dizer que estava pegando de volta elementos roubados da cultura africana, mas que você estava pegando elementos da cultura europeia que pertenciam a você em troca daqueles." Dia esclarece: "Não me limito à cultura africana – isso seria absurdo, seria ridículo para qualquer africano hoje em dia falar em africanidade ou negritude. Aquilo que você é está em tudo, está no seu espírito. Como africano, você jamais poderia viver exatamente como um europeu – pelo menos as pessoas da minha geração" (McEvilley, 1993: 61).

A África e a Europa foram lançadas uma contra a outra por histórias destrutivas e criativas de império, comércio e viagem; ambas se valem das tradições uma da outra para refazer suas próprias tradições. Pratt (1992: 6), seguindo Fernando Ortiz e Angel Rama, chamam esses processos de "transculturações". Até recentemente no ocidente, a transculturação era entendida hierarquicamente, de modo a neutralizar a desigualdade de forças e as reivindicações de um grupo para definir o que seja história e autenticidade. Por exemplo, africanos usando o patrimônio [heritage] europeu eram vistos como imitadores, que perderam suas tradições em um jogo de aculturação de soma nula; europeus usando recursos culturais africanos pareciam criativos, progressistas, modernistas inclusivos. Opiniões como as de Tamessir Dia sugerem uma história mais complexa de traduções e apropriações.

A história dos contatos é evocada em dois títulos – "Africa Explores" [Explorações da África] e "Digesting the West" [Digerindo o Ocidente] – da inovadora exposição de Susan Vogel e do catálogo de arte africana do século XX (Vogel, 1991). Nesse caso, um museu contemporâneo, o Center for African Art [Centro de Arte Africana] de Nova York, reúne obras que, há mais de um século, vêm interpretando o ocidente através de processos transculturais, que vão da admiração fugaz e da alimentação forçada à sátira, da conversão sincrética à seleção crítica. Esse museu de Nova York age em circuitos bem estabelecidos de viagens e transculturações. Por um lado, ele reencena, sob novas formas, práticas estabelecidas de descoberta e reunião, e de valorização de arte e cultura – uma incansável exploração e construção curatorial da África. Nessa prática, esse museu traz obras periféricas para um centro estabelecido, para serem apreciadas e comoditizadas. Por outro lado, o Centro de Arte Africana cada vez mais trabalha com a consciência da África não simplesmente como um "lá" distante (ou um "antigamente"), mas como parte de uma rede, de uma série de camadas, formando uma diáspora que inclui a cidade de Nova York. Essa diáspora já foi bem estabelecida, abrangendo rotas e raízes da escravidão, da migração do Caribe, da América do Sul e de lugares rurais da América do Norte, e também de circuitos atuais de comércio e imigração desde o continente africano. Nesse contexto, o trabalho de contato do museu assume dimensões locais, regionais, hemisféricas e globais. Em uma recente exposição de altares africanos e afro-americanos, "Face of the Gods" [A face dos deuses], o centro explicitamente lidou com o desafio de expor essa diáspora. Esse projeto trouxe artistas/praticantes de religiões de origem africana para o museu, tanto em Nova York quanto nas sucessivas reuniões e transformações desses altares, em itinerâncias.

Africa 95 oferecia um exemplo mais extensivo de uma abordagem do contato. Essa reunião extraordinária de exposições de arte, performances de música e dança, filmes, conferências, oficinas, residências, programas de televisão e rádio, e eventos infantis, foi provocada por uma exposição planejada pela Royal Academy of Arts de Londres, "Africa: The Art of a Continent" [África: a arte de um continente]. O projeto da Academia Real, uma grande seleção "abrangente", foi concebido segundo um modelo clássico: um único curador europeu reuniu o que ele considerava mais representativo, limitando a exposição à "arte" produzida antes de 1900. Os organizadores da exposição Africa 95 na verdade adaptaram esse projeto para uma visão mais heterogênea e voltada para o futuro[g]. Sem rejeitar a agenda histótica/estética, eles a contornaram e descentralizaram. Em vez de trazer arte da África, Africa 95 trouxe artistas. A exposição reconhecia que os artistas africanos tinham um longo contato com a Europa e estavam atualmente trabalhando dentro e fora do continente africano, movendo-se para dentro e para fora do "ocidente".

O primeiro evento da Africa 95, "Teng/Articulations", era uma oficina ministrada por artistas do Senegal. A oficina foi seguida por uma "oficina internacional de escultura" no parque de esculturas Yorkshire, onde por três meses artistas de uma dezena de países africanos se uniram a artistas dos Estados Unidos e do Reino Unido para criarem obras para o parque. Mais de vinte exposições de arte e fotografia africanas contemporâneas ocorreram ao longo do outono de 1995 em Londres e outras cidades inglesas. Essas exposições eram acompanhadas de colóquios e extensas programações de filmes, música, dança e literatura. Havia uma política consistente de envolver autoridades e curadores africanos. Na galeria Whitechapel, realizou-se um contraponto à exposição da Royal Academy com a exposição "Seven Stories about Modern Art in Africa" [Sete histórias sobre arte moderna na África]. Cinco dos sete curadores eram importantes artistas e historiadores da arte africanos, e suas visões pessoais da moderna arte africana efetivamente complicaram as suposições de uma estética continental unificada.

Clémentine Deliss, diretora artística da exposição Africa 95, enfatizou que o projeto havia sido concebido não meramente como um lugar de exposições, mas também de encontros entre artistas, uma ocasião para desenvolver contatos concretos (Deliss, 1995: 5). O fato de que as zonas de contato da exposição Africa 95 não eram espaços políticos ou econômicos livres ficou claro no destaque das propagandas dos patrocinadores corporativos multinacionais, especialmente bancos, nos programas, e nas recorrentes reclamações de que o evento estava acontecendo na Inglaterra e não na África (Riding, 1995). A Europa ainda desfrutava do poder de colecionar e expor a África segundo seus próprios termos e territórios. Contudo, para muitos artistas e músicos, a Europa e a América já eram locais de trabalho, e o evento foi uma oportunidade de expandir seus públicos e fontes de inspiração.

A exposição Africa 95, trabalhando dentro e fora de museus e galerias, tinha algo em comum com a onda atual de festivais nacionais (Festival da Índia, da Indonésia, e assim por diante), nos quais regiões do Terceiro Mundo exibem suas artes em locais do Primeiro Mundo com o objetivo de aumentar a legitimidade global e atrair investidores. Porém, havia grandes diferenças. Embora os patrocinadores corporativos como o CitiBank usassem o evento para se mostrarem como bons cidadãos transnacionais “africanos”, a exposição Africa 95 não representava diretamente nenhum interesse comercial ou política nacional, e sua programação diversa e seus participantes, sua ênfase nas trocas entre países, não podiam ser facilmente capitalizados. A exposição, é claro, ajudou a produzir uma "África" moderna, híbrida, como um produto vendável para os mercados internacionais de arte. Mas esse produto era, significativamente, o trabalho de contato de africanos que podiam lucrar com isso. Africa 95 usava e foi usada por circuitos multinacionais associados a relações coloniais e neocoloniais – criando espaços de contato que iam além dessas relações.

 

Contestações

A noção de zona de contato, articulada por Pratt nos contextos de expansão e transculturação europeias, pode ser estendida para incluir relações culturais dentro de um mesmo país, região ou cidade – nos centros, mais do que nas fronteiras nacionais e imperiais. A distância em questão aqui é mais social do que geográfica. Para a maioria dos moradores de um bairro pobre, localizado às vezes a poucos quarteirões ou a um curto trajeto de ônibus de um museu de belas artes, é como se o museu ficasse em outro continente. As perspectivas de contato reconhecem que distâncias sociais "naturais" e segregações são produtos históricos/políticos: o apartheid era uma relação. Em muitas cidades, no mais das vezes, as zonas de contato resultam de um tipo diferente de "viagem": a chegada de novas populações de imigrantes. Assim como nos exemplos coloniais evocados por Pratt, as negociações de fronteiras e centros são estruturadas historicamente como dominação. Na medida em que os museus se vêem a si mesmos como interagindo com comunidades específicas através dessas fronteiras, mais do que apenas educando e edificando um público, eles começam a operar – conscientemente e às vezes autocriticamente – em histórias de contatos.

Nós já vimos algumas das maneiras pelas quais as práticas do museu de coletar e exibir parecem diferentes em uma perspectiva de contato. Os centros se tornam fronteiras atravessadas por objetos e criadores. Essas travessias nunca são "livres" e a bem dizer são rotineiramente bloqueadas por orçamentos e controles curatoriais; por definições restritivas de arte e cultura, pela hostilidade da comunidade e por incompreensões. Os exemplos que escolhi até aqui sugerem maneiras de negociar mais democraticamente essas fronteiras, uma escolha que reflete o tom reformista da minha análise. Eu poderia ter começado, no entanto, não pelas travessias de fronteiras, mas pelas guerras de fronteira. Duas disputas recentes chocaram o mundo dos museus no Canadá e, em menor grau, nos Estados Unidos: o boicote dos cree do lago Lubicon à exposição "Spirit Sings" [O espírito canta], em Calgary, e o conflito amplamente divulgado sobre "Into the Heart of Africa" [No coração da África], no Museu Real de Ontario, em Toronto, em 1989 e 1990. Em ambos os casos, as comunidades cujas culturas e histórias estavam em questão nessas exposições de destaque ocasionaram sérios problemas aos museus.

A exposição "The Spirit Sings: Artistic Traditions of Canada's First Peoples", [O Espírito Canta: Tradições Artísticas dos Primeiros Povos do Canadá] foi organizada pelo Glenbow Museum em Calgary para coincidir com as Olimpíadas de Inverno de 1988. Reunia um grande número de artefatos de coleções canadenses e internacionais, com o objetivo de apresentar um retrato detalhado e diversificado das culturas canadenses nativas na época dos primeiros contatos com os europeus. A exposição explorava ainda as visões de mundo compartilhadas por essas culturas e sua resistência diante da influência e da dominação externas (Harrison, 1988). Para muitos, inclusive alguns grupos de nativos canadenses, a exposição foi um sucesso, embora tenha sido criticada por sua relativa falta de atenção às manifestações contemporâneas de seus temas principais. Porém, o conteúdo de "The Spirit Sings" [O espírito canta] não foi o principal fator provocador do boicote amplamente apoiado. Os cree do lago Lubicon do Norte de Alberta, para dramatizar a urgência de sua reivindicação de terra, convocaram um boicote às Olimpíadas de Inverno, palco político de alta visibilidade. A ação se concentrou no Glenbow Museum porque o principal patrocinador da exposição, a Shell Oil (que deu U$1,1 milhão dos U$2,6 milhões do orçamento total da exposição) estava perfurando em território reivindicado pelos cree do lago Lubicon. Para um número crescente de apoiadores dos cree do lago Lubicon, nativos ou não, era hipócrita que a exposição celebrasse a beleza e a continuidade de culturas cuja sobrevivência concreta era ameaçada pelo patrocinador corporativo do evento. Os defensores da exposição alegaram que nenhum museu, grande ou pequeno, podia sobreviver sem patrocinadores corporativos ou governamentais, cujas mãos nem sempre eram perfeitamente limpas. O museu estaria sendo injustamente visado, arrastado sem aviso prévio para o centro de uma luta dos cree do lago Lubicon.

Fossem quais fossem as diferentes percepções sobre justiça e exploração, o caso levantou questões de grande importância. Os museus deveriam ter direito de montar exposições de artefatos indígenas (incluindo empréstimos de outras instituições) sem permissão de comunidades tribais relevantes? O que se entende por controle sobre "propriedade cultural"? Que tipo de consulta e envolvimento no planejamento das exposições seria mais adequado? (O Glenbow Museum consultou tribos vizinhas, mas não os cree do lago Lubicon, que não responderam ao convite feito pelo museu. O controle curatorial da exposição, em todo caso, não seria diluído.) Os temas e lutas do presente devem receber atenção em qualquer exposição de arte, cultura ou história nativas? Os museus podem reivindicar neutralidade política? Até que ponto os museus são responsáveis pelas atividades de seus patrocinadores públicos ou privados? [12] Em resposta a essas questões, a Associação dos Museus Canadenses e a Assembleia das Primeiras Nações formaram uma força-tarefa de Museus e Primeiras Nações, cujo relatório encontrou ampla aceitação e estabeleceu parâmetros para a colaboração entre representantes indígenas e equipes museológicas (Hill e Nicks, 1994). A colaboração séria é hoje a norma para as exposições canadenses que abordam a arte e a cultura das Primeiras Nações.

A exposição "Into the Heart of Africa" [No coração da África], no Museu Real de Ontario, foi inspirada em parte em estudos recentes sobre a história das coleções e das exposições museológicas. "Estudando o museu como artefato, lendo as coleções como textos culturais, e descobrindo a história de vida dos objetos", a exposição procurava "entender algo da complexidade dos encontros interculturais" (Cannizzo, 1989: 92). A abordagem da exposição era reflexiva, fundada fortemente na justaposição e na ironia. Declarações de missionários e autoridades imperiais eram expostas sem comentários ao lado de artefatos africanos. A exposição claramente não condenava as imagens e palavras por vezes racistas que apresentavam, nem tampouco mantinha uma perspectiva crítica consistente. Objetos e imagens eram muitas vezes deixados ali para que "falassem por si mesmos". Mas a tentativa de complicar o didatismo curatorial saiu pela culatra. As perspectivas colonialistas eram evidentes demais nas citações e imagens do século XIX; as respostas africanas ficavam implícitas. O público absorvia mensagens bastante diferentes a partir do que era apresentado. Enquanto alguns visitantes acharam a exposição provocadora, ainda que algo confusa na apresentação, outros ficaram ofendidos pelo que interpretaram como uma suspensão da crítica que beirava a indiferença. Muitos afrocanadenses que visitaram o museu – ainda que não todos – ficaram chocados com a glorificação das imagens colonialistas e com as declarações condescendentes sobre os africanos, expostas com destaque e aparentemente sem nenhuma crítica. Eles não se sentiram seduzidos pelo tratamento irônico da destruição violenta e da apropriação das culturas africanas. O museu e sua curadora convidada, a antropóloga Jeanne Cannizzo, avaliaram mal a diversidade de públicos da exposição[h].

Um amarga controvérsia se formou na mídia. Houve confrontos entre manifestantes que bloqueavam a entrada do Museu Real de Ontario e a polícia; todos os museus agendados para receber a exposição na fase de itinerância cancelaram. Aqui não é o lugar (nem eu seria a melhor pessoa) para resenhar a controvérsia e os extremos de desconfiança mútua e incompreensão que surgiriam a seguir (ver, entre outros: Ottenberg, 1991, Cannizzo, 1991; Hutcheon, 1994, e Mackey, 1995). A exposição "Into the Heart of Africa" [No coração da África] foi acusada de propor uma colonização racista por outros meios, de fazer parte da atual supressão das conquistas africanas e das experiências afrocanadenses. Os críticos da exposição foram tratados como ideólogos obtusos e censores, incapazes de entender ironias e relatos históricos complexos. A controvérsia desde então se espalhou no contexto dos museus, e como Enid Schildkraut, em uma crítica perspicaz, confessa: "Isso fez com que muitos de nós que trabalhamos no campo das exposições etnográficas, especialmente africanas, tremêssemos, com uma sensação do tipo ‘graças a Deus eu não estava na pele deles’. Como uma exposição pode dar tão errado? Como conseguiu ofender tantas pessoas de lados tão diferentes do espectro político?" (Schildkraut, 1991: 16).

O museu se tornou uma zona de contato (conflito) inescapável. Públicos diferentes trouxeram experiências históricas compostas de maneiras distintas para a exposição "Into the Heart of Africa" [No coração da África]. M. Nourbese Philip aborda enfaticamente esse aspecto, criticando o museu por perder a oportunidade desencadeada pela controvérsia, no sentido de confrontar seus objetivos declarados publicamente: entender o "museu como artefato" e a "complexidade dos encontros interculturais". A exposição claramente não era sensível à participação dos afrocanadenses na história do empreendimento colonial dos brancos canadenses e dos africanos. A história desse empreendimento era vista como contínua em relação às estruturas racistas do presente dentro de uma vida canadense oficialmente "multicultural". A história africana não podia ser distanciada no tempo e no espaço. O museu aprendeu, da maneira mais difícil, sobre os riscos (e Philip insiste: as oportunidades) de trabalhar com relação à diáspora africana dentro da cindida esfera pública canadense. A exposição era um "texto cultural" que não podia ser lido a partir de uma localização estável. "O mesmo texto resultou em leituras contraditórias determinadas pelas diferentes histórias de vida e experiências. Uma leitura via esses artefatos como congelados no tempo e contando uma história sobre a exploração que os brancos canadenses fizeram da África; outra leitura inseria o leitor – afrocanadense – ativamente no texto, que então lia aqueles artefatos como detritos dolorosos de uma exploração selvagem e de uma tentativa de genocídio de seu próprio povo" (Philip, 1992: 105).

Será que uma "consulta" prévia mais ampla junto a "comunidades" relevantes (incluindo os brancos canadenses cujas histórias familiares estavam em questão) teria evitado tal polarização? Será que uma narrativa mais explícita do "lado" africano da história na exposição teria ajudado, como defende Schildkraut? Certamente. Porém Philip entende – assim como alguns profissionais de museu refletindo no rastro de "The Spirit Sings" [O espírito canta] e de "Into the Heart of Africa" [No coração da África] – que o que está em jogo são fundamentalmente estruturas de poder (Ames, 1991: 12-14). Enquanto os museus não forem além de uma consulta (muitas vezes depois que a visão curatorial já está firmemente instaurada), enquanto eles não aportarem uma gama mais ampla de experiências históricas e agendas políticas ao plano concreto das exposições e o controle das coleções dos museus, eles serão percebidos como instituições meramente paternalistas por pessoas cuja história de contato com museus sempre foi de exclusão e condescendência. Talvez seja utópico, de fato, imaginar os museus como espaços públicos de colaboração, de controle compartilhado, de traduções complexas, de discordâncias honestas. De fato, a atual proliferação dos museus talvez reflita o fato de que, tal como evoluíram historicamente, essas instituições tendem a refletir visões comunitárias unificadas, mais do que histórias sobrepostas e discrepantes. Mas poucas comunidades, mesmo as mais "regionais", são homogêneas. Na prática, grupos diferentes podem se unir em torno de questões específicas ou de antagonismos específicos (como muitos afrocanadenses fizeram em reação ao Museu Real de Ontario), e no entanto podem se dividir em relação a outras questões. A reação tribal à exposição "The Spirit Sings" não foi uniforme. E, em alguns aspectos, os negros canadenses cujas famílias estão no Canadá há dois séculos podem divergir de pessoas de origem caribenha ou de africanos recém-chegados. Sob a rubrica geral da África e da história colonial, essas pessoas podem compartilhar um mesmo ódio comum. Mas em se tratando de problemas práticos de interpretação e ênfase, questões de repatriacão e compensações, essa unanimidade pode vir a se dissolver.

Quem afinal é mais qualificado pela "experiência" (que tipos de experiência?), pela profundidade e amplitude de conhecimentos (que conhecimentos?) para controlar e interpretar uma coleção africana?[i] Afrocanadenses que nunca estiveram na África e que podem ter uma visão idealizada de suas culturas? Antropólogos e curadores brancos que passaram um tempo considerável no continente e estudaram a história africana profundamente, mas nunca conheceram visceralmente o racismo ou a colonização? Africanos contemporâneos? (De que etnia, país ou região? Que moram na África? No Canadá?) Às vezes, como no caso dos Tlingit no Museu de Arte de Portland, a conexão dos atuais membros da comunidade com os objetos antigos é bastante direta. Em outros casos, o que está em questão é a "propriedade cultural" ou uma relação "histórica" mais distante. Uma vez que as comunidades e coleções raramente são unificadas, os museus talvez tenham de contemplar públicos agudamente discordantes.

Claramente, não existe nenhuma solução simples para esses problemas, nenhuma fórmula fundamentada em nenhum princípio inabalável. Nem a "experiência" comunitária nem a "autoridade" curatorial possuem, cada qual, o direito automático à contextualização das coleções ou à narração das histórias de contato. A solução é inevitavelmente contingente e política: uma questão de poder mobilizado, de negociação, de representação restringida por públicos específicos. Escapar a essa realidade – resistindo a pressões "externas" em nome da qualidade estética ou da neutralidade científica, evocando o espectro da "censura" – é uma atitude autocentrada e historicamente desinformada. As pressões comunitárias sempre fizeram parte da vida institucional, pública. Geralmente os museus se adaptam ao gosto de um suposto público – nas grandes instituições metropolitanas, majoritariamente educado, burguês e branco. As sensibilidades nacionais são respeitadas, a exploração e a expertise dos grupos dominantes são celebradas. Patronos e sócios exercem uma verdadeira "supervisão" (palavra mais polida que "censura") sobre os tipos de exposição que o museu pode montar. Não é difícil imaginar os cortes nas bolsas, doações e fundos de testamentos que se seguiriam, caso um grande museu adotasse uma postura crítica consistente com relação ao mercado de arte ou uma visão da história americana ou canadense que dê um lugar de destaque permanente às perspectivas dos povos oprimidos colonialmente do ponto de vista econômico e racial. [13]

Os museus não gostam de ofender seus públicos, especialmente as fontes de apoio material. Nos tempos correntes, "não politizados", essa responsabilidade para com interesses e gostos particulares é uma mera questão de negócios. Somente quando a perspectiva curatorial e a localização social são desafiadas por um público de interesse diferente (como nos debates sobre a exposição "Arte Hispânica" no Museu de Belas Artes de Houston, em 1987, por exemplo), ou quando a mensagem da exposição ofende instituições poderosas (recentemente, a visão crítica do Smithsonian sobre a fronteira americana; a seção Hiroshima/Enola Gay), ou quando comunidades divergem publicamente sobre uma proposta (incluir ou não um mercado de escravos na Williamsburg colonial), só assim as coisas são percebidas como "políticas". Mas essas discussões e negociações são inerentes ao trabalho de contato dos museus. Mais do que nunca, curadores admitem o fato de que os objetos e interpretações que eles expõem "pertencem" também aos outros, tanto quanto ao museu.

A propriedade e o controle das coleções nunca foram absolutos; doadores individuais geralmente agregam condições a seus presentes. Mas hoje comunidades socialmente distantes do mundo do museu são capazes de restringir a exibição e a interpretação de objetos que representam sua cultura. Ao menos no Canadá e nos Estados Unidos hoje em dia, existem fortes limites abertamente políticos à maneira como a arte indígena, latina e afroamericana pode ser exposta e interpretada. Novas noções de "propriedade cultural" se aplicam a suposições abstratas sobre liberdade de propriedade. É claro, os grandes museus não são proprietários de suas obras de arte exatamente da mesma forma que um indivíduo é dono de uma obra. As coleções são deixadas em confiança para uma comunidade maior – definida como uma cidade, uma classe, uma casta ou elite, um país, ou uma suposta comunidade global da alta cultura. Os objetos em um museu são muitas vezes tratados como patrimônio, propriedade cultural de alguém. Mas de quem? Quais comunidades (definidas por classe, nacionalidade, raça) têm direito sobre eles? A pesquisa de Carol Duncan sobre a história do Louvre, instituição que tem servido de modelo para os grandes museus do mundo, mostra que a transição de palácio a museu foi associada à criação de um "público" na França pós-revolucionária, ao desenvolvimento de uma comunidade secular, nacional (Duncan, 1991, 1995). A homogeneidade desse público é atualmente uma questão nas lutas pelo multiculturalismo e pela igualdade de representação. Há fronteiras em todos os espaços nacionais ou culturais dominantes, e museus que outrora articulavam o cerne da cultura ou o alto nível cultural hoje parecem lugares de passagem e de contestação.

Em contraponto à descentralização das instituições estabelecidas, outros "museus" alternativos fazem novas exigências sobre o trabalho de contato do gerenciamento e da interpretação dos patrimônios, das tradições culturais e histórias. Museus tribais e centros culturais de minorias colecionam e expõem produções comunitárias de maneira que tanto parecem quanto divergem das práticas de museus mais convencionais (ver: Associação de Museus Canadenses, 1990; Karp, Kreamer, e Lavine, 1992; e o texto ‘Four Northwest Coast Museums: Travel Reflections’ [Quatro Museus da Costa Noroeste: reflexões de viagem], que compõe o capítulo 5 do livro Rotas: viagem e tradução em fins do século XX). Museus comunitários e centros culturais (a diferença pode ser ambígua ou irrelevante) são centros diferentes, expressando histórias parciais e estéticas de inflexão local, de outros contextos culturais. O fato de um altar ou de uma máscara tribal poderem significar coisas muito distintas em lugares diferentes nos obriga a reconhecer e explicitar múltiplos contextos para obras de arte ou artefatos culturais. Profissionais de museu inovadores sempre se interessaram pelas maneiras de colocar os objetos sob uma nova luz, renovando-os. As relações de contato explícitas hoje colocam esse tipo de pesquisa em uma conjuntura diferente, obrigando a novas colaborações e alianças. Assim, a multiplicação dos contextos se torna menos uma questão de descobertas e mais uma negociação, menos uma questão de curadores criativos tendo boas ideias, fazendo pesquisa, consultando especialistas indígenas, e mais uma questão de responder a pressões concretas e à reivindicação de representatividade em uma sociedade civil culturalmente complexa.

O trabalho de contato em um museu assim vai além da consulta e da sensibilidade, ainda que estas sejam muito importantes. Esse trabalho se torna uma colaboração ativa e o compartilhamento de autoridade[j]. Esse desenvolvimento é claramente traçado na excelente pesquisa de Fath Davis Ruffins sobre formas da memória cultural: o movimento do museu negro e a inserção (parcial) de profissionais afroamericanos em museus historicamente brancos nos Estados Unidos (1992). Do ponto de vista dos profissionais de museu, uma coisa é recorrer a um "informante nativo", outra bem diferente é trabalhar com ele como co-curador. [14] Na questão da arte de minorias ou tribal, a colaboração implica processos complexos que Charlotte Townsend-Gault descreveu em termos de uma obra de tradução limitada do ponto de vista cultural e político e, também, da perspectiva da negociação tática das fronteiras (Townsend-Gault, 1995; ver também Irving e Harper, 1988; Ames, 1991; Gonzalez e Tonelli, 1992).

Uma das áreas mais difíceis de negociação com objetos tribais e histórias coloniais é a questão do repatriação. Em uma perspectiva de contato, o movimento dos objetos para fora de suas tribos em direção aos museus metropolitanos seria um desfecho esperado da dominação colonial. Esses movimentos não se confundiriam com o progresso ou com a preservação (uma espécie de imobilidade/imortalidade) em um "centro" de cultura. Nas zonas de contato, as apropriações culturais são sempre políticas e contestáveis, entrecruzadas por outras apropriações, efetivas ou potenciais. Os museus e o mercado gerenciam a viagem dos objetos de arte entre diferentes lugares. Objetos de valor atravessam de um mundo tribal para um mundo de museus como resultado de relações políticas, econômicas e interculturais que não são permanentes. Por exemplo, uma poderosa tradição de coleções de arte indígena sempre foi justificada pela ideia de que as produções tribais autênticas não teriam futuro: seu futuro só podia ser a destruição no próprio local ou a preservação nas mãos de sábios colecionadores, conservadores, restauradores e cientistas. Mas é mais difícil hoje ver o destino das coleções como essa espécie teleologia linear (Clifford, 1987). Ao definir o desaparecimento de mundos tribais, essas coleções de arte salvaguardadas presumiam (e em certa medida criavam) a raridade da arte tribal "autêntica". Algumas comunidades tribais de fato desapareceram, muitas delas violentamente. Outras resistem, contra terríveis pressões. Por vezes, isso significou camuflar-se, sair do esconderijo quando a situação estivesse menos repressora. Outras mudaram, encontrando novas maneiras de ser diferente. À luz dessas histórias tão diversas, a noção de que a arte indígena de alguma forma pertence aos museus das maiorias (científicos ou de arte) não é mais autoevidente. Os objetos nos museus ainda podem ir para outro lugar.

A repatriação de obras tribais não é a única resposta adequada às histórias de contato, relações que nem sempre podem ser reduzidas à opressão colonial e à apropriação. Mas é um trajeto possível, apropriado. E embora a devolução, o envio dos objetos de volta para casa, possa encontrar uma acolhida feliz, nem sempre é óbvio onde seria o verdadeiro lar de um objeto de uma coleção. A situação pode ser complicada e ambígua. [15] De fato, alguns grupos indígenas não desejam a posse física de objetos tradicionais; eles simplesmente desejam uma conexão e um controle efetivos. Na prática, a noção de propriedade cultural pode significar que um museu metropolitano ou estadual seja fiel depositário das coleções de comunidades específicas. De fato, alguns museus se parecem com um depósito ou uma biblioteca de empréstimos, circulando arte e cultura para além de suas paredes – com restrições variáveis – para museus locais e centros comunitários e mesmo para uso efetivo na vida ritual (Blundell e Grant, 1989). Isso é relativamente fácil de imaginar entre museus nacionais e tribais ou étnicos. Mas um museu pode permitir que arte e artefato viagem para dentro e para fora do "mundo dos museus" (rede emergente e consideravelmente maior do que aquilo que se costumava chamar de "circuito de museus internacionais")? O deslocamento das coleções para dentro e para fora do mundo dos museus internacionais ainda é bastante difícil de ser aceito por curadores e diretores de museus, diante da economia e da missão tradicionais do museu ocidental típico. Isso exigiria uma ruptura com fortes tradições do conservacionismo. Por exemplo, muitos profissionais de museu estremeceram diante do recente repatriamento de figuras de deuses da guerra zuni, Ahauutas, que hoje apodrecem ao relento no alto de alguma colina, completando a jornada interrompida de sua vida tradicional.

Essa história das esculturas apodrecendo ao relento – uma história de destruição para uma cultura e de renovação para outra – é uma história de viagem possível para os objetos repatriados. Existem outras. Como vemos no texto ‘Four Northwest Coast Museums: Travel Reflections’ [Quatro Museus da Costa Noroeste: reflexões de viagem], que compõe o capítulo 5 do livro Rotas: viagem e tradução em fins do século XX, uma importante coleção de potlach recentemente devolvida aos clãs kwagiulth, em Vancouver Island, terminou em dois museus tribais. Como condição para a liberação dos objetos, o mundo dos museus de mentalidade conservacionista conseguiria se expandir até o próprio mundo tribal. Mas ao mesmo tempo, o mundo tribal se apropriou e operou de modo transcultural com o museu, assim como a própria noção de "coleção" e os tipos de significado cultural/estético/político que ela engloba. Nesse contexto novo e híbrido, o museu se torna um centro cultural e um lugar de contar histórias, de história indígena, e da política tribal do presente. Isso está profundamente associado aos circuitos tribais do Quarto Mundo, com o "turismo cultural" dos nativos e brancos, e com o turismo comercial nos níveis regional, nacional e internacional.

Os "museus" trabalham cada vez mais com as fronteiras entre mundos diferentes, histórias e cosmologias. O centro cultural Kwagiulth U'mista é um museu? Sim e não. Um museu de arte? Sim e não. A galeria de la Raza de San Francisco é um museu? Sim e não. [16] As zonas de contato – lugares de possibilidades híbridas e de negociação política, lugares de exclusão e luta – são bastante claros quando consideramos instituições tribais ou de minorias, mas o que seria preciso (e por que isso haveria de ter importância?) para tratarmos o Metropolitan em Manhattan como zona de contato e não tanto como um centro internacional? Ou o Louvre? Conferir a lugares marginais, "entre" lugares, uma centralidade tática é no fundo minar a própria noção de centro. Todos os locais de coleção começam a parecer lugares de encontro e passagem. Vistos desse modo, os objetos que estão atualmente nos grandes museus são viajantes, andarilhos – alguns deles fortemente "diaspóricos", com laços poderosos e ainda muito significativos com outro lugar. Além do mais, os "principais" museus cada vez mais se organizam de acordo com os ditames do turismo, nacional e internacional. Repensar as coleções e as exposições como processos históricos inacabados de viagem, de travessias e retornos, altera a concepção que se tem de patrimônio e de público. Qual seria a diferença se os principais museus regionais e nacionais flexibilizassem sua ideia de centralidade e vissem a si mesmos como lugares específicos de trânsito, fronteiras interculturais, contextos de luta e comunicação entre comunidades discordantes? O que significa trabalhar de dentro desses emaranhados em vez de se empenhar para transcendê-los?

Essas questões evocam algumas exigências conflitantes atualmente sentidas pelos museus em sociedades multiculturais e multiraciais. Ao pensar em sua missão como trabalho de contato – descentralizado e permeado por negociações culturais e políticas que estão fora do controle de qualquer comunidade – os museus podem começar a entender como lidar com as reais dificuldades dos diálogos, alianças, desigualdades e traduções.

 

No mundo dos museus

Minha formulação dos museus como zonas de contato é tanto descritiva quanto prescritiva. Defendi que é inadequado retratar o museu como coleção de cultura universal, repositório de valor incontestável, lugar de progresso, descoberta e acumulação de patrimônios humanos, científicos ou nacionais. A perspectiva de contato entende todas as estratégias de coleção de cultura como reação a histórias particulares de dominação, hierarquia, resistência e mobilização. E isso nos ajuda a ver como as reivindicações de universalidade e de especificidade estão associadas a lugares sociais concretos. Como Raymond Williams demonstrou em Cultura e sociedade (1966), as articulações da burguesia do século XIX de uma alta "cultura" universal foram reações à transformação industrial e à ameaça social. Por sua vez, as articulações das "minorias" ou "tribos" de uma cultura e de uma história discretas são reações a histórias de exclusão e silenciamento. Elas reivindicam um lugar controlado localmente na cultura pública mais ampla, na medida em que falam de dentro de comunidades particulares e também com uma gama mais vasta de plateias. Os museus/centros culturais são capazes de oferecer plataformas para essas articulações.

Meu relato defende políticas democráticas que desafiariam a valoração hierárquica dos diferentes lugares de cruzamento. Defende a descentralização e circulação das coleções em uma esfera pública multiplex, uma expansão do espectro de coisas que podem acontecer em um museu e em cenários afins. Entende que a inclusão de artes, culturas e tradições diversas em instituições grandes e estabelecidas é necessária mas não como único nem como fundamental ponto de intervenção. Na verdade, toda visão pluralista de inclusão completa em locais privilegiados (como o Mall em Washington, D.C. – um museu dos museus nacionais) é questionável. [17] Uma perspectiva de contato defende a especificidade local/global das lutas e escolhas relativas a inclusão, integridade, diálogo, tradução, qualidade e controle. E defende uma distribuição dos recursos (atenção da mídia, financiamento público e privado) que reconheça plateias diversas e as histórias de encontro com múltiplos centros. Diante da história dos museus no estado burguês euroamericano e, a bem dizer, dos contextos nacionais em toda parte, esta visão talvez pareça utópica. Trata-se de uma utopia em tom menor, uma visão das emergências irregulares e dos encontros localizados, mais do que das transformações globais. Essa visão dá lugar a iniciativas fortes, ainda que precárias, que se empenham contra o legado das hierarquias estabelecidas.

Esse legado tem sido recentemente submetido a análises e pesquisas críticas e históricas. O crescimento dos museus públicos na Europa e na América do século XIX era parte de uma tentativa geral de fornecer e organizar a "cultura" de cima para baixo. Os museus acumularam o "capital simbólico" das elites tradicionais e emergentes (Bourdieu, 1984). Eles institucionalizaram uma distinção rígida entre atividades de alta e baixa cultura ["highbrow" and "lowbrow" activities] (Levine, 1988). Os "públicos" a que eles se dirigiam e cujos "patrimônios" eles colecionavam eram constituídos por projetos burgueses nacionalistas (Duncan, 1991). No século XIX, uma série de importantes "reformas legislativas e administrativas... transformaram os museus de instituições semi-privadas extremamente restritas às classes dominantes e profissionais em grandes órgãos do estado dedicados à instrução e à edificação do público geral" (Bennett, 1988: 63). No século XX, os museus foram centrais para a produção e para o consumo de "heranças" em um vertiginoso espectro de contextos locais, nacionais e transnacionais (Walsh, 1992), elementos integrais das indústrias do turismo em expansão (MacCannell, 1976; Horne, 1984; Urry, 1990). Como instituição que emergiu com o estado nacional, burguês, e com o capitalismo industrial e comercial, o destino do museu está ligado a sua difusão global e suas adaptações locais.

A ligação com o mercado capitalista e a comoditização foi descrita por Neil Harris (1990) em sua provocativa comparação entre museus e lojas de departamentos na América do Norte nos séculos XIX e XX. Na década de 1940, ele defende, os museus foram amplamente eclipsados pelos empórios comerciais como locais de exibição de arte e objetos e para a edificação do gosto popular. Mas recentemente muitos dos grandes museus passaram a ser orientados para o consumidor, com uma mudança de imagem concomitante.

Se a atratividade e o apelo de público se tornaram os objetivos dos museus, como efetivamente o museu se diferencia de uma instituição comercial qualquer que existe essencialmente pelo propósito de vender?... Será que o museu, um novo palácio de entretenimento, se tornou meramente outro tipo de manicômio, um manicômio não para objetos e arte mas para tipos especiais de banhos de memória e rituais através de galerias, um encontro coletivo quantificado, certificado, capaz de modelar padrões de consumo, mas dificilmente capaz de melhorar esses mesmos padrões? A certa altura, os museus foram acusados de prestar pouca atenção aos desejos e às necessidades de milhões de leigos. Hoje, em outra era, eles são cobrados por fazerem concessões para agradar, em termos de relevância, de drama e de popularidade. (Harris, 1990: 81)

Não importa como esses desenvolvimentos sejam avaliados, e quaisquer que sejam as possibilidades de advocacia cultural ou política abertas pelo abandono cada vez mais declarado de velhos ideais de neutralidade estética e científica (95), Harris conclui que "a mudança do destino do museu enquanto influência pública sugere capacidades grandiosas, crescentes e dotadas de variações quase infinitas" (81). [18]

O "museu" a que Harris se refere é uma instituição ocidental, especialmente metropolitana. Mas sua visão de uma máquina dinâmica, orientada para o consumidor, que recolhe e exibe objetos de valor artístico, cultural e comercial possui evidentes ramificações globais. A "acumulação flexível" (Harvey, 1989) de tradições, identidades, artes e estilos associados à expansão capitalista contemporânea sustenta a proliferação de museus naquilo que poderia ser cinicamente chamado de uma loja de departamentos de cultura global. Kevin Walsh (1992) desenvolve essa perspectiva geral em uma enfática crítica dos "museus e patrimônios nacionais [heritages] em um mundo pós-moderno". Walsh expande a visão de David Harvey de uma cultura capitalista globalizante: uma incansável erosão do "lugar", das noções de tempo coletivo local e contínuo, e a substituição de conceitos rasos, espetaculosos, e meramente nostálgicos do passado. O patrimônio nacional [heritage] substitui a história, contribuindo para um articulação hegemônica dos interesses nacionais e de classe. Partindo do livro The Heritage Industry [A indústria do patrimônio] (1987), de Robert Hewison, Walsh associa o rápido crescimento recente dos museus na Inglaterra a um período de declínio industrial/imperial e austeridade econômica thatcherista. Ele encontra hegemonias neoliberais similares sempre que sociedades em transformação, envolvidas no expansionismo capitalista, representam e consomem o próprio passado como patrimônio histórico [heritage]. A comoditização dos passados locais é parte de um processo global de "des-diferenciação" cultural.

As análises de Walsh e Harvey do mercado "pós-moderno" do patrimônio histórico são relatos necessários, mas não suficientes, das muitas atividades acontecendo nos museus e através dos museus. Uma perspectiva de contato, como defende Pratt, complica esses modelos difusionistas, sejam eles celebratórios (a marcha da civilização e da exploração ocidental) ou críticos (a incansável expansão do sistema de mercadorias capitalista). Walsh reconhece, algumas vezes, que sua abordagem simplifica demais, e ele cita o alerta de Mike Featherstone: "A lógica binária que busca compreender a cultura através de termos mutuamente excludentes como homogeneidade/heterogeneidade, integração/desintegração, unidade/diversidade, deve ser descartada. Na melhor das hipóteses, esses pares conceituais trabalham apenas em uma das faces do complexo prisma da cultura" (Featherstone, 1990: 2). O cerne do relato de Walsh está, contudo, nos primeiros termos da série. [19]

Com valências políticas diferentes, os museus expressam os interesses dos estados nacionais, das comunidades locais e tribais, do capital multinacional. Sempre que costumes locais, tradições, arte (de elite ou popular), história, ciência e tecnologia são colecionados e expostos – com propósitos de prestígio, mobilização política, comemoração, turismo ou educação – os museus e as instituições afins costumam aparecer. Os espaços de coleção, realocação e exibição marcados pelo termo "museu" são multiplex e transculturais. Histórias diferentes levam a esses espaços de contato, a envolvimentos distintos com a modernidade e a pós-modernidade, a “nostalgias” as mais variadas (Stewart, 1988; Ivy, 1995). Os "museus" tribais, por exemplo, refletem formas indígenas e ocidentais de acumulação, memória e exposição. Eles projetam uma visão da história como luta, sobrevivência, renovação e diferenças concretas e atuais. Barnaby e Hall (1990) fornecem um relato informativo do Instituto Cultural Dene, fundado em 1986 por lideranças da Nação Dene, representando os povos Gwich'in, Slavery, Dogrib, Chipewyan e Cree dos territórios do noroeste do Canadá. O instituto reflete uma decisão tribal consciente de preservar e restaurar a cultura dene como parte de um movimento por direitos e controle dos recursos para o desenvolvimento aborígenes. O instituto tem se dedicado a trabalhar com a história oral, com a revitalização da língua, com a medicina tradicional, com o uso da terra, com educação pública, e com a coleção de arquivos e artefatos. Está planejado um espaço expositivo para o material dene. Aqui, claramente, a função do museu é parte do trabalho maior de um centro cultural. É crucial estar atento à inter-relação, ao peso relativo, e ao ímpeto político dessas funções em diferentes articulações institucionais do patrimônio [heritage]. [20]

Comparemos o relato de Schildkraut (1996) na ocasião da abertura do museu Asante Manhyia Palace, em Ghana, uma afirmação muito diferente da autoridade tradicional, no caso, real. Visões alternativas sobre tradição e modernidade podem se expressar em museus na medida em que refletem iniciativas locais e encarnam alianças e conversas verdadeiras entre membros de uma comunidade e profissionais externos – o ideal do "ecomuseu" de Georges-Henri Rivière (Rivière, 1985). E dentro de contextos dominantes nacionais, importantes distinções podem ser feitas na produção e no consumo do "patrimônio" [heritage]. Como observou Tony Bennett, a política britânica de conservação em geral tem sido conservadora – suposição que Raphael Samuel (1995) tornou mais complexa. A Austrália, no entanto, possui um contexto "oficial" diferente. Um museu como o Hyde Park Barracks de Sydney reflete a política inclusiva do "neonacionalismo" do Partido Trabalhista. Sediado em edifícios originalmente construídos para criminosos trazidos ao país, o museu anunciou sua intenção de representar histórias australianas que eram excluídas das visões mais celebratórias e consensualistas (Bennett, 1988: 80).

Por que as práticas dos museus se mostraram tão móveis, tão produtivas, em locais diferentes? Diversos fatores interligados entram em jogo. A habilidade de articular identidade, poder e tradição é crítica, ligando as origens aristocráticas da instituição com suas disseminações modernas nacionalistas e "culturalistas". Os museus também ecoam uma vasta gama de atividades vernaculares de coleção, exibição e entretenimento. Acumular e expor coisas de valor é, supostamente, uma atividade humana amplamente difundida, e não restrita a uma classe ou grupo social específico. Dentro de alguns limites, um museu pode acomodar diferentes sistemas de acumulação e circulação, segredo e comunicação, valores estéticos, espirituais e econômicos. Como seu "público" ou "comunidade" é definido, que indivíduo, grupo ou visão, que ideologia esse museu celebra, como esse museu interpreta os fenômenos apresentados, quanto duram as exposições, se o museu muda depressa – tudo isso é negociável. Reunir tesouros e histórias de um indivíduo ou de um grupo em um museu é análogo a práticas como colecionar suvenires, fazer um álbum de fotos, ou manter um altar. Em alguns casos o museu é mantido com recursos relativamente escassos: a energia de um colecionador ou entusiasta local e alguns voluntários. Comunidades ou indivíduos que tradicionalmente expressavam sua ideia de identidade e poder, fazendo um festival ou construindo um santuário ou uma igreja, hoje podem (também) apoiar um museu[k].

Em um contexto global onde a identidade coletiva cada vez mais é representada por uma cultura própria (um modo de vida, uma tradição, uma forma de arte ou de artesanato diferente), os museus fazem sentido. Eles presumem um público externo (especialistas nacionais e internacionais, turistas, acadêmicos, curadores, viajantes "sofisticados", jornalistas e afins). Esses podem não ser os únicos ou a maioria do público das apresentações culturais ou espetáculos, mas nunca estão ausentes. Quando uma comunidade expõe a si mesma através de coleções e cerimônias espetaculares, constitui-se um lado de "dentro" e um lado de "fora". A mensagem da identidade é direcionada de maneiras diferentes para membros e forasteiros – os membros são convidados a compartilhar da riqueza simbólica, os forasteiros são mantidos como observadores ou parcialmente integrados, sejam eles especialistas ou turistas. Desde o seu surgimento como instituições públicas na Europa do século XIX, os museus foram úteis como agregadores de entidades políticas e na valorização de um "nós". Essa articulação – seja ela nacional, regional, étnica ou tribal – coleciona, celebra, registra, transforma em memória, valoriza e vende (direta e indiretamente) um modo de vida. No processo de manter uma comunidade imaginada, o museu também confronta "outros" e exclui o "inautêntico". Esse é o material da política cultural contemporânea, criativa e virulenta, encenada na sobreposição de contextos históricos de colonização/descolonização, formação nacional/ afirmações de minorias, expansão do mercado capitalista/ estratégias do consumidor.

O "mundo dos museus" é diversificado e dinâmico. Em graus variáveis, as diferentes zonas de contato que venho acompanhando fazem parte de um mercado pós-moderno de patrimônios [heritage], enquanto exposição da identidade sob o signo da cultura ou da arte. E não há dúvida de que a cultura estruturada como museu – tradição objetificada, transformada em valor moral/estético e mercadoria vendável – é cada vez mais disseminada. As aspirações de populações dominantes e subalternas podem ser articuladas através dessa estrutura, ao lado dos interesses materiais do turismo nacional e transnacional. "Ter" uma cultura, segundo Richard Handler (1987, 1993), é ser um colecionador, envolvido no jogo de possuir e seletivamente valorizar modos de vida. Mas qual é o grau desse envolvimento? O que mais entra em jogo nas articulações tribais e outras articulações locais da cultura? Existe uma unidade na constelação de formações culturais/econômicas que chamamos de pós-moderna... O sistema mundial?... O capitalismo tardio? Não vamos chegar a um acordo tão cedo. Os museus, esses símbolos do elitismo e da imobilidade solene, estão proliferando aceleradamente: das novas capitais nacionais às aldeias da Melanésia, das minas de carvão abandonadas na Inglaterra aos bairros étnicos das cidades globais. Zonas de contato locais/globais, lugares de criação de identidade e de transculturação, de contenção e excesso, essas instituições são exemplos do futuro ambíguo da diferença "cultural"[l].

 

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Notas do Autor

[1] Tedlock (1983: 292) escreve sobre os zuni e sua narração de histórias dialógica: "O problema do mitógrafo [no caso, o curador consultado] não é apenas apresentar e interpretar mitos zuni como se fossem objetos de um lugar e de uma época remotos e o mitógrafo como sendo uma espécie de conduto estreito e de mão única, mas como acontecimentos que se dão entre contemporâneos ao longo de uma fronteira com longo histórico de travessias, cruzamentos" [meus itálicos]. Greg Sarris (1993: 39), associando a questão posta por Tedlock aos textos orais dos índios da Califórnia, enfatiza que a presença do interlocutor posiciona os contadores de histórias de tal maneira que as histórias são interpretadas em um contexto relacional específico.

[2] Sobre outro encontro de velhos nativos, objetos tradicionais e curadores dentro de um espaço de acervo museológico, ver Jonaitis (1991: 66-69).

[3] Em outras passagens, seguindo Bakhtin, chamei essa estrutura de tempo espacializado de  "cronótopo" (Clifford, 1988: 236), estrutura hoje cada vez mais questionada pelas práticas artísticas "periféricas". Em suas incisivas reflexões sobre o trabalho do artista chileno Eugenio Dittborn, Nelly Richard (1993, 1994) explora as diferentes distâncias e trânsitos que as obras de arte negociam em seus trajetos e passagens entre centros expositivos, trajetos que ao mesmo tempo registram e desestabilizam as relações geopolíticas entre centro e periferia. Dittborn marca as trajetórias de suas obras remetendo-as pelo correio em envelopes para museus distantes: dobras e evidências de passagens anteriores são partes integrantes das obras, que assim claramente atravessam o espaço do museu. A arte de Dittborn chama atenção para distâncias não-sincrônicas, politizadas, de espaço e memória (Dittborn, 1993). Ver também Charlotte Townsend Gault (1995: 92), para uma discussão sobre a forma como a primeira exposição de artistas nativos na Galeria Nacional do Canadá marcou uma distância crítica entre o museu e uma nação indígena justamente no momento de sua inclusão.

[4] Afirmar a necessidade desse desfecho em áreas estratégicas como a propriedade de terra e o controle do patrimônio [heritage] é o objetivo dos movimentos contemporâneos de "soberania". A independência econômica e cultural completa não é uma opção realista; o que se procura, no entanto, é uma base de poder a partir da qual exercer algum controle concreto nas interações do presente.

[5] Fred Meyers (1994), escrevendo sobre aborígenes australianos na cena artística novaiorquina, defende que novas "interculturas" são criadas em performances associadas a exposições em museus - performances em que os participantes possuem graus de envolvimento muito diferentes uns dos outros.

[6] Em sentido semelhante, Richard Bauman e Patricia Sawin (1991: 312) criticam uma tendência de se pensar nos participantes de festivais folclóricos como objetos em exposição. Eles os descrevem "como agentes, reflexivos, adaptáveis e críticos, elaborando representações nas quais estão envolvidos, trabalhando para descobrir o que deveriam e poderiam estar fazendo dentro de um festival folclórico, negociando um caminho através de estruturas de poder e de autoridade, e oferecendo uma resistência firme, ainda que geralmente bem-humorada, quando sentem que sua noção de identidade e do próprio valor lhes está sendo impingida por outras pessoas."

[7] Bruce Mannheim (1995), em complexa reflexão sobre Fusco e Gomez-Peña, nos lembra da realidade material dos sequestros e trabalhos forçados que está por trás de uma reação há muito estabelecida: os relatos indígenas sobre europeus como invasores de corpos [body snatchers] na América Latina (e na África).

[8] De fato, a analisa da hegemonia ocidental na exposição do "exótico" pode se tornar totalizante, mascarando diferenças importantes. A valiosa discussão de Raymond Corbey corre esse risco ao afirmar uma forte similaridade entre exposições coloniais e a exposição Te Maori de 1984 em Nova York, com a presença dos próprios maori (Corbey, 1993: 359). A recepção pelos visitantes daqueles cantos e rezas maori dentro do museu pode, em muitos (embora certamente não em todos) casos, seguir uma velha tradição. Mas o envolvimento dos maori nas próprias performances, assim como a complexa política tribal/estatal/museológica em torno da exposição, reflete importantes rupturas com o passado. Coco Fusco corre o mesmo risco ao se deslocar indistintamente entre os ishi no museu de antropologia e "outro exemplo menos conhecido": os mexicanos capturados pelos secessionistas anglo-texanos, expostos dentro de jaulas em praça pública, e ali deixados até morrerem de fome (Fusco, 1995: 41).

[9] Pauline Turner-Strong (1992) enfoca agudamente essas narrativas ausentes. Embora levante aspectos cruciais, suas evidências de experiências indígenas na Europa são inevitavelmente fragmentárias. Seu uso da tradição oral, especialmente a lenda wampanoag do invasor europeu como pássaro canibal, é tantalizante e importante. Já existe melhor documentação disponível sobre "viajantes" mais recentes, embora a informação sobre seus pontos de vista complexos ainda não esteja bem-estabelecida. Corbey (1993: 348-352) enfatiza a importância de se contemplar a experiência indígena nos "estudos de casos etnográficos" europeus, mas se limita a uma determinada série de questões. A história contada pelo sioux Black Elk [Alce Negro] sobre sua viagem à Europa a com trupe do Buffalo Bill's Wild West Show é uma exceção (Black Elk, 1979); ver também o diário de um inuíte na Alemanha (Taylor, 1981). O relato de Bradford e Blume (1992) sobre Ota Benga, um pigmeu que foi exposto na Feira Mundial de Saint Louis, contém informações intrigantes, ainda que algo especulativas, relativas à noção dos pigmeus sobre violação de hospitalidade e seus costumes de parodiar e de usar o humor para reverter situações desfavoráveis e cativar a plateia.

[10] Ver capítulo 5 para o uso atual entre os kwakiutl (kwagiulth) das imagens romantizadas de Curtis - recicladas como retratos de família.

[11] Terence Turner (1991) fornece uma análise minuciosa da auto-representação cultural de um povo tribal (os caiapó) para estrangeiros, no contexto de mobilização política e defesa da etnia.

[12] Adaptei essas questões a partir do relato de Michael Ames sobre a polêmica (Ames, 1991: 9). Em sua discussão a respeito de "Spirit Sings" [O espírito canta] e "Into de Heart of Africa" [No coração da África], ele se concentra na injustiça do protesto, e no potencial "efeito inibidor" sobre a independência curatorial e sobre a liberdade de expressão. Embora sua discussão dos dois protestos seja uma defesa dos interesses do curador, as lições que ele tira dos debates e os exemplos que ele dá de práticas emergentes em museus parecem defender uma renegociação do controle curatorial e da comunidade - um movimento geral em direção a um planejamento compartilhado, a um poder compartilhado e a uma concepção mais ampla dos conhecimentos diversos representados nos museus (13-14). A ambivalência de Ames reflete a linha tênue adotada atualmente por profissionais de museus, em um período de escassez de recursos e crescentes pressões políticas vindas de direções contraditórias.

[13] Tenho em mente aqui, é claro, algo mais central do que associar uma galeria ou patrocinar uma visitação guiada - incluindo uma instalação de Hans Haacke ou uma intervenção de Fred Wilson.

[14] A diferença é evocada de maneira sensível por Aldona Jonaitis, que trabalhou com Gloria Cranmer Webster, diretora do Centro Cultural U'mista, e com outros velhos kwakiutl em "Chiefly Feasts: The Enduring Kwakiutl Potlach" [Banquetes de cacique: a dádiva duradoura dos kwakiutl] no Museu Americano de História Natural (Jonaitis, 1991: 66-69)

[15] Intensas discussões sobre repatriamento estão ocorrendo atualmente em um amplo espectro de museus e agências governamentais. Para se ter uma ideia, ver as diferentes posições do National Museum of the American Indian [Museu Nacional do Índio Americano] (1991) e Sturtevant (1991); ver ainda Blundel e Grant (1989).

[16] Talvez - como John Urry (1990: 134) e Chris Healy (1994: 35) sugerem - a gama de projetos atualmente englobados pelo termo "museu" é ampla demais para ser coerente. Sua tradução em uma variedade de contextos tão vasta pode ter tornado seu significado quase irreconhecível. Creio, contudo, que ainda podemos falar em um "mundo dos museus" (e não em um "circuito de museus internacional" global ["museum world"]) unidos por semelhanças sobrepostas, ainda que não por uma mesma identidade estrutural ou funcional.

[17] Grupos previamente excluídos podem, é claro, transformar sua inclusão no Mall  em um objetivo político. Mas essa será apenas uma estratégia, associada a outras, descentralizada ou centralizada de outra maneira, não inscrita no espaço imaginado do estado nacional inclusivo. Nesse sentido, será importante acompanhar como o novo Museu do Índio Americano, localizado em Washington, D.C., e em Nova York, colabora com uma série de instituições tribais. A visão geral que estou aqui articulando ecoa o "multiculturalismo policêntrico" de Shohat e Stam [Cf. ed bras: Crítica da imagem eurocêntrica, São Paulo: Cosac Naify, 2006], que eles distinguem claramente do pluralismo liberal (1994:46-49)

[18] Os atuais competidores comerciais e alter egos dos museus são parques temáticos e shopping-centers. Em um esforço de fornecer locais de encontros seguros e entretenimento edificante para a classe média, alguns dos grandes museus urbanos criaram suas próprias lojas, e sofisticados cafés e restaurantes. Com o encolhimento dos investimentos governamentais e locais, muitos dos grandes museus têm se tornado mais corporativos e pautados pelo consumidor, seguindo trajetória similar à das universidades. Ver Readings (1995) para uma análise incisiva das tendências institucionais atuais.

[19] Os "debates sobre patrimônio" [heritage] na Inglaterra estão ocorrendo. O brilhante trabalho de Patrick Wright, On Living in an Old Country [Sobre a vida em um país velho] (1985), foi rapidamente seguido por The Heritage Industry [A indústria do patrimônio] (1987), de Robert Hewison, e por muitas outras críticas de um passado nacional romantizado, composto por luxuosas casas de campo, paisagens pitorescas, artesãos habilidosos, e trabalhadores dedicados. Recentemente, Raphael Samuel (1994) lançou um contra-ataque que reivindica uma história mais longa e mais democrática para os projetos de conservação e acusa os críticos de esnobismo. Sua nostalgia populista de esquerda não passou desapercebida. Até o momento, esse debate tem se concentrado intensamente na Inglaterra. Wals - embora generalize demais o contexto thatcherista - possui o mérito de colocar o mercado do patrimônio como um fenômeno global. Fico impressionado, contudo, pelos múltiplos investimentos em "patrimônio" [heritage], tal como se articula em diversas situações locais/globais. No espírito do trabalho de Featherstone, precisamos reconhecer que o próprio debate sobre patrimônio [heritage] é um elemento da cultura global e não deveria ser resolvido com muita rigidez nem a favor de um "lado" nem de outro.

[20] Uma instituição indígena relativamente moderna, projetada para a exposição da "cultura", e que precisa ser tratada com a mesma atenção que se dá a funções, contextos e públicos discordantes, é o "pow-wow". Recorrendo à dança e às formas sociais tradicionais, aliadas aos movimentos pan-indianistas do século XX nos Estados Unidos e no Canadá, os pow-wows são ocasiões inventivas, populares, tanto para turistas como para os próprios índios - muitas vezes por motivos diferentes. Blundell (1989) fornece um relato complexo. Ver também minhas reflexões sobre o Centro Cultural Onga, na Nova Guiné, no capítulo 6.

 


 

Notas e comentários dos tradutores:

[a] O Portland Art Museum foi fundado em 1982, como fruto do empenho de sete lideranças culturais e do comércio interessadas em criar um museu acessível a todos os cidadãos de Portland. Para conhecer o museu e suas coleções acesse: <http://portlandartmuseum.org/>. (N. dos T.)

[b] Povo nativo norte-americano, os Tlingit vivem na faixa litorânea e ilhas no Pacífico próximas à região que vai do sudeste do Alasca ao norte da Colúmbia britânica, no Canadá. Desde sempre, vivem da pesca e caçam focas e lontras-marinhas, coletam frutas silvestres e raízes, constroem casas em que se abrigavam diversos grupos familiares com a madeira proveniente de árvores de cedro. Seu contato com europeus e norte-americanos aconteceu no século XVIII, quando chegaram os primeiros exploradores russos, que com sua presença causaram a morte de mais da metade da população indígena devido a doenças como varíola e tuberculose. A chegada de norte-americanos em busca de ouro, quando a Rússia vendeu o território do Alaska aos Estados Unidos em 1867 levou o grupo a se concentrar em pequenos trechos de terra, como forma de resistência. Com o propósito de recuperar suas terras, em 1912, os tlingit formaram o grupo chamado Fraternidade Nativa do Alasca, conquista que aconteceu muito mais tarde, em 1971, com a devolução de 18 milhões de hectares de terra aos tlingits e outros povos do norte. No início de nosso século, cerca de 9 mil tlingit viviam no Alaska, e cerca de mil no Canadá. (N. dos T.)

[c] A Coleção Rasmussem pode ser acessada no website do museu: <http://portlandartmuseum.us/mwebcgi/mweb.exe?request=record;id=261435;type=801>. O colecionador que a reuniu, Mr. Axel Rassmussen (1886-1945), foi um entalhador norte-americano interessado na cultura indígena. Formou sua coleção de arte indígena norte-americana durante o período em que se tornou supervisor escolar no Distrito Skagway, na Costa Oeste do Alaska. De acordo com Robert Tyler Davis, no livro Native Arts, um profundo encantamento diante do refinamento da artesania da comunidade levou Rasmussen a uma convivência constante, que se desenvolveu como amizade com os tlingit. Havia por parte deles o reconhecimento dos serviços prestados pelo entalhador, que os oferecia à comunidade em situações de celebração ou ritual, sempre que demandado. Rasmussen anunciava a todos o desejo de criar um museu local, uma vez que antecipava o que poderia vir acontecer – e aconteceu: os conhecimentos artesanais do grupo foram se perdendo e a cultura da comunidade aos poucos se tornou enfraquecida. Da relação de afeto vivenciada, surgiu a coleção, que foi adquirida pelo Portland Art Museum após a morte de Axel Rasmussen. (N. dos T.)

[d] Há que se lembrar aqui as condições em que os objetos foram reunidos por Rasmussen, seu desejo de criar um museu local e sua posterior aquisição pelo museu em Portland. (N. dos T.)

[e] Nessa perspectiva de negociação histórica, é fundamental reconsiderar a ideia implícita em instituições que trabalham para os públicos, na medida em que elas frequentemente desconsideram as necessidades de negociação que surgem quando se trabalha com os públicos e suas referências, necessidades anunciadas e defendidas, decisões e valores. (N. dos T.)

[f] Registros do trabalho da dupla podem ser vistos no documentário do artista Wagner Morales chamado Coco Fusco – I like girls in uniform, produzido pela Associação Videobrasil em 2006, disponível aqui, a partir do minuto 16: <https://www.youtube.com/watch?v=GtpMfyx8GGg>. (N. dos T.)

[g] A busca por criar uma mostra polifônica lançou mão, nesse caso, de formatos discursivos e pedagógicos para promover a participação de públicos diversos, em torno de trabalhos de arte desenvolvidos por artistas de gerações diversas. O risco para os públicos, nesses casos, é serem envolvidos em atividades de reverberação de um statement curatorial ou institucional, ao invés de vivenciarem a oportunidade de negociar os sentidos daquilo com que se relacionam dentro das programações. (N. dos T.)

[h] Experiências como esta, que se colocam como supostamente neutras em contraposição ao “didatismo”, deixando que os “objetos falem por si”, correm ainda o risco de levar parte dos públicos a interpretações perigosas. Neste caso, por exemplo, o maior deles seria o de tomar as falas preconceituosas de uma época como algo aceitável, uma vez que os objetos e as falas estão dentro do museu, porém sem um posicionamento claro da instituição que dialogue com o assunto para além de exibi-lo. A instituição precisa entender seu papel de plataforma de diálogos para provocar discussões transformadoras, ou seja, colocar-se como ponto de partida para a construção de conhecimentos, e não como ponto de chegada a ideias e pensamentos. A consciência de seu papel mediador, nesse caso, é essencial para que os públicos entendam os posicionamentos da instituição e possam também se colocar diante de suas propostas e programas. (N. dos T.)

[i] Aqui está uma boa pergunta que deveria ser retomada e questionada em sua pertinência, a cada caso, sempre que possível diante deste tipo de curadoria: como podemos supor a extensão da experiência vivida pelo outro ou supor que quem nos ouve alcança as dimensões daquilo que se passou conosco enquanto experiência?  A alternativa de contato e consulta entre as diversas vozes durante a pesquisa curatorial para a realização de projetos como este pode constituir pistas, entretanto seriam o dissenso e o embate entre posições conflitantes que trariam novas interpretações diante da polifonia gerada, e não o esforço para criar posições e discursos unitários. (N. dos T.)

[j] Um exemplo interessante deste tipo de colaboração de longa duração é o trabalho de Lucia Gonzalez, no Museu Casa da Memória, que pode ser conferido no link: <http://www.forumpermanente.org/event_pres/simp_sem/dialogos-em-educacao-e-museu/relatos-criticos/museu-casa-da-memoria-o-exercicio-da-convivencia-como-pratica-para-a-liberdade>. (N. dos T.)

[k] Aqui, a ideia de museu como plataforma a ser ocupada pela comunidade e suas diferentes manifestações de posicionamentos surge como forte possibilidade de criação de programações que proponham aos públicos situações que não se limitem ao entretenimento. (N. dos T.)

[l] Uma nota final, sobre contato e colaboração – instituições e públicos –, por Valquíria Prates: Publicado em 1997, o livro Rotas: viagem e tradução em fins do século XX, escrito pelo antropólogo estadunidense James Clifford (1945-), trouxe contribuições importantes para a área de estudos culturais, com ampla ressonância na museologia social, educação em museus e na prática de profissionais relacionados aos públicos de instituições culturais. Conheci o texto  Museus como zonas de contato em 2005, como resposta de um amigo em um debate acalorado sobre os riscos de tornar “os públicos” uma espécie de mercadoria, moeda de troca em trabalhos de colaboração e participação, alertando-me para o cuidado necessário ao participar de projetos em que a intenção conclamada pela instituição fosse “dar a voz” às minorias. Enquanto eu vivia um momento de “encantamento” diante da abertura das instituições para a possibilidade de ouvir a comunidade em situações coletivas de trabalho, meu amigo apontava a pontencial perversidade de determinadas propostas, questionando as éticas de escuta e colaboração envolvidas em casos bem específicos.

O texto de Clifford foi uma espécie de mediador em nossa discussão. Por meio do relato de uma consulta pública a um grupo de indígenas do Alaska acerca de objetos do acervo de um museu norte-americano, o antropólogo convida o leitor a vislumbrar o contexto em que acontece o convite – e as expectativas muito diversas entre as partes envolvidas. De um lado, profissionais do museu buscando conhecer melhor os objetos para valorizar as formas de exibi-los, por outro, os anciãos carregando a missão de negociar as formas como suas histórias e culturas serão apresentadas dentro do museu, tendo nas peças o ponto de encontro para conhecer a história de seu povo e seus embates com o cotidiano contemporâneo.

Clifford segue sua narrativa, trazendo episódios em torno de práticas artísticas, exposições e programas públicos, chamando a atenção do leitor para uma série de “saias justas” e equívocos entre instituições e as pessoas que as frequentam. Em grande parte disparados em contextos de experimentações artísticas e curatoriais, muitos dos episódios tinham por base e motor as interpretações de conceitos e ideias presentes nos Estudos Multiculturais, que marcaram os anos 1990.

Importante lembrar que esses estudos foram alvo de controvérsias entre seus “intérpretes” em ação. Embora seja inegável seu valor naquele determinado contexto histórico (bem como o grande impacto na abordagem de assuntos difíceis como o preconceito étnico e de gênero, que ganharam espaço e ocuparam debates acalorados em instituições acadêmicas e culturais durante toda a década), suas ideias deram margem a situações em que todas as minorias eram tratadas como um grande caldeirão de culturas em que “tudo equivalia a tudo”, nas palavras do artista Guillermo Gomes-Peña:

Multiculturalismo é um termo ambíguo. Pode significar pluralismo cultural, em que vários grupos étnicos colaboram e dialogam uns com os outros sem ter que sacrificar suas identidades em particular, o que é extremamente desejável. Mas também pode significar um tipo de “Disneylândia em esperanto”, um coquetel de tutti-frutti das culturas, linguagens e formas de arte, em que tudo se torna qualquer coisa.

A leitura do texto e o entendimento do contexto de escrita de Clifford abriram para mim uma nova perspectiva crítica em relação a uma necessária “ética de participação” dos públicos em atividades públicas de instituições culturais. Se, na década de 1990, o mundo presenciou mal-entendidos e interpretações equivocadas acerca da ideia de expor “outras” culturas (não imperialistas) e de realizar consultas públicas em que a instituição buscava deixar invisível qualquer forma de confronto ou dissenso, na atualidade observamos uma série de práticas artísticas, curatoriais e educativas que, ao priorizar a participação, ainda não acolhe o dissenso como elemento gerador de outros pontos de vista.

O diálogo aberto que buscaram os tlingit ao aceitar o convite para a “consulta pública” no museu citado por Clifford nos apresenta um público que tinha consciência de seu papel político – e de que uma consulta deste tipo envolve negociação entre partes, que pode resultar numa contrução coletiva. Ruídos, desconforto e dissenso em geral são as marcas deste tipo de acontecimento, longe de um imaginário construído, especialmente em educação, de que o consenso e o congraçamento são características de todo e qualquer trabalho realizado em colaboração.

O caminho mais coerente para mim, em experiências e práticas “assombradas” pelo diálogo com as “zonas de contato” de Clifford (que por sua vez dialogava com a linguista Mary Louise Pratt, de quem emprestou o termo), foi o seguinte: sempre desconfiar do consenso (ainda que minha formação costume me puxar com efeito de gravidade para zonas de conforto) e, estando em instituições, buscar me perceber como parte delas a cada nova proposta ou pesquisa realizada.

Em decorrência desse reconhecimento, venho tentando me preparar para acolher a importância do dissenso e, paulatinamente, me desviar do consenso como fim exclusivo a ser alcançado, em processos em que o tempo, a convivência e o respeito às negociações e narrativas são fundamentais para aprofundar as discussões diante do que chamamos de públicos.

Aprendi, com este texto, que as instituições somos nós, que as ocupamos. Como públicos e como profissionais que precisam rever práticas e intenções, encarar o abismo que muitas vezes habita estes dois pontos dos processos de colaboração:

Enquanto os museus não forem além de uma consulta (muitas vezes depois que a visão curatorial já está firmemente instaurada), enquanto eles não aportarem uma gama mais ampla de experiências históricas e agendas políticas ao plano concreto das exposições e do controle das coleções dos museus, eles serão percebidos como instituições meramente paternalistas por pessoas cuja história de contato com museus sempre foi de exclusão e condescendência. Talvez seja utópico, de fato, imaginar os museus como espaços públicos de colaboração, de controle compartilhado, de traduções complexas, de discordâncias honestas. (James Clifford)

Da diversidade cultural aos limites do modernismo estético Políticas culturais da coleção nacional, mecanismos de exibição e exposição

 

Autores: Andrew Dewdney e Victoria Walsh

Tradução: Thais Olmos

Revisão técnica: Cayo Honorato e Diogo de Moraes

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Da diversidade cultural aos limites do modernismo estético
Políticas culturais da coleção nacional, mecanismos de exibição e exposição

 

O artigo discute como a análise do impacto das políticas de diversidade cultural britânicas – relacionadas às práticas de formação de público[1] na Tate Britain, de 2007 a 2010 – levou o projeto de pesquisa Tate Encounters: Britishness and Visual Culture a identificar a necessidade de compreender como as práticas variadas de colecionismo, exposição e museografia eram conectadas e desconectadas através das redes organizacionais de curadoria, marketing e aprendizado. Ao vincular as esferas de influência entre curadoria e educativo, objeto e público, que habitualmente se encontram separadas, a pesquisa reabriu a questão do agenciamento que se dá através das figuras de linguagem empregadas pela curadoria, examinando o que pode ser visto como um conflito entre a estética de exibição dominante no modernismo e as práticas de museu voltadas à formação de público[2], no contexto das condições contemporâneas de participação. Conforme destaca o artigo, um dilema aparentemente insolúvel para os museus de arte apresenta-se agora devido a sua contínua fidelidade aos formatos modernistas de exibição; nos quais os princípios estéticos do modernismo estão em inextricável oposição à crescente preocupação acerca da ampliação das formas de participação do público. Entre os problemas-chave apontados no artigo, destaca-se a lógica de mercado inerente à coleção, que privilegia os valores históricos e culturais dos objetos; evidenciados por uma combinação entre: erudição, colecionismo e expografia, tais valores reforçam apenas o valor de troca, em vez do valor de uso de tais objetos. Ao deslocar o objeto para o campo da contemplação estética, o valor de troca da obra – enquanto bem colecionável – é continuamente privilegiado e assegurado. Esse valor é mantido em detrimento do valor de uso do objeto, que é sempre relativo e mutável, podendo ser assegurado somente pelo trabalho posterior do público. O artigo argumenta que, na conjuntura contemporânea, a presença dos públicos transculturais e alfabetizados pela linguagem da mídia ameaça essa separação institucionalizada de valores, desafiando a autoridade cultural em que se apoia a estética modernista. O artigo baseia-se em uma discussão mais ampla gerada pelas descobertas propiciadas pelo Tate Encounters, apresentadas na publicação Post Critical Museology: Theory and Practice in the Art Museus. (Dewdney, Dibosa, Walsh, 2013)

 

I. TATE ENCOUNTERS: BRITANICIDADE[3] E CULTURA VISUAL

Ocorrido entre 2007 e 2010, Tate Encounters foi um projeto de pesquisa interdisciplinar alojado no interior de instituições parceiras: Tate Britain, London South Bank University e Chelsea College of Art. O projeto fez uso de métodos de pesquisa de campo extraídos da etnografia, estudos científicos e de tecnologia, e culturas visuais, baseando-se nos conhecimentos de historia da arte, estudos em curadoria, programação cultural, estudos culturais e de mídia, e ciências sociais. Como um questionamento de base empírica acerca das políticas e práticas nacionais de diversidade cultural e de como elas eram negociadas em um museu de arte nacional, o projeto apresentou uma série de questões à Tate Britain, todas elas ligadas à relativa ausência de visitantes dos segmentos Negros e de Minorias Étnicas (NME). O foco recaiu, em particular, na política institucional, nas barreiras ao acesso, nas tipologias de público e nas acepções de britanicidade cultivadas dentro da Tate Britain. Neste sentido, buscou-se evidenciar como as noções de público e observador eram consideradas por funcionários da Tate e, consequentemente, como elas apareciam durante a produção das exposições. Como um projeto de pesquisa experimental, interdisciplinar e colaborativo, ele criou uma matriz de metodologias mescladas buscando reunir a prática da teoria (a abstração do conhecimento) com as teorias da prática, tendo por objetivo responder à problemática central do projeto: analisar, por meio de um estudo de caso da Tate Britain, os motivos da ausência dos públicos constituídos pela categoria política NME. Com foco nas conexões e desconexões das redes de práticas internas ao museu, o projeto tentou expor uma análise das relações entre o espectador proveniente da diáspora e o trabalho de arte, com o intuito de compor um relato contextualizado dos encontros[4], em vez de um relato conceitual baseado no discurso teórico ou na abordagem estatística da política institucional.

Durante o desenvolvimento do trabalho de campo, o projeto convocou mais de 600 alunos do primeiro ano de graduação da London South Bank University, selecionados principalmente por seus históricos de migração e educação não tradicional. Os participantes visitaram os museus Tate Britain e Tate Modern e produziram suas respostas aos encontros mediante o preenchimento de questionários e a elaboração de ensaios. Em seguida, um grupo de 12 estudantes tomou parte em um estudo mais aprofundado, com duração de dois anos, trabalhando junto a um antropólogo visual, a fim de explorar e desenvolver suas respostas ao encontro na Tate Britain. Os integrantes desse grupo passaram a assumir o papel de co-pesquisadores no projeto. Participantes voluntários, eles tinham laços e raízes familiares no oriente, da Malásia a Bangladesh; no leste europeu, da Letônia e Ucrânia a Polônia; na Escandinávia, da Finlândia a Noruega; na Espanha; na Irlanda; no continente africano, da Nigéria a Gana; e também no Caribe. Outro elemento-chave para a pesquisa foi um estudo organizacional envolvendo 38 funcionários da Tate, que aconteceu ao longo da produção da exposição da Tate Britain The Lure of the East: the British Orientalist Painting [A sedução do oriente: a pintura orientalista britânica], em 2008. Por fim, o projeto desenvolveu um programa público com entrevistas, painéis de discussão e projeções. Ocorrido durante o mês de março de 2009 nas galerias da Tate Britain, o programa público reuniu 72 colaboradores, incluindo funcionários da Tate, artistas, curadores, educadores, acadêmicos, atores políticos, especialistas em marketing e novas mídias e os co-pesquisadores do projeto, para discutir as descobertas da pesquisa.

Além da abordagem bottom-up proveniente da grounded theory e da reflexividade crítica (Alvesson e Skoldberg, 2009), a Teoria do Ator-Rede (TAR) (Latour, 2012) também foi adotada para avançar além do modelo binário da pesquisa positivista em ciências sociais. Fundamentando essa posição, temos a reivindicação de Certeau acerca da “invenção do cotidiano” (de Certeau, 1984), tornando visível o conhecimento tácito da prática individual, em lugar do discurso institucional da gestão organizacional. Além disso, sua reivindicação forneceu uma lente através da qual a pesquisa se aproximou da ação dos estudantes e da análise da forma de organização dos quadros de funcionários. No plano metodológico, o projeto pautou-se pela consciência de que a complexidade de sua abordagem demandaria níveis intensos de investimento individual e coletivo, gerando e analisando dados no interior do processo de reflexão crítica, que Latour abertamente adota como a "confusão" de "rastrear o social". O apelo e o potencial da TAR, além de abrir novas leituras sobre como se conectam os modelos de formação de público e as políticas de diversidade cultural, também se baseia no reconhecimento dos múltiplos papéis assumidos pelo trabalho de arte, tanto como "intermediário" quanto como "mediador", no fluxo de valor. Dessa forma, desvia-se da ideia do objeto de arte como uma construção cultural de valor estético fixo, como proposto pelos modelos estruturais de análise crítica. Como escreve Latour:

Se, no antigo paradigma, com seu "espaço interior" de "inefável beleza", era necessário um jogo de soma zero – tudo quanto a obra de arte perdia o social ganhava, tudo quanto era perdido pelo social era ganho pela "qualidade intrínseca" da obra de arte –, no novo paradigma estamos diante da situação de ganhar ou ganhar: quanto mais apego, melhor. [...] Quanto mais "afluência", melhor. Vai contra a intuição tentar distinguir o que vem dos "observadores" do que vem do "objeto", pois a resposta óbvia é "deixar-se levar". Objeto e sujeito talvez existam; mas tudo o que interessa acontece a montante e a jusante. Apenas siga a corrente. Siga os atores, ou antes, aquilo que os faz atuar: as entidades em circulação.[5] (Latour, 2012: 338-339)

 

II. TATE BRITAIN E AS NARRATIVAS DE NAÇÃO

A Tate Britain ocupa posição especial dentro do discurso de britanicidade por três razões. Primeiramente, desde 2000, por ocasião da renomeação da Tate Britain, a associação do museu com o estado-nação passaria a integrar seu perfil institucional. Em segundo lugar, a britanicidade é corroborada pelo seu status de “museu nacional”. O terceiro aspecto refere-se ao fato de que a Tate Britain abriga trabalhos de arte que, nominalmente, constituem a Coleção Nacional de Arte Britânica, mantendo a realização de aquisições "em nome da nação". Apesar de a própria Tate, ao se referir à autoria dos trabalhos, adotar um uso altamente fluido e flexível do termo "britânico", e de seu programa de exposições incorporar artistas que extrapolam a conotação óbvia de britânico, a identificação com a britanicidade é compreendida e forjada por meio das três condições expostas acima, adquirindo corpo através de suas expografias e do programa de exposições. Como consequência direta, a britanicidade da Tate Britain chamou atenção nos debates recentes sobre participação e pertencimento na cultura britânica.

Buscando responder às questões originais da pesquisa - sobre como são construídas as narrativas de britanicidade nas expografias adotadas pela Tate Britain - Tate Encounters foi prontamente conduzido pelos estudantes co-pesquisadores em direção aos debates desencadeados pela promoção de políticas governamentais calcadas nos conceitos de britanicidade, identidade nacional e cidadania e em suas relações diretas com o contexto migratório europeu e internacional. No caso do Tate Encounters, a incerteza em torno da representação nacional foi claramente enquadrada nos termos das irresolvidas políticas do multiculturalismo, especificamente das políticas de diversidade cultural voltadas à ampliação da inclusão social e da participação cultural. Neste sentido, Tate Encounters, que havia sido fundado dentro de um contexto migratório, tinha por missão produzir entendimentos sobre como a migração – e a experiência cultural por ela gerada – se enredava com a cultura da Tate Britain.

 

III. TATE E AS IDEIAS DE VALOR PÚBLICO E O PÚBLICO-VISITANTE.

A Tate é uma instituição pública pertencente ao público e para ele destinada. A missão da Tate é ampliar o conhecimento, a compreensão e o desfrute público da arte britânica – moderna e contemporânea – através da Coleção e de um programa inspirador dentro de nossas galerias e muito além delas. Tudo o que fazemos – incluindo a Coleção que cuidamos, as exposições que realizamos, os nossos modos de exibição, o programa que desenvolvemos e a administração da nossa organização – é feito para maximizar o valor para o público. (Tate Online, acessado em 28.07.2010)

Enquanto a Tate compromete-se com a maximização do "valor para o público", aquilo que de fato constitui "valor" e "público" dentro das diferentes práticas da instituição mostra-se muitas vezes fragmentado, provocando linhas de tensão e de contradição na articulação e mediação dos valores do museu em sua relação com o público. Ao examinar a abordagem focada nos públicos "minoritários", revelou-se não apenas o impacto negativo de uma política cultural racializada, como também a questão mais ampla de como os públicos per se são modelados pelo museu e, além disso, como "diferença" é entendida em relação ao conceito de "central".

Ao retomar os primeiros encontros com a Tate Britain, realizados pelo grupo de estudantes com um passado de diáspora e que eram "não-frequentadores" de museus, e acompanhando o surgimento de seus relatos que contavam o que a Tate Britain significava em suas vidas cotidianas, fora do ambiente do museu, veio à tona uma complexa narrativa do quão interconectadas estão as questões de identidade, subjetividade e nacionalismo com as novas formas de transmigração e globalização. Nessa pesquisa, foi possível descobrir que os estudantes categorizados como “outro” que não o britânico branco prontamente rejeitavam e resistiam às categorias racializadas, e não se viam como representantes de uma determinada identidade pessoal ou de certo comportamento social. Logo, rejeitavam noções fixas de identidade e, no lugar delas, adotavam modos mais fluidos de subjetividade baseados na transmigração. Isso poderia indicar que, como público, eles demandavam uma acepção mais complexa para categoria “britânico”, que pudesse dar conta de refletir e abarcar a importância da subjetividade, do hibridismo cultural e da dimensão transcultural. (Dewdney and Walsh, 2013)

Outra descoberta-chave, e o foco deste artigo, refere-se à maneira como as narrativas monoculturais do Modernismo – conhecidas por seu apelo à autonomia estética da obra de arte e pela ênfase na experiência estética – entraram em conflito, na ótica dos co-pesquisadores, com a percepção de narrativas nacionalistas, que foram entendidas não somente como delimitadoras da discussão sobre arte britânica mas também, e mais explicitamente, sobre a ampla historia global de transmigração revelada nas exposições contemporâneas. Além disso, as sofisticadas leituras apresentadas pelos co-pesquisadores diante das obras em exposição demonstravam familiaridade com a reivindicação por uma integridade estética dos trabalhos expostos. Ao mesmo tempo, eles sublinhavam suas escolhas individuais e independentes de interpretação, colocando as obras em relação direta com o campo expandido da cultura visual – não reconhecido pelas próprias formas de interpretação fomentadas pelo museu. Contrários à argumentação relacionada às políticas de representação, os estudantes demonstraram pouco interesse pelas versões históricas revisionistas, assim como pelas narrativas pós-coloniais, mas expressaram de maneira consistente o interesse por relatos mais abertos e complexos sobre o valor da cultura visual e a construção de significado dentro do museu.

O estudo organizacional revelou, entretanto, que a estrutura funcional da Tate diminiu a possibilidade de tais perspectivas serem viabilizadas, já que a instituição continua baseada em uma hierarquia de gosto e interpretação voltada para uma única direção. Esta é definida pelo paradigma modernista, partindo da visão do artista, passando pela mediação do galerista e do colecionador privado, sendo chancelada pela autoridade do curador e do historiador para, finalmente, ser processada por uma infinidade de departamentos do museu cujo trabalho consiste em produzir um público através das estratégias de marketing, publicidade, mídia e educação. Como a pesquisa também revelou, não existe uma definição única de público operando dentro da Tate Britain. Em realidade, diferentes conceitos e métodos de trabalho atravessam os departamentos de Educação, Curadoria e Marketing, dentre os quais alguns são importantes para os propósitos da coleção e sua política de aquisição, enquanto outros se prestam à legitimação curatorial e pública. Isso fica claro quando observamos os vários termos empregados pelos diferentes departamentos do museu para se referir aos seus frequentadores, todos eles repletos de pressupostos conceituais: público, visitantes, audiência, portadores de ingresso, observadores, aprendizes, consumidores etc.

Em contraste à “audiência” do Marketing, a rede com a qual interage o departamento de Educação é fomentada pela experiência afirmativa de encontros diretos com o “público”, no nível das subjetividades individuais. Situadas em tramas de comunidades específicas – em lugar das entidades anônimas ou meramente conceitualizadas – tal experiência busca redefinir os modos de endereçamento mono-culturais concebidos pela Curadoria e difundidos pelo Marketing. Na tentativa de se comprometer com um sentido mais crítico e democrático de diversidade e hibridismo cultural, no que diz respeito à composição do corpo de visitantes do museu, os projetos educativos e suas iniciativas junto aos públicos do museu buscam vincular a agenda estética das exposições aos valores políticos e sociais em jogo na recepção dos trabalhos. Na prática, isso é assegurado pelo envolvimento e representação de outras vozes, por meio de parâmetros alternativos aos da cartilha estética, em termos de conhecimento. No caso da exposição The Lure of the East: British Orientalist Painting [A sedução do oriente: a pintura orientalista britânica], isso envolveu o convite a figuras públicas de distintos segmentos profissionais (jornalismo, academia, literatura e música) para produzir textos a serem apresentados junto a trabalhos específicos de arte, com o intuito de redistribuir a voz do museu e sua autoridade cultural, favorecendo uma relação interpretativa mais crítica e ativa.

Contudo, como revelou o conjunto de entrevistas com os curadores, o conceito de público é tratado de maneira altamente elusiva na prática curatorial. Ao mesmo tempo, existe uma série de crenças e consensos em torno do que seria o objetivo principal da curadoria: produzir uma experiência visual prazerosa, na qual o trabalho de arte seja potencializado por práticas interpretativas contidas no próprio design da exposição (cor da parede, iluminação, distribuição espacial), tendo em vista o benefício do público-observador. Essa ênfase no modo de exibição dos trabalhos de arte, calcado nas premissas modernistas, prioriza a experiência estética, suspendendo-a e diferenciando-a das relações espaço-temporais cotidianas. Invariavelmente, ele acaba por alimentar e ampliar a tradição interpretativa baseada na contemplação e no "gosto". É a partir desse repertório que as estratégias de marketing se reportarão ao seu público-alvo.

Essas tradições interpretativas fundamentam-se, inevitavelmente, na autoridade cultural da arte, convenientemente sustentada emantida pelo museu através da combinação da ênfase na recepção estética com um tipo de visão que compreende os objetos do acervo como entidades possuidoras de algum significado inerente, fixos e potencialmente universal, com base na validação histórica da arte e na expertise curatorial. Conforme explicitado pela pesquisa, o parâmetro estético e a chave interpretativa do Modernismo entrariam em conflito com a coleção histórica britânica pré-moderna, pois a lógica modernista de coleção compreende as obras em termos de progressão histórica do cânone estético, em vez de considerá-las a partir de contradições sociais e históricas ligadas ao capital, ao trabalho e ao colonialismo. Sustentar a autoridade cultural do Modernismo acaba por conferir à coleção histórica britânica pré-moderna o estatuto de uma herança (heritage) não contraditória.

 

IV. EDUCAÇÃO COMO CULTURA, CURADORIA COMO HERANÇA

Conforme destacado pela pesquisa desenvolvida no contexto do Tate Encounters, o aumento do financiamento governamental e a ênfase na formação de público foram traduzidos pelo museu, num primeiro momento, com um aumento de seus projetos educativos. Mas, conforme sinalizado pelo artista Raimi Gbadamosi em seu trabalho com jovens na Tate Britain, um aspecto problemático para o museu, na intersecção com a “virada educacional”, teve a ver com o fato de que esta evidencia o quanto os conhecimentos ligados à prática artística não estão baseados somente no museu, mas nos âmbitos da cultura e da história social, que por sua vez são inextrincavelmente sustentados pela diversidade. A cultura e a história social – invariavelmente incorporadas e mobilizadas durante o engajamento criativo dos jovens – sempre precederão a prática da história da arte que o museu fixa como paradigma de interpretação. Esse tipo de encontro ocorrido no contexto museológico, entre a cultura e patrimônio, potencializa o surgimento de tensões, em particular nos projetos baseados na aprendizagem, quando significados fluidos da cultura são confrontados com as narrativas do patrimônio nacional. É também neste ponto que a autoridade cultural do curador fica mais exposta aos questionamentos quanto à sua expertise e legitimidade em selecionar obras para aquisição e exibição.

Em sua entrevista ao Tate Encounters, na condição de curador de programas interculturais no departamento de Educação da Tate Britain, cargo que ocupou entre 2007-10 (Goodwin, 2010), Paul Goodwin se aprofunda na discussão sobre as bases do conhecimento e as formas de produção desse conhecimento no museu de arte, refletindo sobre os desafios que a arte contemporânea socialmente engajada impõe aos museus, sendo ela uma arte que incorpora novas histórias e entendimentos das comunidades, do urbanismo e da globalização e que, geralmente, desvaloriza o argumento modernista da autonomia estética do trabalho de arte. Mais especificamente, Goodwin reflete sobre as anomalias apresentadas pela nomenclatura de seu cargo que, com frequência, era confundido internamente com o de “curador intercultural”, o que misturava questões de identidade e expertise, desviando dos reais objetivos do programa. Esses objetivos focavam na necessidade de expandir a base de conhecimento do museu, no que tange à compreensão das questões de diversidade e representação na prática artística, bem como em sua recepção. Ao mesmo tempo, Goodwin indica a necessidade de se “repensar as ideias acerca da negritude em um mundo global”, chamando atenção para os limites do multiculturalismo no trato com as questões de uma sociedade complexa e super-diversificada. A partir de sua experiência na programação da Tate Britain e do trabalho com artistas e públicos, tanto da comunidade local como de visitantes internacionais, Goodwin propõe a seguinte questão: “com qual versão do global a Tate está lidando?”

A relação inseparável entre as bases de conhecimento do museu de arte, a disciplina de História da Arte e seus processos de reprodução de valor também veio à tona na entrevista com o historiador de arte Leon Wainwright (Wainwright, 2011). Ativamente interessado na história da Arte Britânica Negra, Wainwright identifica que, concomitante à existência de uma rede de críticos, curadores e galeristas engajados em promover essa produção nos anos 1990, existia um notável vácuo de interesse na disciplina em si. Isso o levou a criar, em 2001, o projeto Globalising Art, Architecture and Design History [Globalizando a história da arte, da arquitetura e do design] (GLAADH), que promoveria o ensino dentro de um contexto global, encorajando reflexões sobre as interações entre a multiculturalidade britânica e o mundo globalizado. Esta "abordagem radical de ensino da História da Arte... tinha a intenção de conscientizar a disciplina sobre seu racismo... [e sua] etnicização do conhecimento." Ao perseguir a relação entre políticas representacionais e a segregação do conhecimento, Wainwright discute como narramos a história de acordo com a geografia. O que, no caso da arte britânica, com a perda do Império, produziu uma sensação temporal de "atraso" que acabou enquadrando a produção artística britânica negra, e outras práticas multiculturais, como acréscimos ao registro canônico, em vez de serem compreendidas como sintomas do mesmo tipo de mudança social e cultural que produziu outras formas de arte centrais como, por exemplo, o Expressionismo Abstrato americano e a Arte Pop.

Partindo desse argumento, Wainwright reconhece, por um lado, a prevalecente aderência aos conceitos do transnacional na experiência contemporânea de migração. Por outro, argumenta que isso deveria ser criticamente articulado ao entendimento e ao reconhecimento das condições históricas, políticas, sociais e econômicas que forçaram essa migração. Porque ao se distanciar da história de migrações forçadas, questões mais profundas da problemática relação entre o patrimônio britânico e a britanicidade podem ser obscurecidas, reduzindo-se o papel histórico da nação na história migratória. A este respeito, o "transnacional" pode ser muito facilmente cooptado como parte de um projeto iluminista do museu, possibilitando que uma instituição nacional como o British Museum se reclassifique como "o museu do mundo".

Para Donald Preziosi, no entanto, as relações espaço-temporais e as narrativas da modernidade e de patrimônio são suplantadas por uma questão ainda mais fundamental; ela diz respeito à própria constituição da ideia de arte, no sentido de nos perguntarmos sobre as motivações que alavancaram a invenção europeia da arte e de seu "fantasma", com o qual a história da arte tem trabalhado em conjunto para produzir "paradigmas de diferença" (Preziosi, 2010). Já que a história da arte tem perpetuado esses paradigmas, a necessidade de nos perguntarmos "quem eles beneficiam" se tornou ainda mais urgente e, apesar da proliferação de novos museus e de estudos sobre museus, a questão de como "pular fora deste carrossel" persiste, convocando-nos a questionar não apenas o papel da história da arte, mas também o papel do museu enquanto parte de uma máquina de interpretação que sustenta a diferença através da cenografia forjada por um modo de exibição específico. Ao se envolverem com essas questões, disciplinas alternativas como a “antropologia artesanal” oferecem, para Preziosi, uma forma de avançar por meio da reconexão da ideia de arte com o conhecimento processual do artesão que a produz. Esse movimento lança um desafio direto à estética modernista predominante nos museus de arte que reifica o objeto artístico.

Como conselheiro de políticas internacionais e antigo Diretor de Políticas Culturais da UNESCO, Yudhishthir Raj Isar foi convidado a participar do conselho do Institute of International Visual Art (Iniva), em Londres, para contribuir com uma "visão comparativa internacional" sobre como os conceitos europeus de diferença cultural e migração vinham se desenvolvendo e, somado a isso, como os diferentes estados-nação estavam lidando com a diversidade no nível político. Conforme Isar expôs em sua entrevista ao Tate Encounters, muitas das questões implicadas nas problemáticas da inclusão e da exclusão – historicamente abordadas por Bourdieu em A Distinção – se modificaram significativamente desde 1994, tendo sido potencialmente superadas: "pode ser que os problemas originais da falta de capital cultural, por parte de pessoas cujo processo educacional e antecedente familiar os tonou privados de tal capital, esteja sofrendo um curto-circuito por distintas combinações de atividades e tecnologias no museu de hoje" (Isar, 2011). Sem dúvida, o papel da comunicação digital na democratização da cultura está impactando na relação entre Estados-nação e multiculturalismo, já que nessa "nova era metropolitana (...) as grandes narrativas da nacionalidade estão enfraquecendo" no nível geracional, enquanto outros vínculos e comunidades emergem simultaneamente nos âmbitos local e global. Mas, de acordo com Raimi Gbadamosi, a distinção entre patrimônio e cultura é fundamental para a forma como um Estado-nação se move na atualidade do multiculturalismo, e, como enfatiza Isar, o transnacional é mais fácil de discutir em relação à cultura, mas não em relação à política cultural, que sempre será definida e buscará apoiar os interesses do estado-nação, cada vez mais através do discurso patrimonialista. O que nos conduz ao reconhecimento de que a "globalização cultural" é uma contradição nos próprios termos, já que a cultura é baseada na diversidade e a globalização, na homogeneização.

Talvez o que melhor descreva todas essas contribuições seja o desejo por uma abordagem mais complexa, mais aberta ao questionamento, à análise e mais representativa da formação histórica e da experiência contemporânea. Uma abordagem que favoreça as relações entre as contingências, lutas e prazeres da experiência vivida com os esforços de interpretação e produção de significados, considerando que o acesso a essas relações encontra-se interditado por aquilo que Preziosi, no âmbito dos processos acadêmicos de produção do conhecimento, chama de “muralha do Iluminismo”. Historicamente, a noção de conhecimento no museu vem sendo identificada exclusivamente àqueles que estão diretamente envolvidos com a aquisição e exibição dos trabalhos de arte. Com a ampliação do papel dos museus na esfera pública e a crescente manifestação dos públicos como seres individuais – desde o consumidor do marketing, o aprendiz da educação, o visitante que se informa com o orientador de público[6], até o interator das mídias sociais e o apreciador dos recortes curatoriais – os tipos de conhecimento requisitados na exibição e recepção dos trabalhos de arte estão cada vez mais dispersos pelos departamentos da instituição; o que provoca a fragmentação e a ameaça de desaparecimento da autoridade curatorial baseada nas premissas modernistas da experiência estética.

O processo de fragmentação da noção centralizadora de autoridade cultural foi vivido pela Tate em virtude do crescimento de uma cultura organizacional baseada na administração do risco, que busca conter e direcionar a multiplicidade de significados engendrados exatamente pelo sucesso da incorporação do consumidor individualizado, tido como ameaça constante de incoerência. Como demonstrado pela pesquisa, na Tate Britain as estratégias adotadas para conter a ameaça àquela autoridade, representada pelas políticas de diversidade, não poderiam ir além dos limites estabelecidos por suas próprias formas fundamentais de autoridade. Isso se efetivou na Tate, por um lado, em termos de uma racialização inerente à segmentação dos públicos tidos como minoritários e, por outro, na forma de representação marginalizada dos artistas britânicos identificados sob a designação de minorias. Agora, em face dos movimentos empreendidos pela Tate e por outros museus internacionais de arte no sentido de assumirem posições junto ao mercado de arte global, torna-se flagrante a contradição entre a aceitação curatorial do transcultural global e o impacto cultural da migração nos públicos locais. Tais contradições podem ser explicadas pela separação constatada pela pesquisa, entre as instâncias da coleção e da recepção, do objeto e do sujeito. Tais contradições podem ser explicadas a partir do que esta pesquisa nomeou como sendo a cisão entre colecionismo e recepção, objeto e sujeito, e que nos leva a reconhecer a necessidade de converter o conhecimento tácito e implícito da expertise curatorial em uma forma mais explícita de conhecimento, um conhecimento/engajamento público que se conecte às distintas bases de conhecimento espalhadas pelo museu.

Uma das formas de expor as linhas históricas de separação entre o conhecimento museológico e a história da arte se daria pela geração de novos saberes através da pesquisa transdisciplinar, priorizando as conexões entre cada “estágio” da produção ou da “performance” ensejada pela rede artista-obra-coleção-exposição. Entretanto, continua existindo um forte direcionamento do tráfico cultural nos assuntos do museu, os quais, em termos metafóricos, percorrem itinerários do centro às margens. A fonte do fluxo cultural é normalmente identificada com o artefato, enquanto o objeto material e o destino desse fluxo é [sic] entendido como sendo a difusão da cultura no âmbito generalizado de sua recepção. Mas enquanto a fonte imediata de valor cultural é associada ao objeto material consagrado, uma percepção mais complexa da realidade sugere que a fonte de valor está situada, primeiramente, nas relações sociais de produção do objeto (na maioria dos casos, algo que se mantém historicamente opaco) e, em segundo lugar, no processo subsequente por meio do qual o objeto é adquirido e mantido como tema de atenção do museu. No fluxo diário do tráfico cultural no museu, o lado dos fornecedores é separado do lado da demanda, que em seu sentido público corresponde à afirmação do valor. Por conta da naturalização das divisões especializadas entre aquisição, coleção e exibição, o lado da recepção por parte do público é, em larga medida, considerado como algo supérfluo por muitos processos organizacionais, que por sua vez relegam o visitante a uma posição marginal frente à reprodução dos valores do museu. Contudo, enquanto essas especializações e divisões são preservadas, o público é requisitado como fiador do investimento público em museus, mas apenas como testemunha passiva do processo de reprodução cultural. Ele tem de aceitar o que lhe é apresentado com base na confiança, como uma função pública, que todavia deve ser exercida dentro de limites privados e restritos.

 

V. MODERNISMO E TRANSMEDIAÇÃO

A resposta da pesquisa para a questão sobre a relação entre identidade e fruição de trabalhos de arte afastou-se das noções de identidade definidas racial ou etnicamente, direcionando-se à ideia de que a observação de trabalhos de arte corresponde a um processo relacional, que envolve transcodificações culturais e midiáticas de vários tipos. A transcodificação tem sido reconhecida nos estudos de mídia e educação como um conceito central. É por ele que se perscruta a maneira como o significado é gerado, substituindo a antiga noção de interpretação proveniente da literatura e da história da arte, em acordo com os termos da pesquisa (Manovich, 2001). Transcodificação é também uma forma de alfabetização visual, em que o sujeito se mostra capaz de converter ou traduzir o significado derivado de um meio para outro. Portanto, é parte do conceito mais amplo de transmediação (Thorburn e Jenkins, 2004). O agora padronizado processo de transmediação que emerge num mundo global e midiatizado, tomado em relação àquilo que identificamos como a posição subjetiva do transcultural, produz o que o projeto define como transvisual, caracterizado como um novo modo de ver que procura, ou exige, uma forma de resposta expressiva.

Os argumentos da pesquisa partem da evidência qualitativa de que as formas institucionais e representativas de autoridade cultural são agora desafiadas pelas novas condições de transvisualidade, geradas pelo aumento no movimento global de pessoas e pela globalização da informação. A arte histórica tradicional e a autoridade cultural museológica correm o risco de terem o seu interesse reduzido a uma parcela cada vez menor de pessoas, enquanto as práticas expandidas de transcodificação de imagens inauguram o museu distribuído. Enquanto o modernismo estético continua preso à proveniência do objeto de arte, as formas distribuídas de autoridade cultural, que emergem com o transvisual, começam a partir do encontro contingente com as relações associativas de significado e, então, desenvolvem noções de valor baseadas tanto na situação dada como na diferença. O mais significativo é a evidência de que tais questões não são apenas moldadas ou influenciadas pelas novas formas de mídia social na paisagem digital (Turkle, 2012), haja vista que o digital tornou-se o meio, a moeda corrente através da qual o visual é envolvido e compreendido, seja qual for o ambiente (Rubinstein e Sluis, 2008). Isso não quer dizer, conforme verificado pela pesquisa, que o trabalho de arte não foi valorizado como uma entidade distinta durante os encontros, mas que o enquadramento interpretativo foi derivado de instâncias extramuseológicas, alheias ao poder de influência do museu sobre a construção e apresentação de significado.

 

VI. CONCLUSÃO

Uma das conclusões da pesquisa Tate Enconters foi que, enquanto a Tate mobilizou-se para envolver o público globalizado, sua forma de lidar com ele manteve-se limitada por uma dupla vinculação, por um lado, à resposta estética de indivíduos educados e sua tipologia demográfica correspondente e, por outro, à lógica do valor de troca na coleção; o que restringe e exclui o conhecimento em termos da multiplicidade de encontros e da cacofonia dos significados distribuídos. O que parece ter ficado claro a partir da pesquisa é que a autoridade cultural não pode ser mantida por uma simples insistência em algum tipo de significado inerente, fixo e definitivamente universal dos objetos da coleção, representado pela reserva de conhecimento histórico especializado, validado por práticas de custódia e, finalmente, ligado à função primária de manter o mercado de valor de troca dos objetos.

Como antevisto por Benjamin em relação à obra de arte: “[...] do mesmo modo a preponderância absoluta conferida hoje a seu valor de exposição atribui-lhe funções inteiramente novas, entre as quais a “artística”, a única de que temos consciência, talvez se revele mais tarde como secundária.” [7] (Benjamin, 1987) Se a coleção torna invisível o agenciamento criativo do visitante do museu, e o valor absoluto da exposição, como Benjamin sugere, torna “o artístico” secundário, alguém pode se questionar: o que preenche o espaço da construção de significado, e em que medida o trabalho de arte pode mediar/incorporar o processo de produção ativa e recepção ativa? Tradicionalmente, esse espaço metafórico de significação tem sido preenchido pelo trabalho da academia e da crítica (os avalistas do significado “correto”). Tais “significados corretos” atuam junto às práticas museológicas correntes, conduzidas pelos segmentos da sociedade que “sabem como” ler o trabalho de arte como algo valioso. Porém, as últimas três décadas têm visto não somente o robustecimento da crítica e da problematização frente às posições canônicas dominantes de setores da academia, mas também o crescimento de uma espécie de “confiança de consumidor” por parte do público em sua participação na arte contemporânea, bem como em assuntos mais abrangentes da cultura e do gosto. Entretanto, sob a luz do argumento acima, o sucesso dos novos museus de arte no tocante à “ampliação” do interesse pela arte, atraindo enormes contingentes de visitantes – como é o caso da Tate Modern –, em si mesmo não resolve o problema da(s) localização(ões) e transação(ões) do conhecimento. As pessoas podem ou não estar presentes em grande número, a depender do caso, mas a questão que mais importa permanece: como o agenciamento criativo desse novo público, entendido como um trabalho auto-sustentável de identidade(s), torna-se visível?

Mas, à luz do novo valor estratégico das exposições como parte de um projeto global de expansão, a contestação de Mark Rectanus em seu artigo Globalization: Incorporating the Museum [Globalização: incorporando o museu] também levanta a importância de olhar além das narrativas e práticas de aquisição:

As exposições revelam uma interação e recontextualização do global dentro do local. Os conteúdos da exposição e a estética de suas representações se referem à troca simbólica da cultura que se globaliza… Essas tensões, por sua vez, se referem às disjunções mais amplas do fluxo global entre os cenários etnográficos, tecnológicos, financeiros, midiáticos e ideológicos, que caracterizam a globalização (Appadurai, 1996) e são simultaneamente multiplicadas através do envolvimento do próprio museu com cada uma dessas “paisagens”. (Rectanus, 2011)

Ainda que o papel, a interpretação e a experiência das coleções e exposições continuem sendo compreendidos no interior das práticas de representação, enquadradas pelo conhecimento epistemológico ou pelas políticas culturais, começa a se tornar visível a limitação de tais perspectivas dentro do novo contexto globalizado, no qual os públicos encontram e entendem os trabalhos de arte. Com a reestruturação das economias capitalistas, também a esfera pública se reestrutura, tal como Robins afirma: “Assim como os territórios são transformados, também o são os espaços de identidade.” (Robins, 1999: 17) A via de mão-única do trânsito econômico e cultural, determinada pelas formas coloniais e pós-coloniais de trabalho e fluxo de capital, está agora abrindo passagem para novos circuitos descentralizados de intercâmbio e desmantelando os parâmetros geográficos calcados nas noções de centro e periferia, núcleo e margem. Isso não é menos verdadeiro para os museus, assim como para os públicos dos museus, mas como Robins tem declarado, “a globalização dissolve as barreiras da distância, torna o encontro do centro colonial com a periferia colonizada imediato e intenso” (Robins 1999, 18), levando à conclusão de que “É na experiência da diáspora que podemos começar a compreender o caminho para além do império.” (Robins, 1999: 28)

Ainda que continue vigorando um discurso hegemônico de representação da nação nas políticas e práticas culturais, Tate Encounters revelou em seus estudos qualitativos um relativo declínio das noções taxativas de nação, raça e etnicidade na formação das subjetividades. O enfraquecimento dos discursos nacionalistas e raciais de identidade, pelo menos nas metrópoles cosmopolitas, precisa agora ser entendido no contexto de um novo complexo global de mudanças socioeconômicas e técnicas. No contexto específico do Tate Encounters, a globalização foi traçada concretamente a partir de novos padrões de migração econômica, com base no transnacionalismo e na super-diversidade produzida em cidades globais, nas quais o cruzamento de fronteiras culturais e nacionais constitui uma característica chave. Esses novos padrões transnacionais de movimento humano, de extensão das redes sociais e laços familiares são agora facilitados por uma tecnologia global de comunicação de muitos para muitos. Internet, Web 3.0, wifi e dispositivos móveis, tudo isso foi desenvolvido no período de mudança política, econômica e social na Grã-Bretanha, tratado aqui. Enquanto as forças econômicas globais separam e impelem as pessoas aqui e acolá através do globo, desenvolvimentos tecnológicos têm criado conectividade contínua. Essas novas condições estão desafiando as formas tradicionais de autoridade cultural.

O impacto de tais mudanças globalizantes sobre a produção e o consumo da cultura, entretanto, permanece amplamente desconhecido pelas principais instituições britânicas, cujas respostas iniciais têm sido identificar-se como marcas líderes mundiais. No caso da Tate, eles promoveram sua forte marca em termos de liderança da agenda cultural da arte contemporânea internacional, figurando entre os maiores polos de atração de público. A combinação entre espetáculo visual, comercialização e autoridade curatorial produziu um sucesso estelar para a Tate Modern nos anos 2000. Mas o sucesso do recém-descoberto empreendedorismo dos principais museus de Londres, e sua capacidade de atrair quantidades enormes de visitantes internacionais, oculta o fato de que o mudou muito pouco o modo como os museus pensam os seus públicos. Os públicos podem ser pensados agora como clientes ou consumidores cuja experiência da visita tende a viabilizar-se ou aperfeiçoar-se por meio de programas adicionais, mas eles não são considerados enquanto fontes de autoridade cultural ou geradores de valor cultural. O questionamento da autoridade cultural do museu, baseado na pressuposição de que seu lugar na esfera pública implica uma política de representação, tem a intenção de desafiá-la, assim como evidenciar os discursos e representações especificamente modernistas nas práticas profissionais do museu de arte.

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Referências

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(A versão consultada pelos autores não consta na bibliografia)

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[1] A expressão original, audience, foi traduzida ao longo do texto pelo termo público, pois entende-se que, no Brasil, a palavra audiência possui uma conotação comercial, como no caso da conhecida “guerra por audiência” dos programas televisivos. Já as discussões a respeito dos frequentadores dos equipamentos culturais optam pelo uso do termo público. Cabe ressaltar, ainda, que a palavra audience não corresponde a uma escolha exclusiva de Dewdney e Walsh, já que ela é amplamente utilizada no inglês britânico para fazer referência aos visitantes de equipamentos culturais. No web-site da Engage, a maior organização privada dedicada ao ensino das artes visuais e à formação de mediadores no Reino Unido, pode-se encontrar a seguinte frase: “Gallery education works with gallery visitors and with specific audience groups such as families, disabled people, young people, older people or early years groups, and with the wider public.” Se Dewdney e Walsh fizeram uso de um termo corriqueiro na língua inglesa, um termo com o mesmo caráter deve ser empregado em português e, neste caso, o termo público mostra-se mais apropriado. (N. da T.)

[2] No texto original o termo utilizado foi engagement. Uma palavra que pode ser traduzida por envolvimento ou comprometimento. Aliás, uma palavra tão flexível que aparece nos trincos de banheiros públicos. Quando giramos o cadeado a palavra engaged aparece do lado de fora, indicando que a cabine está ocupada. A mesma palavra também significa noivado. Quando um casal se torna engaged, significa que eles estão comprometidos com um casamento próximo. No campo da mediação, este termo aparece com bastante frequência, na maioria das vezes, referindo-se ao que precisa ser feito para que o museu se torne mais engaging ou propício ao envolvimento e à participação. Enquanto o museu não se torna esse lugar convidativo, busca-se constantemente formar um público que seja capaz de engage com as obras. Não por acaso, engage também é o titulo de uma das publicações de referência no campo da mediação no Reino Unido, aludida na nota anterior. A escolha por traduzir o termo engage por participação justifica-se pelo amplo uso do último nas discussões brasileiras, fazendo crer que refletem preocupações equivalentes nos cenários britânico e brasileiro. (N. da T.)

[3] A palavra britanicidade consta do dicionário Houaiss. Ainda assim, certas ocorrências em português adaptam o termo para britanidade, por soar mais familiar ao idioma. (N. da T.)

[4] Nota-se a opção pelo uso da palavra encontro para designar uma situação comumente identificada pelo termo visita. Aqui o protagonismo é deslocado. Ao longo do texto, fica claro que a escolha por encontro (que também dá nome ao programa como um todo) permite reconsiderar a hierarquia de relações. Trata-se de conceber um cenário em que não apenas o visitante dirige-se ao museu para visitá-lo e apreender os conhecimentos nele disponíveis, denotando, no reverso, a possibilidade de um encontro em que a instituição também é confrontada com esse visitante, suas atitudes e seus repertórios. (N. da T.)

[5] Trecho extraído do livro Reagregando o social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede, traduzido por Gilson César Cardoso de Sousa, (Salvador, Edufba, 2012; São Paulo, Edusc, 2012). Em inglês o livro de Bruno Latour foi publicado sob o título Reassembling the social: An introduction to Actor Network Theory (Oxford, Oxford University Press, 2007). (N. da T.)

[6] No Reino Unido, a palavra experience está sendo cada vez mais utilizada em associação às funções do orientador de público. Essa função, antes designada por gallery assistant, passou a ser chamada de visitor assistant, evidenciando a inversão de prioridades. Na tradução, perde-se uma parte do que significa a existência de um experience manager, aqui traduzido por orientador de público. (N.da T.)

[7] Trecho retirado do livro Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, traduzido por Sergio Paulo Rouanet (São Paulo, Braziliense, 3 Ed., 1987). Na versão original do texto não consta a referência para a edição consultada pelos autores. (N. da T.)

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Numa encruzilhada de quatro discursos Mediação e educação na documenta 12: entre Afirmação, Reprodução, Desconstrução e Transformação

 

 

Autora: Carmen Mörsch

Tradução: Mônica Hoff

Revisão técnica: Diogo de Moraes

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Numa encruzilhada de quatro discursos[1]

Mediação e educação na documenta 12: entre Afirmação, Reprodução, Desconstrução e Transformação[2]

 

Mediação e educação em museus (Kunstvermittlung[3]) não são nem um título profissional registrado nem termos irrevogavelmente definidos[4] - na verdade, ultimamente, eles vêm sendo usados de forma estratégica. Neste volume[5], mediação e educação em museus representam a prática de convidar os diferentes públicos a usarem a arte e suas instituições  para promoverem processos educativos através de sua análise e exploração, sua desconstrução e, talvez, mudança; e para provocar formas de desenvolver estes processos em outros contextos. Portanto, esta publicação se inscreve especificamente nos quatro discursos institucionais da mediação e educação em museus.

 

Quatro discursos da mediação e da educação em museus vistos desde a perspectiva das instituições

Atualmente, a perspectiva institucional possibilita uma diferenciação entre quatro distintos discursos sobre mediação e educação em museus. O primeiro, que prevalece e é mais dominante, é o discurso AFIRMATIVO. Ele atribui à mediação e à educação em museus a função de comunicação externa da missão do museu de acordo com os padrões do ICOM[6] - coleção, pesquisa, preservação, exposição e promoção do patrimônio cultural. Aqui, a arte é entendida como um campo especializado que diz respeito, principalmente, a um público de expertos. As práticas mais frequentemente associadas a este discurso são palestras e outros eventos relacionados como sessões de filme, visitas guiadas por professores e publicações. Elas são idealizadas por especialistas autorizados institucionalmente, que se dirigem a uma esfera pública já interessada, auto-motivada e especializada no campo.

Eu gostaria de denominar o segundo, igualmente um discurso dominante, como REPRODUTIVO. A mediação e a educação em museus assumem a função de educar o público de amanhã e, no caso de indivíduos que não vêm por vontade própria, de encontrar meios de introduzi-los à arte.

Deste modo, enquanto exposições e museus são considerados instituições que proporcionam acesso a um importante patrimônio cultural, ainda existem barreiras simbólicas que o público deve superar para poder aceder a estas instituições. De acordo com este discurso, deve ser concedido acesso a este patrimônio a um público amplo, e seus temores sobre visitar museus devem ser reduzidos. Práticas relacionadas a este discurso são, por exemplo, oficinas para grupos escolares, assim como programas para professores, crianças e famílias, ou serviços para pessoas com necessidades especiais,[7] além de eventos que chamem público em larga escala, como as “Noites em Museus” ou o “Dia Nacional do Museu”. Como regra geral, tais eventos e programas são concebidos por pessoas que têm, no mínimo, uma experiência básica com pedagogia, bem como pelos educadores e mediadores do museu.

O terceiro discurso, o DESCONSTRUTIVO, se encontra mais raramente. Ele está intimamente ligado à museologia crítica e seu particular desenvolvimento a partir da década de 1960. Aqui, o objetivo da mediação e da educação em museus é examinar criticamente, junto aos seus públicos, o museu e a arte, bem como os processos educativos e canônicos que têm lugar dentro deste contexto. De acordo com suas dimensões disciplinadoras e civilizatórias, os museus e espaços de exposição são entendidos, em primeira instância, como mecanismos que produzem distinção/exclusão e constroem uma verdade. Além disso, o potencial inerentemente desconstrutivo da arte é reconhecido. Ao evidenciar traços comuns às estratégias artísticas, este paradigma de mediação e educação em museus é concebido como “partindo da arte”. As práticas relacionadas a este discurso são, por exemplo, intervenções nas exposições  feitas por e/ou com artistas e educadores/mediadores que compartilham tais ideias; em que a participação do público pode ser solicitada ou não. Nós também encontramos programas destinados a grupos identificados como excluídos ou discriminados pela instituição. Portanto, enquanto os programas influenciados por este discurso são motivados por uma chamada à crítica institucional, eles tomam distância do discurso reprodutivo demasiado deliberado acerca destes grupos, classificando-o como paternalismo unidirecional. O discurso desconstrutivo também pode se articular na forma de visitas guiadas, desde que tenham a intenção de criticar a natureza  autorizada das instituições, relativizá-la e torná-la visível como uma voz entre muitas outras.

O quarto, um discurso ainda mais incomum, é o TRANSFORMADOR. Aqui, a mediação e a educação em museus assumem a tarefa de expandir a instituição expositiva e constituí-la politicamente como um agente de mudança social. Museus e espaços de exposição são entendidos como organizações modificáveis, nas quais o imperativo é menos a incorporação de determinados segmentos de público e mais a introdução das instituições - devido ao seu longo isolamento e déficits auto-referenciais - ao mundo ao redor, isto é, ao meio local.[8] O discurso transformador questiona, entre outras coisas, até que ponto a participação a longo prazo de diversas esferas públicas é necessária para sustentar a instituição - não no sentido quantitativo, mas como um caminho para satisfazer as demandas de uma sociedade baseada no conhecimento [knowledge-based society][9] e seus pontos de vista passageiros, questionáveis e restritos acerca do conhecimento especializado. Práticas relacionadas a este discurso atuam contra distinções hierárquicas ou de categorização entre curadoria  e mediação e educação em museus. Nesta prática, mediadoras e mediadores e o público não apenas trabalham juntos para desvelar os mecanismos institucionais, como também para remodelá-los e expandi-los. Isto engloba projetos destinados a uma variedade de grupos de interesses, que são levados a cabo independentemente dos programas expositivos; ou exposições que são concebidas especificamente pelo público ou por agentes sociais específicos.[10]

Os quatro discursos não devem ser considerados, em termos de distintos níveis de desenvolvimento, de acordo com categorias hierárquicas ou histórico-cronológicas estritas. Na prática, várias versões destes discursos operam simultaneamente na mediação e na educação em museus. Deste modo, não há prática desconstrutiva ou transformadora que não evidencie, de um jeito ou de outro, elementos afirmativos ou reprodutivos. Por outra parte, inúmeras manifestações dos discursos afirmativo e reprodutivo, dominantes atualmente, não apresentam nenhum traço de qualquer dimensão transformadora ou desconstrutiva. E não se pode negar a regra de que a tensão entre a educação/mediação e a instituição aumenta quando os discursos desconstrutivos e transformadores ganham preponderância.[11]

Além disso, cada um dos quatro discursos carrega os seus respectivos conceitos de educação, ou seja, o que considera que a educação represente, como ela funciona e a quem se dirige. No caso dos discursos afirmativos e reprodutivos, professores e seus alunos têm uma posição estática e os temas educativos são pré-determinados.[12] Ambos os discursos não se engajam em uma investigação auto-crítica das concepções educativas transmitidas, pois eles não examinam suas estruturas de poder. No entanto, eles têm outras maneiras de questionar o “[para] quê” e o “[para] quem” da educação. No discurso afirmativo, programas educativos são predominantemente adaptados a um público especializado,[13] os praticantes [players] do campo da arte. Os métodos aplicados no trabalho educativo - raramente denominados como tal - se valem dos cânones do campo acadêmico. O discurso reprodutivo, por outra parte, se concentra numa perspectiva institucional dos excluídos, isto é, membros ausentes das esferas públicas. Deste modo, é dada uma atenção especial, no sentido de dirigir-se, ao “público de amanhã” (público futuro). Diante disso, métodos de ensino através do jogo são tomados emprestado das escolas primárias e jardins de infância, assim como programas institucionais de recreação para crianças e jovens. Possivelmente, uma boa parte da literatura disponível sobre metodologia museológica e mediação e educação em museus estejam inscritas neste discurso[14].

Os discursos desconstrutivo e transformador incorporam um entendimento auto-crítico de educação. Isto significa que a educação ela mesma se torna sujeito de desconstrução e transformação. As relações de poder inscritas em seus conteúdos, endereçamentos e métodos são analisadas criticamente[15], e esta crítica é incorporada de volta no trabalho educativo com o público. Nesta prática de trabalho, aqueles que ensinam e aqueles que são ensinados intercambiam posições; o processo educativo é compreendido como um ato recíproco, embora seja estruturado pelas relações de poder já observadas. Ainda que não existam destinatários pré-determinados segundo esta lógica, já que mudam de acordo com o contexto e situação, existe certamente um raciocínio inquisitivo: o que se solicita e espera é uma abertura à abordagem e trabalho críticos com a arte e suas instituições. Um público que recusa cumprir com estas expectativas e que insiste, assim, no trabalho orientado para a transmissão de informações evade dos objetivos educativos inerentes nestes discursos: o desenvolvimento da consciência crítica, do agenciamento político, e do auto-empoderamento.[16] Dentro do contexto do discurso desconstrutivo, a ênfase é dada ao desenvolvimento da capacidade analítica. Contudo, isto não implica necessariamente uma obrigação em mudar a instituição.[17] Num entendimento desconstrutivo da educação, o engajamento crítico com a arte e suas instituições tem lugar numa esfera relativamente protegida, na qual ações são testadas sob circunstâncias complexas, contribuindo assim para o agenciamento político, a consciência crítica e a invenção.[18] Deste modo, métodos que se baseiam ou utilizam estratégias artísticas estão cada vez mais presentes. Por outra parte, o discurso transformador vê a mudança institucional como um objetivo indissociável do fomento à consciência crítica e ao auto-empoderamento. Assim, para além das estratégias já mencionadas, as metodologias incorporam aspectos de ativismo.

Ao diferenciar os quatro discursos da educação e mediação em museus ancorados no contexto institucional, proponho um quadro orientador que pode revelar-se útil em face do boom que estas práticas estão experimentando atualmente. Devido à revisão cultural e política da educação em museus, na Europa, a maioria dos diretores artísticos enfrentaram enorme pressão para implementar programas educativos em suas instituições. Assim, a educação em museus frequentemente se torna um fator legitimador para justificar a existência de instituições financiadas com fundos públicos, pois está associada ao marketing e ao aumento quantitativo de público bem como à programação pouco complexa e orientada para eventos e o público amplo.[19] Portanto, atores no campo da arte vêem esta revisão (ou revalorização) como uma confirmação de uma desvalorização prévia: como um sintoma da ignorância dos políticos com relação à natureza da produção artística.

Além de um ceticismo compreensível relativo ao “imperativo da educação em museus”, cresce a insatisfação dentro das instituições com relação à sua função social. Alguns  diretores de museus  e instituições de arte, especialmente aqueles que vêem a si mesmos como curadores críticos, desejam ir mais além de seu papel elitista - a consideram anacrônica e buscam expandir e mudar sua função. Aqui, a mediação e a educação em museus, através de seus potenciais desconstrutivos e transformadores, prometem um benefício qualitativo e a criação de significado. Desta maneira, os curadores se voltam para a mediação e a educação em museus com um interesse maior e genuíno, com altas expectativas, embora frequentemente com pouca experiência.

O conhecimento sobre um campo que tem sido excluído e marginalizado por décadas não pode  ser - apesar da mudança nas áreas de interesse e conjuntura - apropriado em um curto espaço de tempo, e junto a outras atividades, para ser usado para fins individuais. No melhor dos casos, os curadores se dão conta de sua deficiência com relação a isto e comissionam especialistas para desenvolverem o projeto de educação e mediação.[20] No entanto, em razão de a mediação e a educação em museus compreendidas como um campo autônomo de conhecimento ser um tema novo para eles, e também porque eles têm seus próprios desejos e ideias sobre educação e mediação e, acima de tudo, porque elas são, na prática, um esforço colaborativo ganhando lugar dentro do terreno da curadoria, modificando-o e possivelmente transformando-o, os curadores também querem dar sua opinião sobre a mediação e o trabalho educativo. Isto produz novas dinâmicas que interrompem a tradicional ordem hierárquica do trabalho curatorial e da educação em museus. Certamente, algumas análises presentes em documenta 12 Education II se debruçam sobre o trabalho entre estes interesses conflitantes.

 

A mediação e a educação em museus como prática crítica: bases lógicas

Em novembro de 2006, quando Ulrich Schôtker[21] e eu revisamos as inscrições para o trabalho educativo na documenta 12, nos demos conta que menos de 5% eram de interessados homens. Não achamos supreendente, uma vez que é um fato comum que principalmente as mulheres se sintam atraídas por e para esta prática. Mas a educação em museus não tem sido um domínio feminino desde o início. Em museus ingleses e franceses do século XIX e começo do século XX, se apreciava muito a aprendizagem em museus a partir de seus objetivos e imagens: era uma iniciativa em nome da identidade nacional cujos resultados educativos tinham o objetivo de melhorar a qualidade dos bens nacionais produzidos no contexto do conflito colonial.[22] Um discurso de gênero sobre exclusão e acesso já estava inscrito na fundação dos museus. “A multidão” ou o povo no museu foi desejada e temida pelas instituições e, neste sentido, foi construída como [uma prática] feminina. Assim, encontramos passagens nos registros das reuniões de conselho da National Gallery de Londres que discutiam a presença de mulheres proletárias no museu que, buscando refugiarem-se da chuva para amamentar seus filhos, entravam com a roupa molhada podendo assim danificar as obras de arte.[23] O caminho para civilizar o “povo” está no contato com artefatos culturais expostos no museu, como enunciou Matthew Arnold.[24] Ao mesmo tempo, a proteção aos artefatos culturais exigia que o acesso a eles fosse restringido.[25]

Perto do fim do século XIX, as primeiras mulheres a trabalharem como educadoras em museus e  galerias foram mulheres brancas e de classe média. No discurso sobre a “comunhão do trabalho”,  a divisão do trabalho de acordo com os desígnios de Deus ou da natureza,[26] a filantropia e o trabalho educativo eram um caminho socialmente tolerável para participarem da vida pública. Além disso, havia um crescente número de professoras no campo do design, para lidar com as chamadas artes decorativas e aplicadas, atividades também aceitas socialmente. Ter bom “gosto” pertencia ao âmbito do conhecimento informal, cujas regras eram geradas e transmitidas por mulheres através da produção e do consumo.

Este é o período em que os discursos sobre a educação da classe trabalhadora e a civilização de grupos indígenas nas colônias convergem em virtude de (e estabelecem) uma noção classe-média de cultura. Uma teoria popular da época sustenta que distintos grupos da população da Terra encarnaram em diferentes períodos da humanidade respectivamente, e que a fase de desenvolvimento dos grupos indígenas e da classe trabalhadora determinaram seu “status” infantil. [27] Efetivamente, a educação foi também associada às crianças no contexto da educação para adultos da classe trabalhadora e caiu, portanto, na esfera da reprodução feminina. Por outra parte, programas educativos para “adultos de verdade”, concebidos por especialistas e destinados respectivamente a um público culto, de classe média, europeu, seguiam sendo uma ocupação masculina.

Desde 1945,[28] a educação em museus na Alemanha vem sendo desenvolvida como um campo feminizado e, neste sentido, uma esfera de trabalho desvalorizada, pela suspeita de sua aparente simplificação dos fatos científicos e cumplicidade com os públicos. A maioria das acadêmicas e pesquisadoras que se dedicam a este campo estão em uma primeira fase de suas carreiras, ou suas carreiras vêm sendo prejudicadas por uma violação estrutural. Este estatuto desvalorizado tem refreado a formação de teorias no campo da mediação e da educação em museus, por mais que se coloque no caminho do desenvolvimento de um conceito profissional e discussões sobre critérios pertinentes próprios do campo.[29] Portanto, a dupla dificuldade da educação em museus e da mediação, desde uma história do discurso a partir de características femininas e um entendimento de cultura e educação marcado pelo colonialismo[30], gera a demanda de que a prática e a teorização futuras sejam concebidas como projetos orientados criticamente em termos feministas e antirracistas radicais.

Desde o fim dos anos 1990, aqueles que tomam as decisões institucionais e político-culturais têm mostrado um maior interesse na educação em museus. Aqui, as políticas culturais do New Labour[31] na Inglaterra têm um papel precursor, provendo um suporte financeiro substancial para as “indústrias criativas” e a “arte para a integração social[32]”, e fazendo com que o financiamento público das instituições de arte estejam condicionados à apresentação de programas educativos abrangentes.[33] A mediação e a educação em museus ganharam, assim, relevância no mercado de trabalho e nas políticas educacionais. Isto gerou um precedente na Europa, percebido no crescente protagonismo masculino no campo, tanto em termos de ação como de reflexão.[34] Este impulso em capital simbólico e (até certo ponto) financeiro é inegável e definitivamente valioso para o desenvolvimento do campo de trabalho.[35] No entanto, ele deveria ser visto com ambivalência. Por um lado, são ambos causa e efeito de um discurso autônomo gerado por intenso questionamento nos campos acadêmicos e ativistas do agenciamento político e do conhecimento. Por outro, esta crescente apreciação está atreladada a uma tendência diferente. Conforme já foi elucidado por outros autores,[36] existe uma tendência visível em direção à apropriação neoliberal do conceito de criatividade e, assim, dos efeitos educativos atribuídos à educação em museus. Não é coincidência que recaiu justo sobre o governo de Tony Blair (re)descobrir a educação cultural como um fator de desenvolvimento econômico e incentivo à coesão social.

Em The Gendering of Art Education, publicado em 2001, o teórico britânico Pen Dalton sinaliza uma crescente retórica de virtudes tidas como femininas como, por exemplo, flexibilidade, criatividade, comunicação, e trabalho em equipe, reforçando sua qualidade como um valioso “produto de competências” da educação em arte, mas sem examinar de forma crítica o fato de que este potencial é apropriado por um sistema financeiro desregulado. “Os objetivos das cinco habilidades chaves no Camberwell College of Art... são as mesmas promovidas pela Confederação de Indústrias Britânicas (CBI, sigla em inglês): iniciativa, auto-motivação, criatividade, comunicação e trabalho em equipe.[37] Portanto, estas são as habilidades cruciais que os graduados em arte necessitam para sobreviver dentro de um mercado de trabalho flexível. A contínua precarização das condições de trabalho na educação em museus e sua marginalização econômica nas instituições de arte provam que a revalorização simbólica atual não reverte a feminização do campo.[38] Esta ambivalência traz mais um argumento para a prática crítica da educação em museus - isto é, crítica em relação aos discursos econômicos, governamentais e neoliberais. E, finalmente, este esforço está baseado, como mencionei anteriormente, num entendimento específico de educação: se o desenvolvimento do agenciamento político e da consciência crítica deve ser considerado uma reivindicação educativa, então torna-se claro que devem ser incorporados como elementos paradigmáticos a fim de estruturar uma prática institucional e constitutiva de educação.

 

A mediação e a educação em museus como prática crítica: emergência e critérios

 

De 1960 a 1980, as democracias da Europa Ocidental implementaram reformas educacionais que buscaram revisar a função social dos museus e exposições. Em Distinction: A Social Critique of the Judgement of Taste,[39] o sociólogo francês Pierre Bourdieu apresenta uma análise da função das instituições culturais como “mecanismos sociais de distinção” e das inclusões e exclusões que geram. Dado que a exclusão da maioria da população destas instituições provou não ser inevitável, mas sim o produto de políticas econômicas e educacionais, a demanda por uma “cultura para todos”[40] se tornou ainda mais urgente.

Além da reivindicação por igualdade de acesso à educação nos sistemas democráticos, também se argumentou em favor da acessibilidade a instituições financiadas com fundos públicos para todos os contribuintes.[41] Posteriormente, tornou-se essencial para as instituições culturais refletirem sobre seus próprios mecanismos de exclusão e buscarem caminhos para romper com eles, implementando, por exemplo, serviços educativos. As correntes britânicas e norte-americanas orientadas a estéticas feministas, marxistas, queer e pós-coloniais (Kunstwissenschaft) e os estudos culturais foram e seguem sendo influentes para a construção de uma educação crítica em museus. Desde a década de 1970, os campos relacionados aos estudos culturais e à nova história da arte, e ultimamente a cultura visual e a análise cultural, investigam as dinâmicas de poder que estão em jogo na informação apresentada como canônica pelos museus, e a maneira como isto é comunicado. A ordenação das peças e objetos e, também, a configuração espacial das salas do museu e seus respectivos códigos de comportamento devem ser lidos como textos a serem analisados e desconstruídos, de acordo com a noção de discurso de Michel Foucault[42]. Suas economias, seus códigos de gênero e “etinicidade”, bem como as condições históricas e sociais de seu surgimento são analisados. De acordo com este ponto de vista, exposições e suas instituições geram - através de uma interação de seus antecedentes históricos, normas comportamentais e plataforma curatorial - ritos ou os chamados “rituais civilizatórios” que induzem os sujeitos a conformarem-se, bem como narrativas quase míticas que se mantêm fiéis a uma historiografia hegemônica, patriarcal e colonial.

Nos anos de 1980, estas leituras convergiram no campo da Nova Museologia[43] por sua intenção de incorporar as posições do sujeito e os discursos até então excluídos e produzir as chamadas “contranarrativas”,[44] transformando, assim, o museu num lugar de interação e intercâmbio. As exposições deixariam de se debruçar sobre, para serem concebidas com os produtores de cultura - a cultura é entendida, aqui, como um termo que abrange os objetos, imagens e atividades cotidianas. Logo, fica claro que a reivindicação articulada nos contextos norte-americano e europeu e a politização crítica da “cultura” nos estudos culturais derivam da luta de grupos feministas e imigrantes por direitos civis para acesso e visibilidade dentro do campo cultural. Ambos estavam inextricavelmente conectados à educação de adultos  e ao trabalho de educação informal. Como resultado, emergiu em alguma instituições, ou pelo menos entre alguns profissionais, uma abordagem ligada a uma pedagogia emancipadora que apresenta a educação em museus como uma leitura crítica das instituições.[45] A colaboração deliberada com grupos marginalizados (classificados como tal pelas instituições) foi pretendida com o intuito de fazer com que estas vozes passassem a ser ouvidas nos museus, e mais: idealmente, os museus deveriam transformar-se em protagonistas ativos de tais lutas políticas.

Ao mesmo tempo, debates envolvendo o conteúdo emancipador destas experiências foram lançados, simultaneamente. Em particular, uma perspectiva do feminismo negro identificou a dimensão paternalista do gesto de “dar a voz” associada a instituições “brancas” de classe-média. Este debate foi, também, retomado nos países de língua alemã no início dos anos de 1990.[46] Há três ideias gerais com relação a esta discussão, que contribuíram para a diferenciação de critérios usados para calcular uma prática crítica de educação em museus: a primeira é que componentes emancipatórios e paternalistas em arte e em projetos de educação em museus são negociados de acordo com a noção de participação; a segunda diz respeito às noções de política e esfera pública ali articuladas; e a terceira, à instrumentalização e/ou regulação do empoderamento dos públicos participantes.

Outra vertente relevante, embora distinta, em termos de teoria e prática, contribui com a noção de “educação em museus como prática artística” [Künstlerische Kunstvermittlung] e “educação em museus como desconstrução”. [47] Esta abordagem, que veio à tona no debate acerca da educação da arte na Alemanha desde meados da década de 1990, busca orientar a educação em museus, metódica e estruturalmente, em direção ao seu objeto. Para a “educação em museus como extensão da arte”[48] é essencial evitar o fechamento teórico reconhecendo, ao invés disso, o caratér inconcluso dos processos de interpretação na discussão em arte e sobre obras de arte. Deste modo, falar sobre arte é compreendido como o manejo inevitável, produtivo e forçosamente inconcluso de uma falta, um desejo.[49] Fracassar, gaguejar e ter “interrupções na fala” (speech-gaps)[50] na confrontação com os limites da linguagem e da compreensão, e a consequente desestabilização do sujeito,  são considerados como constitutivos da aprendizagem e dos processos educativos.[51] Em conformidade a isto, há uma preferência por métodos com um caráter artístico performativo, que sinalizam para uma abertura em termos de semiose e induzem à auto-reflexão na situação pedagógica. Tais abordagens buscam possíveis interconexões com esferas supostamente fora das instituições, enfatizando, assim, momentos potencialmente sociais e disruptivos e desafiando a “normallidade” no coração da arte e da educação em museus.

Então, permitam-nos resumir alguns dos critérios para avaliar a educação crítica em museus, cujas abordagens foram desenvolvidas nos últimos trinta anos em campos tão diversos como a pedagogia crítica,  a teoria construtivista de aprendizagem, a psicanálise, teoria da performatividade, desconstrução, pós-estruturalismo, estudos culturais, e teorias e práticas pós-colonial, feminista e queer.

Uma educação crítica em museus reúne, em particular, elementos dos discursos desconstrutivo e transformador; transmite o conhecimento tal como está representado nas exposições e instituições e examina as funções por eles estabelecidas enquanto torna visível sua própria interpretação e posição. Deste modo, dá especial importância ao provimento de ferramentas conceituais necessárias para apropriar-se do conhecimento e adota uma postura “reflexiva” com relação à situação educativa, ao invés de contar com “aptidões individuais” e o esforço para a  “auto-realização” (satisfação) por parte dos públicos. Enquanto busca ampliar seus públicos, não transmite a ilusão de que a aprendizagem no espaço expositivo está apenas conectada ao jogo e à recreação.[52] Faz questão de incorporar os conhecimentos específicos daqueles que participam da prática de mediação e educação em museus, assim como dos visitantes e das educadoras e educadores. Reconhece o caráter construtivista dos processos de aprendizagem, assim como o potencial enriquecedor das lacunas encontradas na linguagem e na compreensão.[53]

O fato de o conhecimento de visitantes e mediadores/educadores ser considerado de forma equânime situa esta prática para além da mera prestação de serviço: a mediação e a educação crítica em museus opta pela controvérsia. Sua postura anti-racista e anti-sexista substituem uma pretensa objetividade e diplomacia. Em termos teóricos e metodológicos, isto funciona nos moldes de uma crítica da dominação. Atribui-se a tarefa de não deixar nenhum assunto sem ser tratado, incluindo a produção, no contexto da instituição, de categorias de gênero, etinicidade ou classe, assim como a avaliação estrutural, material e simbólica da educação em museus. Analisa as funções da fala (autorizadas e não-autorizadas) e o uso de diferentes registros linguísticos no espaço de exposição.[54] Conjuntamente àqueles que participam da mediação e do trabalho educativo, esta posição crítica tenta gerar contranarrativas e, deste modo, afetar (disrupt) as narrativas dominantes da instituição.[55] Mas evita transformar estas contranarrativas em novas narrativas dominantes abastecidas por políticas de identidade.[56]

Os grupos destinatários não são considerados como subordinados às normativas institucionais, pelo contrário, o foco é direcionado às suas possibilidades de agenciamento político e intercâmbio de códigos no sentido de uma “prática da vida cotidiana”.[57] Também favorece uma leitura das normativas institucionais que, longe de ser concebida como estanque, deixa margem para trabalhar as lacunas, interstícios e contradições gerados pela configuração das salas e exposições dentro da instituição.[58]

Além disso, a mediação e educação crítica em museus aborda as maneiras como o mercado influencia a estrutura, a apresentação, a percepção e a recepção da arte e, assim, contraria a ilusão da classe-média de que a arte está descolada da economia, à qual está, na verdade, intimamente ligada. Considera o capital cultural e simbólico da arte e suas instituições como constituintes de processos de inclusão e exclusão no campo artístico. Ao mesmo tempo, reconhece e comunica o fato de que o capital simbólico dá origem a um desejo, e desenvolve maneiras estratégicas e sensíveis de apropriar-se deste capital. Busca transformar a instituição em um espaço no qual aqueles que não estão explicitamente no centro do mundo da arte possam produzir suas próprias articulações e representações. Neste sentido, conecta as  instituições com o lado de fora, com os contextos locais e geopolíticos. Deste modo, a complexidade deste campo provém da arte, o tema central no qual está fundamentado parte de seu repertório metodológico.

 

Educação e mediação na documenta de Kassel: uma breve história

A primeira documenta foi concebida como uma resposta direta às tentativas nacional-socialistas  de extermínio assumidas sob o estigma de “Arte Degenerada”, apresentando uma exposição que reabilitaria práticas previamente desvalorizadas na consciência pública. Em razão de o conteúdo educativo ter sido concebido para estar situado nas obras de arte e na maneira como estas estavam expostas, deixando as obras deliberadamente sem  explicação, tampouco com espaço para serem questionadas, a educação em museus tal qual é concebida na publicação documenta 12 Education [I e II] quase não teve papel na primeira documenta, sequer nas subsequentes.[59]

Bazon Brock interviu neste status quo com a concepção de “Besucherschule” [escola de visitantes], que ele implementou na documenta entre as edições 4 e 7.[60] Até hoje, seus esforços e as ações iniciadas por Joseph Beuys, por exemplo os 7000 Eichen [7000 carvalhos] e o escritório da Free International University  [Universidade Livre Internacional],[61] preponderam como referências dominantes para a educação em museus na Alemanha, embora, no que diz respeito a estas últimas ações, elas não estivessem diretamente envolvidas com a exposição. Considerando a feminização da educação em museus acima mencionada, não é de se estranhar que Brock e Beuys, como protagonistas do sexo masculino,  tenham sido capazes de sustentar uma presença histórica, uma vez que, apesar de suas diferenças, eles são a personificação do artista mestre solitário. Na verdade, suas abordagens não estavam preocupadas nem com o desenvolvimento de um discurso autônomo, nem com melhoria a longo prazo das condições estruturais da educação em museus.

Em 1987, quando Brock já não trabalhava mais para a documenta 8, a Universidade de Kassel entrou em cena para desenvolver o programa de mediação e educação como um serviço de visitas guiadas[62], centrada na transmissão de conhecimento sobre as obras de arte - seguindo as linhas de um discurso afirmativo - e direcionada a um público já existente. Esta concepção de educação em museus foi levada a cabo na documenta 9 também. Sendo assim, a formação dos mediadores e educadores de sala, ocorreu no contexto de seminários acadêmicos principalmente destinados à aquisição de conhecimento acerca dos trabalhos de arte. Na documenta 10, o serviço de visitas guiadas foi terceirizado e, então, convertido em atividade lucrativa cujo perfil com extenso programa orientado ao serviço combinava, acima de tudo, elementos afirmativos e reprodutivos.[63] Em concordância com o conceito curatorial proposto por Catherine David, diretora artística da décima edição da documenta, a formação de mediadores incluiu uma introdução a posturas e procedimentos artísticos e uma discussão acerca das referências teóricas que envolveram o conceito daquela exposição.

Na documenta 11, a educação em museus reivindicou a si mesma como uma “interrupção” e uma “contra-canonização”.[64] No entanto, esta reivindicação não incorporou um engajamento crítico com relação à exposição. Na verdade, o diretor de educação da documenta 11 definiu a exposição como uma completa interrupção e um paradigma para o campo artístico. Assim, a educação não teria que adotar uma postura desconstrutiva, mas, sim, afirmativa com relação à exposição.[65] O serviço de visitas guiadas, identificado como o “programa educativo” da mostra, foi acompanhado por um “projeto educativo” complementar, concebido como um elemento transformador que buscou expandir as funções da instituição. Este projeto foi iniciado previamente e envolveu a seleção de bolsistas internacionais que acompanhariam o trabalho educativo desenvolvido na documenta concebendo suas atividades e, em alguns casos, desenvolvendo projetos por iniciativa própria.[66] Mais uma vez, a formação de mediadores, em concordância com a abordagem curatorial da documenta 10 foi, seguindo as linhas de uma espécie de crítica institucional canônica, engajando-se não apenas na discussão das obras, mas também na introdução, junto ao grupo de mediadoras e mediadores, de conceitos teóricos[67] relevantes para um entendimento da exposição e suas “plataformas”[68] prévias.

 

Educação e mediação na documenta 12: estrutura e formatos

Comparada às exposições anteriores, a educação na documenta 12 teve um ponto de partida mais forte,  pois foi considerada, em analogia à sua criação, como um dos componentes básicos daquela edição da exposição. O terceiro fio condutor da mostra - a pergunta curiosamente banal mas historicamente cheia de sentido “O que deve ser feito?” , bem como o postulado “Hoje, a educação estética parece oferecer um terceiro caminho entre a cruz (isto é, o didatismo e a academia) e a espada (o fetichismo mercantil),[69] concebido por Roger M. Buergel e Ruth Noack, respectivamente diretor artístico e curadora da Documenta 12, - levantou a questão da função educativa da arte dentro do debate curatorial.[70] Pela primeira vez na história da documenta, uma conferência de imprensa foi exclusivamente dedicada a discutir sobre mediação e educação em museus.[71] E foi, também, a primeira vez que a educação e a mediação foram tema de pesquisa[72] levada a cabo paralelamente a sua prática. Eu fui convidada a dirigir e desenvolver conceitualmente a pesquisa[73]. Então, foi criado um escritório para a educação. Ulrich Schötker assumiu a função de diretor de educação em tempo integral, e em razão dos limitados recursos financeiros disponíveis, apenas outros poucos membros da equipe foram contratados. Assim, o processo de revisão da mediação e da educação na documenta 12 provocou alguns efeitos em sua estrutura[74] - além do reconhecimento da necessidade de ter profissionais experientes em educação para trabalharem na mediação, tanto em termos organizacionais como conceituais.

Levando em conta alguns questionamentos assumidos em sua prática curatorial anterior à documenta,[75] o diretor artístico e a curadora tentaram enfatizar o caráter tranformador que a educação na documenta 12 poderia ter com relação à instituição. O Conselho Assessor da documenta 12 foi produto de suas iniciativas neste sentido.[76] O Conselho reuniu cerca de quarenta profissionais de Kassel atuantes em diferentes campos e disciplinas, que começaram suas atividades antes da inauguração da exposição, tendo como base os três fios condutores propostos na documenta 12, dos quais se valeram para desenvolver seus próprios projetos, realizados posteriormente, em paralelo à exposição, em diferentes lugares ao redor de Kassel. Além disso, o diretor artístico comissionou Sonja Parzefall para desenvolver e dirigir um projeto que envolveu grupos de escolares como mediadores na documenta 12. Em Inhabiting the World [Habitando o Mundo], cinquenta e quatro crianças de escolas de Kassel e arredores desenvolveram seus próprios modos de acessar a exposição, estabelecendo, no contexto das mediações, conversas e debates com os visitantes adultos. Um terceiro elemento transformador provocado pelo diretor artístico foi a documenta 12 - Halle, um espaço de exposição com entrada gratuita. Diariamente, este espaço abrigou uma série de atividades - de palestras, mesas redondas, oficinas, eventos e debates temáticos, sessões de filme, sessões de perguntas abertas à apresentações de projetos organizadas pelo Conselho Assessor, equipe de educação e documenta 12 magazines[77]. Documenta 12 - Halle também se transformou em um espaço para encontros informais, para realizar debates, ou simplesmente descansar.[78] Além dos formatos mencionados, propostos por Buergel e Noak, que prontamente desenvolveram uma dinâmica própria, estruturar o programa educativo também esteve a cargo do diretor de educação, da coordenadora de pesquisa e, finalmente, dos próprios mediadoras e mediadores. Mas sua margem de criação era limitada.  A principal restrição era a falta de financiamento para a educação, para contratações além do administrativo e sua infraestrutura - apenas o diretor de educação, o pessoal do escritório e a chefe de pesquisa eram empregados; mediadoras e mediadores eram pagos por hora e trabalhavam como autônomos (freelancers). Nas documentas anteriores, a educação não havia sido um elemento que gerasse despesa, mas uma fonte de receita, e a gestão do evento pensou que continuaria sendo assim na documenta 12.[79] Tornou-se, então, um fato consumado que, desta vez, a mediação, tão facilmente “vendável” como uma visita guiada (para a qual existe grande demanda), se mantivesse inevitavelmente como um elemento central. Como nas edições anteriores, as visitas guiadas não apenas cobriram seus próprios gastos, como foram também atividades geradoras de receita. Por conseguinte, todos os demais campos de ação do programa de educação tiveram que ser financiados através de fundos adicionais especificamente destinados para tal fim.[80] Um destes campos foi o extenso programa aushecken [Incubando Ideias][81], destinado a crianças e adolescentes em geral, de Kassel e de fora, e também aos públicos visitantes da documenta 12.

Incubando Ideias foi realizado ao longo dos 100 dias de exposição no Aue-Pavillion, o maior espaço, dentro da documenta, destinado às exposições temporárias. Alguns mediadoras e mediadores trabalharam na interface entre o Conselho Assessor e a exposição. Através de sua participação em diversos projetos, eventos informativos e mediações, em coordenação com os membros do Conselho Assessor e também com os usuários/participantes das atividades por eles propostas, os mediadoras e mediadores reinseriram tais atividades no contexto da exposição. Além das visitas guiadas, trinta e cinco mediadoras e mediadores realizaram projetos em colaboração com diferentes esferas públicas e grupos de interesse, que, originalmente, não fariam parte da exposição, mas que o grupo certamente considerou interessante pelas perspectivas específicas que manifestaram.[82]

Ulrich Schötker e eu concebemos o programa educativo da documenta 12 como um programa auto-reflexivo, uma prática crítica da exposição e da instituição. Fomos levados pelo desejo de contribuir para a formação, profissionalização e teorização da educação em museus de maneira desconstrutiva e transformadora. Esperávamos estabelecer um precedente de modo que as exposições seguintes da documenta, pós 2007, se tornassem campos experimentais. Assim, no futuro, seria inconcebível pensar a documenta sem considerar o âmbito da educação. E, por isso, seria realizada olhando para as especificidades, a complexidade, a autonomia relativa[83] e a interação com o contexto local com o mesmo nível de atenção que dirige à exposição. Mediadoras e mediadores foram selecionados de acordo com estes objetivos. Um importante critério foi a abertura ao questionamento e um interesse em expandir a prática. Estávamos também interessados em pessoas que entendiam a mediação e a educação em museus como uma intervenção independente, mais do que um serviço prestado. Igualmente, o interesse em experimentação metodológica, assim como a experiência prévia no trabalho de mediação, eram considerados uma vantagem. No final, selecionamos setenta pessoas entre tantos candidatos qualificados, tentando gerar diversidade com relação à experiência profissional, conhecimento de línguas, origens culturais, gênero e idade. Com esta postura pluralista, representada pela variedade de discursos - oriundos de diferentes disciplinas - e  posicionamentos, esperávamos negociar coletivamente a questão do lugar da voz/fala autorizada.[84]

A formação das mediadoras e mediadores começou em janeiro de 2007 e foi dividida em três módulos de vários dias, seguidos por uma fase intensiva.[85] A formação examinou posturas artísticas na documenta 12 e seus três fios condutores, com especial ênfase à discussão de posicionamentos, questões e métodos da educação em museus.[86]

Partindo dos conhecimentos (insights) adquiridos durante a formação,  mediadoras e mediadores desenvolveram suas próprias abordagens, tanto individualmente como em grupos, para contar e “mediar” a exposição.[87] Em vista da abordagem “reflexiva” da educação na documenta 12 e o contexto dos três fios condutores, esta parecia ser uma abordagem muito mais coerente do que nominar um conjunto de ideias e metodologias como “Programa Educativo da documenta 12”. Fundamentada precisamente sobre esta abordagem reflexiva, tornou-se essencial para mediadoras e mediadores tornar transparentes suas próprias abordagens e entendimentos de educação e mediação para os públicos, reconhecendo-lhe, deste modo, como sujeitos das “mediações”. Particularmente, deu-se preferência a iniciar debates ao invés de transmitir conhecimento autorizado na forma de monólogo.

 

Educação na documenta 12: conflitos

Estas decisões foram fundamentais e geraram tensões e contradições que determinariam o trabalho educativo durante a documenta 12, às quais se referem alguns artigos presentes na publicação documenta 12 Education II . O conflito mais evidente se originou no choque de expectativas - entre os mediadoras e mediadores que queriam fazer uma mediação crítica, e o público que tinha pago pela “visita guiada”, principalmente, sob a suposição de que iria obter orientação especializada: um serviço que forneceria tanta informação quanto fosse viável no menor espaço de tempo possível, conduzido por um mediador ou mediadora o mais irrepreensível, agradável e atraente possível. Deste modo, o conflito entre a “prática crítica” e o “serviço prestado” teve que ser constantemente renegociado - isto é, sempre e quando o nível de energia e as condições físicas das mediadoras e dos mediadores suportou.[88]

Além disso, o pluralismo presente na equipe foi também uma fonte de tensões. Os profissionais oriundos de disciplinas supostamente estranhas à arte experimentaram a necessidade de serem legitimados tanto dentro do grupo como durante as mediações. Aqueles cuja aparência física não correspondia às expectativas tradicionais do meio (mainstream) eram confrontados diariamente com comentários humilhantes, enquanto aqueles que tinham o alemão como segunda ou terceira língua tiveram que lidar com um racismo cotidiano. E, finalmente, a equipe de educação como um todo, dependendo de sua bagagem cultural, educação, atitude e planos futuros, criou e assumiu distintas posições e teve diferentes focos com relação ao seu trabalho na documenta 12. Aqui, encontramos uma gama de proposições e modos de agir: desde a satisfação causada pela transmissão de conhecimento autorizado sobre a exposição, da forma mais corriqueira possível, a um grupo supostamente difícil a ações propostas por mediadoras e mediadores em colaboração com grupos estranhos (para a documenta), criadas como intervenções performáticas, como também à defesa de posturas políticas frente aos grupos de colecionadores mais reacionários e agressivos. As mediadoras e mediadores deveriam detectar o material, as vantagens e desvantagens simbólicas e sociais destas abordagens nos variados contextos do departamento de educação, do programa para visitantes, das mediações, da administração e da direção artística da documenta, mas, acima de tudo, entre seus próprios colegas.

Devido aos diferentes entendimentos sobre mediação e educação em museus dentro da equipe, não foi possível, apesar das tentativas persistentes, chegar a uma base programática comum durante o período de formação. Nenhum “manifesto” foi escrito, pois para muitos membros do grupo isto condicionaria e muito a sua prática. Por outra parte, esta postura poderia ser vista como um sintoma das crescentes tendências neoliberais de individualização que enfraquecem a capacidade analítica de mediadoras e mediadores, e que impedem, consequentemente, a articulação de grupos auto-organizados.[89] O que teria sido uma alternativa? Pré-selecionar pessoas de acordo com suas atitudes e, então, selecionar aqueles que compartilhavam o mesmo ponto de vista do diretor de educação e a coordenadora de pesquisa? Dado que Ulrich Schötker e eu somos céticos com relação à consonância ideológica e não assumimos que haja uma única abordagem universalmente válida para uma exposição ou sua crítica, demos preferência e lugar à negociação de diversas perspectivas no que diz respeito ao contexto educativo da documenta 12. Na verdade, eu observei que as tendências individualistas eram muito menos predominantes que a formação de subgrupos com distintas abordagens programáticas e suas próprias concepções, e que os membros se apoiariam uns aos outros em seus trabalhos, ao mesmo tempo em que estavam numa luta de poder sobre sua definição.[90] Além disso, a mídia havia espalhado, e isso certamente chegou aos círculos de especialistas, que a educação na documenta 12 iria ser “diferente”, “experimental” ou “performativa”. Portanto, mediadoras e mediadores eram confrontados, muitas vezes, com expectativas frustradas, como foi o caso de estudantes de pedagogia da arte que esperavam por um movimento muito  mais experimental do que puderam perceber os participantes considerando o marco atual ou que as mediadoras e mediadores sentiram-se capazes de levar a cabo.[91] Mas o cenário era ainda mais complexo. A articulação transformadora e desconstrutiva reivindicada na concepção da exposição, a introdução de novos formatos educativos e estrutura para a educação na documenta 12 tiveram que ser equacionadas, por parte de mediadoras e mediadores, com o discurso reprodutivo dos gestores e o discurso afirmativo dos curadores. A gestão corporativa da documenta manteve uma postura aberta à educação e estava, portanto, interessada em uma nova versão da mesma. Na verdade, é inegável sua abertura para uma educação mais crítica e experimental. No entanto, eles tinham uma reivindicação com relação à educação, de acordo com seu discurso, mormente reprodutivo: visto desta perspectiva, o interesse era satisfazer tantos visitantes quanto fosse possível dispondo do mínimo de investimento para isso, proporcionando-lhes o acesso à mais completa informação sobre patrimônio cultural apresentado naquela edição e nas edições futuras da documenta.

O diretor artístico e a curadora também apoiaram de maneira substancial e, assim como a gestão da documenta, estavam interessados nas quatro dimensões (ou discursos) da educação em museus. Ao mesmo tempo, eles alimentaram a expectativa - nada surpreendente - de que a sua concepção de experiência estética seria transmitida pelo programa educativo da documenta 12. Em particular, isto se refere aos efeitos de sua decisão de não fornecer informação escrita dentro da exposição.[92] Desta forma, os visitantes deveriam ser encorajados a confiar em sua própria percepção no processo de “leitura” das obras de arte. Alguns públicos viram essa condição como um gesto autoritário.  O sentimento de que se estava frente a um enigma cultural, e que aqueles que possuíam a chave para desvendar seu mistério conscientemente restringiram acesso a ele, provocou raiva e reforçou a sensação de que se estava sendo instruído de uma maneira pouco informativa e pedante. Portanto, a situação exigia que mediadoras e mediadores se tornassem a única fonte autorizada de tão desejada informação,[93] o que tornou mais difícil ter tempo para analisar algumas obras em detalhe com os diferentes públicos e abordar noções de educação. Embora a proposta de uma educação crítica tenha proporcionado uma distância maior por parte das mediadoras e mediadores com relação aos aspectos conceituais da exposição, isso foi tomado algumas vezes pelos curadores, a despeito de sua abertura inquestionável, como uma afronta ao seu trabalho. Diante disso, eles se comprometeriam a fazer “intervenções de controle” nas atividades desenvolvidas pelo programa educativo, ou porque alguma informação lhes havia chegado através de outros canais ou porque, estando presentes, algo feito por um mediador ou uma mediadora lhes pareceu inapropriado.[94] A educação na documenta 12 estava na encruzilhada de quatro discursos da educação em museus e, por conta disso,  se enredou entre desejos e conflitos de interesses. É, por esta razão, um interessante assunto de pesquisa. O corpo de investigação presente na publicação documenta 12 Education II mostra o que acontece em sua prática cotidiana, e mais, o que pode acontecer quando os quatro discursos - afirmativo, reprodutivo, desconstrutivo e transformador - atravessam, simultaneamente, uma mesma instituição.

 

Mediação e educação na documenta 12: o projeto de pesquisa

Vinte e um educadores da documenta 12 se associaram ao projeto de pesquisa, o qual foi orientado à pesquisa-ação em equipe.  Aqui, a pesquisa em equipe se realiza em cooperação com os atores que participam do projeto de investigação.  As hipóteses de trabalho não são definidas unicamente pela coordenação de pesquisa nem encomendadas a um grupo de pesquisadores externos, mas trabalhadas e desenvolvidas por membros da própria equipe de investigação[95]. Cada um dos indivíduos envolvidos tem sua própria perspectiva e a traz para compor o processo de investigação[96], rejeitando assim a ideia de produção de conhecimento objetivo. A meta é entrelaçar pesquisa e desenvolvimento - analisar e teorizar a prática visando levar o conhecimento gerado no processo a uma prática futura.

Durante a documenta 12, o grupo de pesquisa se encontrou por três a quatros horas por semana com a coordenadora de pesquisa e, quando necessário, também em encontros individuais adicionais. No período inicial da pesquisa, compartilharam reflexões sobre acontecimentos diários que se cristalizaram em questões sólidas de investigação relacionadas à mediação e à educação em museus. Aqui estão algumas áreas nas quais os educadores se focaram no contexto deste projeto:

Reflexões metodológicas, incluindo rotinas -  como são construídas, o que nelas é valioso, o que contêm e como romper com elas; experimentando com elementos lúdicos ou linguagens poéticas na abordagem da arte.

Mediação e educação em museus e normalização, incluindo atribuições de etinicidade, origem e gênero ao grupo de mediadores; conceitos educativos na documenta 12 e estudos críticos da branquitude [Critical Whiteness Studies]; mediação e educação em museus antirracista; mediação e educação em museus e ativismo queer.

Intervenções performativas, incluindo transmitir a ideia de performance através do aspecto performativo da mediação;  a implantação de vestuário e registros linguísticos, auto-reflexividade, e autenticidade ou a introdução de elementos de dança na mediação; o potencial para o conflito e a produtividade dos postulados curatoriais.

Em segundo lugar, foram discutidos e identificados os métodos pertinentes com os quais investigar e abordar os problemas acima mencionados relativos à prática diária da mediação e educação em museus. Na terceira parte do projeto, quando a pesquisa estava sendo efetivamente realizada, ela seria acompanhada por debate e reflexão dentro do grupo, resultando na sua eventual modificação, ou melhor, na incorporação de novos métodos e abordagens.  Depois de encerrada a documenta 12, o processo de escrita e conceitualização/planejamento da publicação continuou. Os textos foram sujeitos a repetidos processos de edição realizados com o assessoramento da coordenadora e do grupo de pesquisa. Em 2008, foram convocadas mais duas reuniões de dois dias cada[97], com o propósito de refletir, detalhar e definir todos os aspectos relevantes da presente publicação - a sequência de artigos, a estrutura do livro, título, seleção e posição das imagens, assim como os textos individuais que estavam sempre sendo reexaminados.

A decisão de participar no projeto de pesquisa significou uma pressão extra de trabalho e uma perda financeira para as mediadoras e mediadores, já que teriam que trocar até cinco horas de trabalho remunerado para realizar as atividades de pesquisa em caráter totalmente voluntário. Além dos conflitos acima descritos, isto implicava em expor-se a uma maior desestabilização, como também no envolvimento com uma abordagem auto-crítica estabelecida pelo grupo de pesquisa e empregando métodos experimentais em seu trabalho. E, por fim, isto não envolveu apenas reconhecer e analisar os supostos fracassos e dificuldade, mas também publicá-los.

Ao mesmo tempo, o projeto de pesquisa se mostrou produtivo para aqueles que nele se envolveram. De fato, era mais provável que o trabalho educativo incorporasse uma abordagem desconstrutiva no contexto desta pesquisa. Em muitos casos, as ferramentas conceituais utilizadas para examinar o tema de pesquisa foram logo adotadas como métodos das práticas de mediação e educação em museus. Ao mesmo tempo, o fórum de pesquisa realizado semanalmente gerou a oportunidade para a consulta e o apoio mútuo, assim como para a teorização coletiva e o desenvolvimento prático.[98] Isto foi particularmente valioso porque a diversidade de perspectivas individuais dentro do grupo de pesquisa transcendeu as fronteiras discursivas dentro da equipe, permitindo uma análise produtiva e menos temerosa das diversas estratégias de legitimação e as condições para um discurso soberano (ou menos soberano). Como resultado, foram realizados inúmeros encontros para que as pessoas que não haviam sido escutadas anteriormente agora colocassem em diálogo seus pontos de vista e suas perspectivas supostamente distintas sobre mediação e educação em museus.[99] Os efeitos provenientes destas interações reverberam em ensaios presentes na publicação documenta 12 Education II.[100]

Neste sentido, a pesquisa realizada na documental 12 foi inscrita nos discursos desconstrutivo e transformador da educação em museus. Isto tornou possível à educação desenvolver-se como um espaço de reflexão sobre processos educativos em instituições de arte para além dos limites das relações de poder. Isto sustentou a documenta como uma instituição com espaço adicional para trabalhar com a intensidade necessária - e possivelmente para transmitir impulsos significativos que estavam muito além de seu marco atual de ação.[101]

Os resultados do projeto de pesquisa documentados nesta publicação, como em qualquer construção, produzem uma ausência: neste caso, a dos públicos. Influenciados pelos estudos críticos de branquitude [Critical Whiteness Studies], que exigem que aqueles que estão em posição privilegiada revertam sobre si mesmos o olhar com que os outros são desejados e identificados[102], a pesquisa realizada na documenta 12 focou nos educadores e instituições nas quais estes operam. Isto a diferencia da maioria das pesquisas sobre educação cultural, que se concentram principalmente em público e impacto de mídia.[103]

Parece-me imperativo que o olhar esteja focado sobre a instituição e suas práticas, pois a educação tanto não pode situar-se fora do sistema da arte como tampouco da instituição artística[104]. Se sua auto-compreensão é essencialmente desconstrutiva, isto funciona provavelmente a partir de uma distância crítica de si mesma. No caso de uma compreensão mais transformadora, ela tenta mudar a instituição artística transformando-a em um lugar - para citar um colega - “que tem lógica própria, diferente da de um hospital, de uma escola, ou de uma prisão”.[105]

De qualquer forma, seja qual for o discurso tido como mais importante, ele só pode formular-se em relação a outras instituições. É por isso que é necessário investigar as práticas e circunstâncias que determinam esta relação - a fim de aprender sobre elas e poder moldar sua tomada de decisões no futuro.

A publicação do volume II do livro documenta 12 Education testemunha a esperança de que isto possa significar uma contribuição relevante para a teorização da mediação e da educação em museus e, assim, fornecer impulsos para o seu desenvolvimento.

 

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[1] O presente texto foi originalmente publicado com o título At a Crossroads of Four Discourses - documenta 12 Gallery Education in between Affirmation, Reproduction, Deconstruction, and Transformation. In: MÖRSCH, Carmen (Org.). Vol. 2. documenta 12 education II . between Criticam Practice and Visitor Services Results of a Research Project. Institute of Arte Education /Diaphanes, Zurich, Berlin, 2009, pp. 9-31. (N. da T.)

[2] Dedico este artigo ao meu mentor, Dr. Volker Volkholz, que faleceu na mesma semana em que finalizei o texto. Como sociólogo e economista, ele veio de outro contexto e, por isso, me ensinou coisas importantes como a pesquisa em equipe, a entender a formação de teorias como uma prática na luta por mais justiça, e manter-se  obstinada frente às limitações.

[3] Nesta versão do texto utilizamos o termo “mediação e educação em museus” indistintamente para traduzir os termos “Kunstvermittlung”, em alemão, que tanto é utilizado para designar arte-educação como mediação da arte, e  “gallery education”, em inglês, usado tanto para denominar a educação em museus e centros de arte como a mediação propriamente dita. Neste sentido, a combinação que propomos aqui aparece ao longo do texto para descrever as duas ações (mediação e educação museal), quando assim solicita a versão original, ou seja, quando busca descrever o trabalho ou ação educativa global (com suas mediações, estratégias e políticas) realizado em instituições culturais, museus, exposições e centros de arte. Por outra parte, quando o uso dos termos em alemão ou inglês se referem a uma ou outra prática, no caso mediação ou educação em museus, a tradução busca acompanhar tal raciocínio. No decorrer do processo de tradução, tomamos o máximo de cuidado para que o uso dos termos tivesse o mais ajustado possível, de acordo com o contexto apresentado na versão original e com a situação específica à qual estava vinculado. No contexto da documenta 12, e portanto do presente texto, “kunstvermittlung” e “gallery education” são utilizados para descrever o programa político e educativo de museus, instituições culturais e outros expaços expositivos, bem como a sua mediação e seus modos de trabalho. (N. da T.)

[4] Alexander Henschel está, atualmente, escrevendo sua dissertação no Institut für Kulturpolitik, Stiftung Universität Hildesheim, na qual busca uma definição teórica e operativa do(s) termo(s), com o título provisório: Der Begriff der Vermittlung im Rahmen von Kunst - zwischen politischen Implikationen und kunstspezifischen Anschlussmöglichkeiten [A noção de educação/mediação no contexto da arte - entre as implicações políticas e as possibilidades específicas da arte para promover a inclusão].

[5] A experiência, as investigações e o trabalho educativo desenvolvido na documenta 12 foram publicados no livro documenta 12 education, o qual foi dividido em dois volumes. O tomo 1 se dedicou a abordar a relação com os públicos e o desenvolvimento de métodos e estratégias de mediação e educação museal levados a cabo durante a documenta 12. Ver GULEC, Ayse; HUMME, Claudia; PAZERFALL, Sinja; SCHOTKER, Ulriche; e WIECZOREK, Wanda. (Org). documenta 12. Education I. Engaging Audiences, Opening Institutions. Methods and Strategies in Gallery Education at documenta 12. Institute of Arte Education /Diaphanes, Zurich, Berlin, 2009. O segundo tomo, no qual se insere este ensaio, foi organizado por Carmen Mörsch, tratou de registrar e abordar criticamente o processo de pesquisa realizado por e com mediadoras e mediadores da documenta 12. Ver documenta 12 education II. Between Criticam Practice and Visitor Services Results of a Research Project. Institute of Arte Education /Diaphanes, Zurich, Berlin, 2009. (N. da T.)

[6] Sigla de International Council of Museums [Conselho Internacional de Museus].

[7] Por exemplo, programas desenhados para pessoas com deficiência visual ou auditiva, dificuldade de locomoção, dificuldades de aprendizagem, bem como pessoas que recebem assistência psiquiátrica ou outro tipo de assistência social.

[8] A direção artística da documenta 12 reconheceu este imperativo ao iniciar o Conselho Assessor documenta 12.

[9] A noção de sociedade baseada no conhecimento (Knowledge-based society) tem sido analisada desde  uma perspectiva crítica sobre o neoliberalismo e  a governamentalidade. Ver, entre outras referências, HUFER, Klaus-Peter e KLEMM, Ulrich. Wissen Ohne Bildung? Auf dem Weg in die Lerngesellschaft des 21 [Conhecimento sem educação? Rumo à Sociedade Cognitiva do século 21]. Jahrhunderts, Neu-Ulm, 2002. No entanto, eu devo usar esta terminologia, pois a considero muito relevante para simplesmente deixá-la sob domínio das forças que estão sob crítica, já que questiona a hierarquização de diferentes saberes permitindo, assim, pelo menos mais um pensamento mais complexo sobre temas educativos. “Seria de importância decisiva selecionar o que serve e é capaz de tolerar ambivalências e incertezas, para decidir como acessar o conhecimento e lidar de forma lúdica com o não-conhecimento”. Disponível em http://www.wissensgesellschaft.org/ (Acesso em 27/10/2008) [Nossa Tradução]. Para uma discussão diferente deste tópico, ver We do not want any ‘market knowledge’! Call for a European mobilization against the Lisbon strategy in higher education and research. Disponível em http://eipcp.net/n/1233078852 (Acesso em 30/01/2009). [Não queremos nenhum ‘conhecimento de mercado’! Chamada para uma mobilização europeia contra a Estratégia de Lisboa para a pesquisa e o ensino superior].

[10] Por exemplo, o Offsite Projects da London’s Photographers Gallery de Londres. Ver http://photonet.org.uk, e STURM, Eva. Kunstvermittlung und Widerstand [Arte-educação/mediação e Resistência] em Auf dem Weg. Von der Museumpädagigik Zur Kust - und Kulturvermittlung [A caminho. Da educação em museus à arte e à mediação cultural], Schulheft 111, ed. Josef Seiter, Vienna, 2003, p. 44. Os projetos de educação e mediação da documenta 12 e o Conselho Assesor documenta 12 evidenciam uma direção semelhante, embora, como já mencionado, também possam evidenciar aspectos dos discursos afirmativo e reprodutivo.

[11] Ver MACHART, Oliver. Die Institution spricht. Kunstvermittlung als Herrschafts- und als Emanzipationstechnologie [A Instituição fala. Arte-educação/mediação como dominação e emancipação como tecnologia] em Wer spricht? Autorität und Autorschaft in Ausstellungen [Quem está falando? Autoridade e autoria em exposições], editoras Beatrice Jaschke, Charlotte Martinz-Turek, e Nora Sternfeld (Vienna, 2005), pp. 34–38; STURM, Eva. Kunstvermittlung und Widerstand em Auf dem Weg, op. cit., pp. 44ff.

[12] Ver o conceito de “educação bancária” descrito pelo educador brasileiro Paulo Freire em Pedagogia do Oprimido. In: FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013. pp. 79-106.

[13] Já que esta noção de educação em particular não é examinada de maneira auto-reflexiva, é raro que se apresente explicitamente, se articulando, por outra parte, através de práticas discursivas: a forma de lidar com o  público, o conteúdo e a configuração da programação.

[14] Seria certamente muito instrutivo traçar a presença proporcional dos quatro discursos em publicações alemãs sobre educação em museus, como por exemplo a Standbein - Spielbein.

[15] As questões concretas apresentadas foram, por exemplo: Quem define a importância do que se transmite na educação/mediação em museus? Quem categoriza os “públicos-alvos” e com que propósito? Até onde pode ir a educação/mediação em museus em seus assuntos, abordagens e métodos antes que a instituição ou os públicos os considerem inadequados e ameaçadores? Como certas aproximações sobre ensino e aprendizagem geram implicitamente sujeitos próprios de ensino e aprendizagem?

[16] Isto apresenta um paradoxo pedagógico: precisamente a recusa do público em participar do trabalho de desconstrução/transformação e sua determinação para se agarrar às suas ideias originais sobre mediação e educação em museus podem ser consideradas um ato de auto-empoderamento. Depende, portanto, de quais imperativos dominam.

[17] A desconstrução está condicionada à existência de um texto dominante, desde o qual se trabalha. “A desconstrução pragmática funciona dentro de um sistema de pensamento, mas com o fim de sabotá-lo.” In: CULLER, Jonathan. Dekonstruktion. Derrida und die poststrukturalisitische Literaturtheorie [Desconstrução. Derrida e a teoria literária pós-estruturalista] . Hamburg, 1988.

[18] Pelo menos, os educadores e educadoras de museus e mediadoras e mediadores  envolvidos aqui vêm um potencial transformador em seu trabalho dentro da instituição, que consideram também uma “área relevante da vida”.

[19] No campo da educação em museus, estas contradições têm sido objeto de contínuas discussões em países de língua inglesa desde 1998, sobretudo com relação às diretrizes para políticas culturais do New Labour. Ver MÖRSCH, Carmen. Socially Engaged Economies. Leben von und mit künstlerischen Beteiligungsprojekten und Kunstvermittlung in England [Economias socialmente engajadas. Vida e participação artística em projetos e no ensino de arte na Inglaterra]. In: Kurswechsel 4, 2003, p. 62–74.

[20] No melhor dos cenários, os curadores remuneram especialistas de acordo com o seu trabalho.

[21] No artigo Gallery education and visitor services at documenta 12 [Educação em museus e serviços para visitantes na documenta 12], volume 1, p. 83f, Schôtker apresenta sua perspectiva como Diretor de Educação na documenta 12.

[22] Ver, por exemplo, STURM, Eva. Woher kommen die KunstvermittlerInnen? [De onde vêm os arte-educadores?] em Dürfen die das? Kunst als sozialer Raum. Art/ Education/ Cultural Work/ Communities [Permissão para fazer isso? A arte como espaço social. Arte/Educação/ Trabalho Culural/ Comunidades, eds. Stella Rollig, Eva Sturm, Vienna, 2002, p. 198–211.

[23] TRODD, Colin. Culture, Class, City: The National Gallery. London and the Spaces of Education 1822–57 [Cutura, Classe, Cidade: A National Gallery. Londres e os Espaços de Educação (1822-57)] em Art Apart: Art Institutions and Ideology across England and North America [Arte à parte: instituições de arte e ideologia na Inglaterra e América do Norte], ed. Marcia Pointon. Manchester, 1994, p. 41. Veja, em conexão com este debate, o projeto Talking and breast feeding [Falar e amamentação], de Marvin Altner e Ellen Kobe.

[24] Ver Matthew Arnold (1869): Culture and Anarchy. [Matthew Arnold (1869): Cultura e Anarquia]. ed. Samuel Lipman. Londres: New Haven, 1994.

[25] Ver, por exemplo, BENNETT, Tony. The Birth of the Museum. History, Theory, Politics. [O Nascimento do Museu. História. Teoria. Política]. New York, London, 1995.

[26] Ver YEO, Eileen James. Social motherhood and sexual communion of labour in British Social Science, 1850-1950 [Maternidade social e comunhão sexual do trabalho nas Ciências Sociais Britânicas, 1850-1950] em Women’s History Review 1, 1, 1992, p. 63-87.

[27] Anne McClintock analisou a convergência destes discursos no contexto do império. Ver Imperial Leather: Race, Gender and Sexuality in the Colonial Contest [Couro Imperial: Raça, Gênero e Sexualidade no Contexto Colonial]. New York, 1995. Para outro ponto de vista sobre o mesmo fenômeno na Alemanha colonial, ver SCHUBERT, Michael, Der Schwarze Fremde. Das Bild des Schwarzafrikaners in der parlamentarischen und publizistischen Kolonialdiskussion in Deutschland von den 1870er bis in die 1930er Jahre. [Os estrangeiros negros. A imagem do negro africano no debate colonial parlamentar e jornalístico na Alemanha de 1870 a 1920]Stuttgart, 2001, p. 48ff.

[28] De fato, segue sendo muito necessária uma reavaliação exaustiva das formas como a educação em museus trabalhou com o público durante o período do Nacional Socialismo.

[29] Uma das primeiras publicações na Alemanha que tentou oferecer uma estrutura teórica para a educação em museus foi STURM, Eva. Im Engpass der Worte. Sprechen über moderne und zeitgenössische Kunst [No gargalo das palavras. Falando sobre arte moderna e contemporânea] Frankfurt am Main, 1996. Baseando-se em Jacques Lacan, ela analisa atos de fala e silêncio que ocorrem durante a mediação.

[30] Ver o artigo de María do Mar Castro e Nikita Dhawan presente na publicação documenta 12 Education II, p. 317ff.

[31] New Labour refere-se a um período na história do British Labour Party [Partido Trabalhista Britânico] compreendido entre meados de 1990 e o início dos anos 2000, sob liderança de Tony Blair e Gordon Brown. O nome provém de um slogan de uma conferência usada pela primeira vez pelo partido em 1994 e adotada como uma espécie de manifesto, este publicado em 1996, chamado New Labour, New Life For Britain [New Labour, Vida nova para a Grã-Bretanha].

[32] A tradução optou pela expressão "arte para a integração social", e não "arte socialmente engajada", que seria a tradução literal, ou "arte comprometida", pois, neste caso, a produção artística estaria imbuída dos expedientes do programa de governo do New Labor e a tentativa deste de arregimentar a sociedade civil no desenvolvimento do país. (N. da T.)

[33] Investigar os antecedentes históricos e a conexão entre este desenvolvimento e o conhecimento acadêmico e ativista excederia os limites espaciais deste artigo. Para isso, ver MÖRSCH, Carmen. Socially Engaged Economies, em Kurswechsel, op. cit. Atualmente, estou finalizando um estudo histórico sobre a reavaliação do dispositivo Arte/Educação na Inglaterra.

[34] Tomemos como exemplo a compilação de Jaschke, Martinz-Turek, and Sternfeld, Wer spricht?, op. cit. Dentre onze autores, quatro são do sexo masculino; dois deles são descritos como diretores de educação, mas apenas um trabalha realmente como mediador. Os outros homens são “filósofos” e “teóricos da cultura”.

[35] De fato, o tipo de publicação levada a cabo em documenta 12 Education II e a escolha do editor são um movimento estratégico em direção a esta reavaliação.

[36] Por exemplo: DALTON, Pen. The Gendering of Art Education [A generalização da Arte-educação]. Maidenhead, 2001; VON OSTEN, Marion. Norm der Abweichung [O desvio padrão]. Vienna, 2003; RAUNIG, Gerald e WUGGENIG, Ulf. Kritik der Kreativität [Crítica da criatividade]. Vienna, 2007;  FÄRBER, Alexa et al, eds., Kreativität. Eine Rückrufaktion [Criatividade, uma lembrança]. ZFK – Zeitschrift für Kulturwis-senschaften 1/2008. Bielefeld, 2008. Esta questão é desenvolvida também em BOLTANSKI, Luc e CHIAPELLO, Éve. Der Neue Geist des Kapitalismus. [O novo espírito do capitalismo]. Constance, 2003.

[37] DALTON, Pen. The Gendering of Art Education, op. cit., p.111.

[38] Ver a iniciativa Euromayday, à qual Sandra Ortmann refere-se em seu artigo na publicação documenta 12 Education II, p. 248, nota de rodapé 18.

[39] BORDIEU, Pierre. La Distinction. Critique sociale du jugement. Paris, 1979. Publicada em português como A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk, 2011.

[40] HOFFMAN, Hilmar. Kultur für alle. Perspektiven und Modelle. [Cultura para todos. Perspectivas e modelos]. Frankfurt am Main, 1979.

[41] Ver, por exemplo, STÖGER, Gabriele. Wer schon Platz genommen hat, muss nicht zum Hinsetzen aufgefordert werden [Qualquer pessoa que tenha tido um assento não tem que ser convidada a sentar-se], em Dürfen die das?, op. cit., p. 184.

[42] Aqui, devem ser mencionados alguns estudos revolucionários: The Birth of the Museum, de Tony Bennett (op. cit.) e Civilizing Rituals: Inside the Public Art Museum, de Carol Duncan (London, New York, 1995) assim como uma mais recente publicação alemã: Roswitha Muttenthaler e Regina Wonisch, Gesten des Zeigens. Zur Repräsentation von Gender und Race in Ausstellungen (Bielefeld, 2007). E mais: Mieke Bal, Double Exposures, The Subject of Cultural Analysis (London, New York, 1996); Sharon Macdonald e Gordon Fyfe, eds., Theorizing Museums: Representing Identity and Diversity in a Changing World, The Sociological Review (Oxford, Cambridge, 1996); Marcia Pointon, ed., Art Apart: Art Institutions and Ideology Across England and North America (Manchester, New York, 1994); Eilean Hooper-Greenhill, Museums and the Shaping of Knowledge (London, New York, 1992); Ivan Karp e Steven D. Lavine, eds., Exhibiting Cultures: The Poetics and Politics of Museum Display (Washington, D.C., 1991); Reesa Greenberg et al., eds., Thinking about Exhibitions (London, New York, 1996); Daniel J. Sherman e Irit Rogoff, eds., Museum Culture. Histories. Discourses. Spectacles (Minneapolis, 1994); Moira G. Simpson, Making Representations. Museums in the Post-colonial Era (London, New York, 1996). Para uma análise mais aprofundada das abordagens elucidadas acima,  ver Griselda Pollock e Joyce Zemans, eds., Museums after Modernism. Strategies of Engagement (Malden, Ox- ford, Carlton, 2007).

[43] VERGO, Peter. The New Museology. [A Nova Museologia]. London, 1989. No contexto alemão, ver HAUENSCHILD, Andrea. Neue Museologie. [Nova Museologia]. Bremen, 1988.

[44] Henry Giroux et al. (Org.), Counternarratives: Cultural Studies and Critical Pedagogies in Post-modern Spaces. [Contra-narrativas: Estudos Culturais e Pedagogias Críticas em espaços pós-modernos]. London, New York, 1994.

[45] Ver VINCENTELLI, Moira Vincentelli e GRIGG, Colin (Org.). Gallery Education and the New Art History [Educação em Museus e a Nova História da Arte]. Lewes, 1992.

[46] Para uma boa visão do debate americano, embora não centrada no campo da educação em museus mas em pesquisa social qualitativa, ver JACKSON, Alecia Youngblood. Rhizovocality [Rhizovocalidade]. In: Qualitative Studies in Education, no. 16/5, September–October 2003. Contribuições alemãs a este tópico incluem: STURM, Eva. Give a Voice. Partizipatorische künstlerisch-edukative Projekte aus Nordamerika. [Projetos artísticos e educativos participativos na América do Norte] In: Seiteneingänge. Museumsidee & Ausstellungsweisen, (Org.) Roswitha Muttenthaler, Herbert Posch, e Eva Sturm. Vienna, 2000; SALGADO, Rubia. Antirassistische und feministische Kulturarbeit aus der Perspektive einer Migrantinnenorganisation. [Trabalho cultural antirracista e feminista do ponto de vista de uma organização de imigrantes] In: Creating the Change – Beiträge zu Theorie & Praxis von Frauenförder- und Gleichbehandlungsmaßnahmen im Kulturbereich, based on a two-year study of IG Kultur Vorarlberg. Vienna, 2006; assim como a publicação organizada por Rollig e Sturm (Org.), Dürfen die das?, op. cit.

[47] O referencial teórico mais influente para estas abordagens é de procedência pós-estruturalista: Gilles Deleuze e Felix Guattari, Jacques Derrida, e Jacques Lacan. O Kunstcoop© group representa uma tentativa de documentar a mediação e educação em museus como uma prática artística na Alemanha. Ver NGBK, ed., Kunstcoop©. Berlin, 2002. Ver tambémMASET, Pierangelo. Ästhetische Bildung der Differenz [Educaçãoo estética da diferença]. Stuttgart, 1995; PAZZINI, Karl-Josef. Kunst existiert nicht, es sei denn als angewandte. [A arte não existe, exceto se aplicada]. In: Bauhaus-Universität Weimar, Brigitte Wischnack, (Org.), Tatort Kunsterziehung. Thesis. Wissenschaftliche Zeitschrift der Bauhaus-Universität Weimar, vol. 2, 46 (2000), pp. 8–17.

[48] STURM, Eva. Vom Schießen und vom Getroffen-Werden. Kunstpädagogik und Kunstvermittlung ‘Von Kunst aus’. In: Karl-Josef Pazzini et al. (Org.), Kunstpädagogische Positionen 7. Hamburg, 2005.

[49] STURM, Eva. Im Engpass der Worte, op. cit.

[50] Ibid.

[51] Karl-Josef Pazzini, Kunst und Bildung. Lösungen für Ich-starke Persönlichkeiten [Arte e educação. Soluções para personalidades fortes]. In: Bilden mit Kunst, ed. Landesverband der Kunstschulen Niedersachsen. Bielefeld, 2004, pp. 31–48.

[52] A infantilização da mediação e da educação em museus é um fenômeno recorrente, principalmente na prática fundada pelos discursos reprodutivos. Em especial, este caráter infantilizador está diretamente relacionado à prática feminizada, desvalorizada no campo de trabalho e que deve ser lida, neste contexto, como um sintoma para o fato de que os protagonistas não se levam a sério, considerando o papel atribuído a eles pela instituição. Alegria e ludicidade, atuadas ou assumidas, são características desta tendência, que alimentam o ciclo vicioso que leva a um maior descrédito por parte da instituição. Ver PAZZINI, Karl-Josef. Die Toten bilden. Museum & Psychoanalyse II. [Formar os mortos. Museu & Psicanálise II]. Vienna, 2003. Conforme sugere Nora Sternfeld, esta infantilização deve ser lida como a continuação dos objetivos educacionais paternalistas classe-média da educação em museus. Ver STERNFELD, Nora. Der Taxispielertrick. Vermittlung zwischen Selbstregulierung und Selbstermächtigung. [A prestidigitação táxi: a mediação entre a auto-regulação e o auto-empoderamento]. In: Wer spricht?, op. cit., pp. 15–33.

[53] FELMAN, Shoshana. Psychoanalysis and Education: Teaching Terminable and Interminable. [Psicanálise e Educação: ensino terminável e interminável]  In: Yale French Studies, The Pedagogical Imperative: Teaching as a Literary Genre, no. 63 (1982), pp. 21– 44; OELKERS, Jürgen. Provokation als Bildungsprinzip. [Provocação como princípio educativo]. In: Bilden mit Kunst, op. cit., pp. 105ff.

[54] Ver a descrição do curso “Wer spricht? Kunstvermittlung als emanzipatorische und feministische Praxis” [Quem fala? Mediação e educação em museus como uma prática emancipatória e feminista] ministrado por Nora Sternfeld em 2004, em conjunto aos estudos de gênero da Akademie der bildenden Künste, Vienna (Institut für das künstlerische Lehramt). Disponível em: http://www.schnitt.org/artikel.php?Art_ID=66 Acesso em 9/11/2008.

[55] Machart desenvolve a noção de educação em museus como interrupção e contra-canonização em Die Institution spricht [A instituição fala]; see Wer spricht?, op. cit., pp. 34–58.

[56] Ver STURM, “Kunstvermittlung und Widerstand,” in Auf dem Weg, op. cit.; e STURM, “Give a Voice,” in Seiteneingänge, op. cit.

[57] CERTEAU, Michel de (1980): L’Invencion du quotidien, les arts de faire. Paris, 1990; publicado em português como A invenção do cotidiano, artes de fazer. Petrópolis: VOZES, 1998.

[58] Ver, sobre este tópico, ROGOFF, Irit. Looking Away - Participations in Visual Culture. [Olhando para longe - Participação em Cultural Visual]. In: Art after Criticism, ed. Gavin Butt (Oxford, 2004) ou o projeto de pesquisa “Tate Encounters” realizado pela Tate Britain, disponível em http://www.tate.org.uk/research/tateresearch/majorprojects/tate-encounters/ Accesso em 11/11/2008.

[59] Andrea Hubin oferece uma análise detalhada da (ausente) educação em museus na primeira documenta; ver, nesta publicação (documenta 12 Education II), p. 291ff.

[60] A publicação Besucherschule zur documenta 7. Die Hässlichkeit des Schönen [Os visitantes escolares da documenta 7 - A feiura da beleza], de Bazon Brock, ainda pode ser adquirida por preços razoáveis em sebos e livrarias online de livros raros.

[61] Ambos na documenta 7, em 1982.

[62] Até este momento, não há análise crítica ou mesmo descritiva das atividades educativas realizadas no contexto da documenta em suas diferentes edições, em contraste com a enorme quantidade de publicações que rendem elogios à história das exposições. Dr. Michael Grauer foi diretor de educação na documenta 8, e Dr. Klaus Baum na documenta 9. Material complementar foi produzido com o intuito de oferecer recursos aos professores. Eu gostaria de agradecer aos meus colegas Michael Grauer e Christiane Preißler pelas informações por eles fornecidas acerca da educação nas documentas 8 e 9.

[63] Isto compreendia desde visitas guiadas e conferências introdutórias a programas para crianças oferecidos pelo programa de educação em museus da cidade de Kassel, e programas VIP. Matthias Arndt da galeria Arndt&Partner, de Berlim, esteve na coordenação do serviço de visitas guiadas na documenta 10. Para uma análise deste serviço na documenta 10, ver MÖRSCH, Carmen. 100 Tage sprechen. Als Künstlerin auf der documenta X [100 falas diárias - como um artista na documenta X], disponível em http://www.kunstkooperationen.de/pdf/100TageSprechen.pdf. Foi publicado material educativo sobre a documenta 10, no entanto, ele foi concebido como um projeto de professores de arte-educação não afiliados com a documenta como instituição. Ver BALKENHOL, Bernhard; GEORGSDORF, Heiner (Org.). x-mal documenta X. Über Kunst und Künstler der Gegenwart. Ein NachLesebuch zur 10 Documenta [x-vezes documenta 10. Sobre a arte e os artistas do nosso tempo. Uma antologia da documenta 10], Kunsthochschule der Universität Gesamthochschule Kassel. Kassel, 1998. Outro volume foi publicado na documenta 11, respectivamente.

[64] Ver, sobre este tema, o relato do diretor de educação da documenta 11, Oliver Marchart, Die Institution spricht, in Wer spricht?, op. cit., pp. 34–58.

[65] Ibid, pp. 53ff. Oliver Marchart faz uso recorrente deste argumento em outras publicações. Ver MARCHART, Oliver. Die Politik, die Theorie und der Westen. Die Documenta 11 im Biennalekontext und ihre Vermittlungsstrategie [Política, Teoria e o Ocidente. A documenta 11 no contexto das bienais e das estratégias de mediação]. In: Claus Volkenandt, ed., Kunstgeschichte und Weltgegenwartskunst. Konzepte – Methoden – Perspektiven. Berlin, 2004, pp. 113ff; idem, Hegemonie im Kunstfeld. Die documenta-Ausstellungen dX, D11, d12 und die Politik der Biennalisierung [Hegemonia no campo da arte: as exposições dX, D11, D12 e as políticas de bienalização]. Berlin, 2008. O que parece intrigante, se quisermos seguir o entendimento de Marchart de mediação e educação em museus como interrupção [disrupção], é a forma inequívoca com que esta função é desnecessária no caso da documenta 11, deixando a dimensão hegemônica desta exposição incontestável e pré-estabelecendo, assim, o imperativo de transmiti-la de forma crítica. Além disso, o estado estruturalmente desvalorizado da educação em museus dentro da hierarquia do campo da arte não foi analisado e os “projetos educativos” não puderam mudar em nada este aspecto, apesar de, e devido a, equipe internacional escolhida a dedo. As condições de trabalho proto-capitalistas dos “guias”, seu impedimento de participar nos processos de tomada de decisões, seu status com relação ao restante da equipe da documenta 11, ou, basicamente, seu acesso limitado à exposição antes de sua abertura são um exemplo disso. No entanto, as premissas elaboradas pelo diretor de educação da documenta 11 não descartavam o uso de componentes desconstrutivos nas visitas “guiadas” de cada mediador.  Pelo menos um exemplo destas intervenções foi documentado. Ver STURM, Eva. Kunstvermittlung und Widerstand. In: Auf dem Weg, op. cit., pp. 44f.

[66] Infelizmente, não há documentação do “projeto educativo”. Não houve um relato público de seu desenvolvimento ou de possíveis fricções geradas pela constelação hierárquica do “projeto educativo” e do “programa de educação”. Na verdade, pelo fato de esta iniciativa não ter ido além de si mesma, ela não foi capaz de contribuir para uma expansão do campo da prática, e esta certamente não parece ter sido a sua intenção.

[67] O conceito para a formação de mediadoras e mediadores na documenta 11 é descrito em detalhes por Karin Rebbert, directora de educação na documenta 11. Ver REBBERT, Karin. Documenta 11 Education. In: Kunstvermittlung zwischen partizipatorischen Kunstprojekten und interaktiven Kunstaktionen, Arbeits- gemeinschaft der Deutschen Kunstvereine, ed. Hannover, 2002, pp. 87–93.

[68] Sobre a noção da documenta 11 como plataformas, ver http://www.documenta12.de/archiv/d11/documenta_pink.html Acesso em 02/11/2008.

[69] Ver http://www.documenta12.de/leitmotive.html?&L=1 Acesso em 03/12/2008. Sobre as implicações do terceiro leitmotif para o enfoque da educação na documenta 12, ver o artigo de Ulrich Schötker presente na publicação documenta 12 Education I, p. 84.

[70] Sobre a perspectiva curatorial do trabalho educativo na documenta 12, ver o artigo de Ruth Noack presente na publicação documenta 12 Education II, p. 311ff.

[71] Levada a cabo em 21 de novembro de 2006, na Neue Nationalgalerie em Berlim. Isto não mudou quase em nada o fato de que o trabalho educativo recebe pouca atenção da imprensa. Em sua dissertação, Florina Limberg faz uma análise da cobertura de imprensa sobre a educação na documenta 12:  Was tun? Neue Impulse für die Kunstvermittlung durch die documenta 12. Eine diskursanalytische Untersuchung der Medienberichterstattung [O que fazer? Novo impulso para a arte-educação na documenta 12. Um estudo analítico do discurso da  cobertura dos meios de comunicação]. Hildesheim University, 2008. (Sua dissertação pode ser consultada e emprestada na biblioteca universitária da Hildesheim University e no arquivo da documenta em Kassel).

[72] Estudantes da faculdade de ciências administrativas, da Kassel University, sob a coordenação do professor Hellstern, realizaram pesquisa com os visitantes da documenta, entre as edições 9 e 12. Baseadas nestas perguntas, inúmeras dissertações examinaram a exposição a partir da perspectiva das ciências administrativas.  Para uma visão geral, acessar https://kobra.bibliothek.uni-kassel.de/bitstream/urn:nbn:de:hebis:34-%202008111725121/3/HellsternDocumentaAbstracts.pdf Acesso em 03/12/2008.

[73] Assim, a escolha recaiu sobre um profissional que pesquisa a educação em museus que está claramente posicionado como um ator dentro do campo que se propõe examinar e que, por conseguinte, está distante de  poder assegurar qualquer tipo de objetividade.

[74] O departamento de educação e mediação era demasiado pequeno para dar conta de suas demandas. Este desequilíbrio foi, parcialmente, amenizado pelo envolvimento, apoio e colaboração de Catrin Seefranz, encarregada da comunicação, que, garantiu à educação um lugar de destaque no website da documenta 12. Isto é bastante notável,  pois atritos, especialmente com o departamento de imprensa, não são incomuns no âmbito do sistema institucional, em particular quando a educação/mediação assume uma postura crítica. Portanto, eu gostaria de fazer novamente um especial agradecimento a Catrin Seefranz por sua solidariedade com a educação e a mediação.

[75] Aqui, eu me refiro ao projeto anterior de Roger M. Buergel e Noack chamado The Government [O Governo], o qual eles iniciaram na Kunstraum Lüneburg em 2003. Este projeto foi extensivamente documentado e está disponível em http://dieregierung.uni-lueneburg.de/e/home.php Acesso em 04/12/2008. Sonja Parzefall também desenvolveu o conceito para o projeto que eu mencionarei a seguir,  Die Welt bewohnen [Habitar o Mundo: estudantes orientam adultos através da documenta 12], no contexto de The Government. Para mais informações sobre Habitar o Mundo, ver também o volume 1 desta publicação (documenta 12 Education I), p. 55ff.

[76] Os seguintes projetos - Conselho Assessor da documenta 12; Habitar o Mundo e aushecken [incubando ideias - um espaço para crianças e jovens na documenta 12] não foram tema de pesquisa. Eles estão extensivamente documentados no volume 1 da publicação documenta 12 - education, e são citados em artigos de Sara Hossein, Kathrin Nölle, Simone Wiegand, e Henrike Plegge/Stephan Fürstenberg. Portanto, eu não irei descrevê-los ou analisá-los detalhadamente aqui. Eventualmente, a análise das atividades do Conselho Consultivo levaram a criação de pautas para pensar a conexão entre a educação política e a educação cultural, encomendadas pelo Centro Federal para a Educação Cívica e Política [Bundeszentrale für politische Bildung] em colaboração com Wanda Wieczorek, Ay␣e Güleç e Carmen Mörsch.

[77] Sobre as revistas da documenta, ver www.documenta12.de Acesso em 03/12/2008.

[78] Wanda Wieczorek faz uma observação crítica às atividades da documenta 12-Halle. Ver documenta 12 Education I), p. 187ff.

[79] Vamos comparar os números: muitas instituições inglesas reservam 10% de seu orçamento total para a educação. No caso da documenta 12, isto implicaria que, de um orçamento total de 19 milhões de euros 1,9 milhões corresponderiam à educação. Uma das nossas propostas foi investir parte do orçamento destinado à exposição na educação e na mediação, a qual logo seria devolvida considerando o aumento do valor no ingresso em um “euro-educativo” o que, no caso da documenta 12, significaria  754,301 euros (mas seria definitivamente a variável com mais risco). O diretor artístico fez particular referência às restrições estruturais, como as estruturas de tomada de decisões dentro da direção da documenta, assim como um argumento contra a realização desta proposta

[80] Os fundos  foram providos pelo Ministério Federal para a Pesquisa e a Educação, pelo Centro Federal para a Educação Cívica e Política, Funding was provided by the Federal Ministry for Research and Education, the Federal Center for Political/Civic Education, pela Heinrich Böll Foundation e pelo Fonds Soziokultur.

[81] Claudia Hummel analisa o projeto Incubando ideias na publicação documenta 12 Education I, p. 147ff.

[82] Todos os projetos, assim como o trabalho desenvolvido entre o Conselho Assessor e o grupo de mediadoras e mediadores está extensivamente documentado.

[83] Sobre a noção de autonomia na mediação, ver texto de Ulrich Schötker, documenta 12 Education I, p 89.

[84] Este pluralismo já havia sido uma característica da equipe de educação na documenta 11. Ver REBBERT, Documenta 11 Education. In: Kunstvermittlung zwischen partizipatorischen Kunstprojekten und interaktiven Kunstaktionen, op. cit.

[85] A fase intensiva aconteceu durante as quatro semanas  que antecederam a abertura da exposição. Uma coleção de páginas web armazenados em uma wiki serviu como meio principal para o desenvolvimento de questões e discussões.

[86] Conforme argumentado por alguns mediadoras e mediadores durante as plenárias de conclusão, foi dado menos espaço a considerações metodológicas que à conceitualização de atividades. Especialistas em formação prática e teórica em mediação e educação em museus foram convidados a participar com palestras e oficinas, incluindo neste grupo pesquisadores como Pierangelo Maset, Karin Schneider, Nora Sternfeld, e Eva Sturm. Outras contribuições incluindo a extensa discussão proposta por Silke Wenk sobre o segundo leitmotif “What is bare life?”, assim como as ideias sobre experiência estética apresentadas por Juliane Rebentisch, que moldaram decisivamente a concepção dos curadores sobre esta. Ver REBENTISCH, Juliane. Ästhetik der Installation [Estética da Instalação]. Frankfurt am Main, 2003.

[87] É preciso agradecer ao curadores da documenta 12, que permitiram que mediadoras e mediadoras tivessem acesso quase ilimitado à exposição durante a sua montagem - um novo desenvolvimento que enfatiza a valorização conferida à educação.

[88] Este conflito subjacente é analisado em inúmeros ensaios presentes na publicação documenta 12 - education II e, como consequência, determinou o título geral da publicação.

[89] Ver GOLTZ, Sophie. Neo-Kunstvermittlung. Zur Besucherschule der documenta 12 [Neo-arte-educação: para os visitantes escolares da documenta 12]. In: Kulturrisse, IG Kultur Österreich, 4 (2007), pp. 44f.

[90] Durante as plenárias no período de formação, muitas vezes surgem conflitos sobre a questão “quem fala para quem e como”, e que parte do grupo iria tentar afirmar seu domínio sobre o resto com a pretensão de estar do lado certo e possuir o tipo certo de conhecimento e capacidade analítica. Ver as observações de Mörsch  em documenta 12 Education I, p. 101ff.

[91] A pesquisa paralela realizada na documenta 12 tinha quatro opções de avaliar a reação do público: foi criado um endereço de email, o qual mediadoras e mediadores passavam às pessoas que participavam das visitas; respostas públicas direcionadas aos departamentos de educação e mediação, imprensa, ou gerência, e então eram transmitidas à equipe responsável; rodadas de debate com grupo pequenos de convidados, formados em grande parte por profissionais de arte-educação, educação em museus e mediação, realizados após atividades específicas, e organizados pela coordenadora de pesquisa; e, finalmente, comentários  feitos por mediadoras e mediadores.

[92] Nenhuma outra informação contextual foi fornecida ao longo de toda a exposição. Tal informação teria permitido aos visitante interessados compreenderem as escolhas e decisões curatoriais. Um possível caminho poderia ter sido a criação de uma sala de recursos [com informações e materiais] na documenta-Halle.

[93] O fato de que Roger M. Buergel e Ruth Noack, eventualente, atuaram como mediador e mediadora, ou ainda que tenham surgido textos adicionais (escritos pelos curadores) em alguns pontos da exposição, pouco pôde fazer para mudar isso.

[94] Ainda que estas intervenções de controle fossem significativamente pequenas em comparação à experiência de mediadoras e mediadores em outras instituições, ninguém realmente sabia quando elas sucederiam,  representando, assim, uma fonte de stress adicional durante todo o período da exposição. Um bom exemplo disso é discutido na documentação do projeto de Nanne Buurman, assim como no texto de Bernadett Settele.

[95] Sobre a metodologia da equipe de pesquisa no campo da educação cultural, ver MÖRSCH, Carmen. Regierungstechnik und Widerstandspraxis: Vielstimmigkeit und Teamorientierung im Forschungs-prozess [Tecnologia de governo e Prática de resistência: polifonia e equipe de orientação no processo de pesquisa] In: Körper im Spiel: Wege zur Erforschung theaterpädagogischer Praxen, ed. Ute Pinkert. Berlin et al., 2008.

[96] Aqui, o enfoque da pesquisa corresponde a um entendimento construtivista de processos de aprendizagem.

[97] Os custos de viagem da equipe de pesquisa foram cobertos através de fundos disponíveis para o departamento de pesquisa; um dos encontros ocorreu em Viena, o outro em Berlim. Venho aqui agradecer mais uma vez a Nora Landkammer e Annette Schryen por cuidarem da produção e organização dos encontros nestas respectivas cidades.

[98] Este foi um caminho aberto para todas as mediadoras e mediadores da documenta 12. Em complementação ao fórum de pesquisa, a coordenadora de pesquisa ofereceu um fórum semanal de projetos para aqueles que estavam engajados nas atividades já descritas, assim como um fórum aberto àqueles que estavam unicamente concentrados na realização das mediações no espaço expositivo. Além disso, mediadoras e mediadores refletiram em grupos sobre seu trabalho, o que acabou superando o próprio espaço-tempo da documenta 12.

[99] O projeto de pesquisa, em que o coordenador de pesquisa adota o papel de moderador se mostra uma alternativa positiva e viável para as estruturas de auto-organização que Sophie Goltz solicita em tal contexto. Ver seu artigo Neo-Kunstvermittlung (in Kulturrisse, op. cit.). Infelizmente, grupos auto-organizados no campo da arte são muitas vezes constituídos como comunidades discursivas distintamente homogêneas. Em última instância, o posicionamento deliberadamente simplista contra a instituição, que provoca uma resposta radical e excludente previsível, não é senão uma estratégia para obter mais benefícios simbólicos a partir dele, muito mais do que uma posição institucional carente de sentido crítico pudesse conceder. Em outras palavras, eles não pretendem romper com as concepções e ideias de vanguarda no campo da arte, mas usá-las para servir a seus propósitos. E trabalham de maneira auto-referencial, na medida em que têm como alvo seu próprio campo. O projeto de pesquisa foi uma tentativa consciente de trabalhar contra estes tipos de dinâmica.

[100] A leitura repetida das contribuições presentes nesta publicação (volume 2) me permitiu discernir entre os quatro discursos da educação em museus, uma hipótese que eu torno pública aqui pela primeira vez. Além disso, eu também fui capaz de lucrar com este projeto em termos metodológicos. Nunca antes eu realizei pesquisas em tais condições igualitárias e encontrei um desafio tão positivo. Quando as relações de poder se manifestam dentro de um grupo e pesquisa, estas foram descobertas, localizadas e debatidas com uma grande qualidade de detalhes. Foi, portanto, um empreendimento enriquecedor participar no debate intelectual com meus colegas, pelo o qual eu gostaria de estender minha sincera gratidão a toda a equipe.

[101] No entanto, é preciso ver se haverá um efeito real e concreto no caso da documenta. Se as exposições seguintes da documenta expandirem o trabalho educativo realizado até então, esta será uma responsabilidade de seus futuros diretores artísticos, desde que a direção da documenta não invista numa maior institucionalização da educação e da mediação com orçamentos correspondentes. De qualquer forma, o trabalho educativo realizado na Kunsthalle Fridericianum encontra-se estruturado de acordo com o discurso transformador.

[102] Ver ARNDT, Susan. ‘The Racial Turn.’ Kolonialismus, Weiße Mythen und Critical Whiteness Studies [A virada racial: colonialismo, mitos brancos e estudos críticos de branquitude]. In: Koloniale und postkoloniale Konstruktionen von Afrika und Menschen afrikanischer Herkunft in der deutschen Alltagskultur, (Org.) Marianne Bechhaus-Gerst, Sunna Gieseke, and Reinhard Klein- Arendt. Frankfurt am Main, 2005.

[103] Como exemplo atual de uma publicação com ampla recepção, ver BAMFORD, Anne. The Wow Factor: Global Research Compendium on the Impact of the Arts in Education [O fato surpresa: compêndio de pesquisa global sobre o impacto da arte na educação]. Münster, 2006, p. 99.

[104] E isto não é uma verdade apenas para os mega-eventos hegemônicos como a documenta 12, mas também para os pequenos, como os espaços autônomos e auto-organizados e estúdios de artistas, que se referem à arte em todas as suas instâncias institucionalizadas.

[105] De uma conferência de David Dibosa para o Mestrado em Exposição e Educação em Museus M.A. (Ausstellen und Vermitteln) na Zurich University of the Arts.

Públicos e Contrapúblicos (versão abreviada)

 

Autor: Michael Warner

Tradução: Ethiene Nachtigall

Revisão técnica: Diogo de Moraes

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Públicos e Contrapúblicos (versão abreviada)

 

Este ensaio tem um público. Se você está lendo (ou ouvindo) isso, você é parte de seu público. Então, em primeiro lugar deixe-me dizer: bem-vindo. Claro, você pode parar de ler (ou sair da sala), e alguém mais pode começar (ou entrar). Seria o público deste ensaio, então, diferente? Seria possível saber alguma coisa sobre o público ao qual, espero, você ainda pertence? O que é um público? Curiosamente, essa é uma questão obscura, considerando que poucas coisas têm sido mais importantes no desenvolvimento da modernidade. Os públicos tornaram-se um fato essencial da paisagem social, e mesmo assim custaria um grande esforço ao nosso entendimento descrever exatamente o que eles são.

Vários sentidos do substantivo público tendem a ser usados indistintamente. Nem sempre as pessoas distinguem entre o público e um público, embora haja determinados contextos em que a diferença seja relevante. O público é uma espécie de totalidade social. No seu sentido mais comum refere-se às pessoas em geral. Um público também pode ser uma segunda coisa: uma plateia concreta, uma multidão que testemunha a si mesma no espaço visível, como é o caso de um público teatral. Tal público tem também um sentido de totalidade, delimitada pelo evento ou pelo espaço físico compartilhado. Um ator no palco sabe onde seu público está, o quão grande ele é, onde estão seus limites, e qual o tempo de sua existência comum. Uma multidão em um evento esportivo, em um concerto ou passeata tem limites menos precisos, mas ainda se sabe onde e quando está reunida, constituindo uma visibilidade e ação comuns.

Eu vou voltar a ambos os sentidos, mas o que eu quero esclarecer no presente ensaio é principalmente um terceiro sentido: o tipo de público que passa a existir apenas em relação a textos e sua circulação - como o público deste ensaio. (É bom ter você conosco, ainda.)

As distinções entre esses três sentidos nem sempre são nítidas, e não são simplesmente decorrentes da diferença entre contextos orais e escritos. Quando um ensaio é lido em voz alta, como ocorre numa palestra em uma universidade, por exemplo, a audiência concreta de ouvintes se considera como representante de uma audiência mais difusa de leitores. E muitas vezes, quando uma forma de discurso não está se dirigindo a uma audiência institucional ou subcultural, como no caso de um segmento profissional, por exemplo, sua audiência pode entender-se não apenas como um público, mas como o público. Em tais casos, diferentes sentidos de público e circulação estão em jogo ao mesmo tempo. Eles sugerem que vale a pena compreender as distinções melhor, mesmo porque as transposições entre eles podem ter efeitos sociais importantes.

 

1) Um público é auto-organizado.

Um público é um espaço de discurso organizado por nada além do próprio discurso. É autotélico; ele só existe como finalidade para a qual os livros são publicados, os programas de TV são difundidos, sites da internet recebem postagens, discursos são distribuídos e opiniões são produzidas. Ele existe em virtude de ser destinatário.

Uma espécie de circularidade do ovo e da galinha confronta-nos na ideia de um público. Alguém poderia falar publicamente sem dirigir-se a um público? Mas como pode existir esse público antes de ser destinatário? O que seria de um público se ninguém se dirigisse a ele? Um público pode realmente existir à margem da retórica através da qual é imaginado? Se você deixasse de lado este ensaio e ligasse a televisão, o público seria diferente? Como pode a existência de um público depender, por um lado, do endereçamento da retórica, e, por outro, do contexto real de recepção?

Estas questões não podem ser resolvidas de um lado ou do outro. A circularidade é essencial ao fenômeno. Um público pode ser real e eficaz, mas a sua realidade está ligada precisamente a esta reflexividade pela qual um objeto endereçável é conjurado a existir, a fim de permitir o próprio discurso que lhe dá existência.

Neste sentido, um público é tanto nocional quanto empírico. É também parcial, uma vez que poderia haver um número infinito de públicos dentro da totalidade social. Este sentido do termo é completamente moderno; é o único tipo de público para o qual não há outro termo. Nem multidão, nem audiência, nem pessoas, nem grupo irão capturar o mesmo sentido. A diferença nos mostra que a ideia de um público, ao contrário de uma audiência concreta ou do público de qualquer entidade política, é baseada no texto - mesmo que os públicos estejam cada vez mais organizados em torno de textos visuais ou auditivos. Sem a ideia de textos que possam ser tomados em momentos diferentes e em lugares diferentes por pessoas que não se relacionariam de outra forma, nós não poderíamos imaginar um público como uma entidade que engloba todos os utilizadores daquele texto, quem quer que sejam. Muitas vezes, os próprios textos não são sequer reconhecidos como textos, como ocorre, por exemplo, com a publicidade visual ou o som produzido por um DJ - mas os públicos que eles trazem à vida ainda são discursivos da mesma forma.

A estranheza desse tipo de público é muitas vezes ocultada, porque os pressupostos da esfera pública burguesa nos levam a pensar em um discurso público como uma população e, portanto, como um conjunto realmente existente dos seres humanos potencialmente numeráveis. Um público, na prática, aparece como o público. É fácil ser enganado por essa aparência. Mesmo na visão imprecisa da esfera pública, um público nunca é apenas um amontoado de pessoas, nunca apenas a soma das pessoas que casualmente existem. Ele deve, antes de tudo, ter alguma forma de organizar a si mesmo como um corpo, e ser destinatário do discurso. E essa totalidade não pode ser definida de qualquer forma. Deve ser organizada por outra coisa que não o Estado.

Aqui podemos ver como a circularidade autotélica do público do discurso não é apenas um quebra-cabeça para análise, mas também o fator crucial na importância social da forma. Um público se organiza independentemente das instituições estatais, leis, marcos formais de cidadania ou instituições pré-existentes, tais como a igreja. Se não fosse possível pensar o público como organizado independentemente do Estado ou outras estruturas, ele não poderia ser soberano no que diz respeito ao Estado. Assim, o sentido moderno do público como a totalidade social de fato deriva muito do modo como entendemos os públicos parciais do discurso, a exemplo do público deste ensaio, como auto-organizados. O modo como o público funciona na esfera pública (como população) só é possível porque se trata, na realidade, de um público do discurso. Ele é autocriado e auto-organizado, e aí reside o seu poder, bem como a sua evasiva estranheza.

Na espécie de sociedade moderna em que a ideia de públicos foi habilitada, a auto-organização de públicos de discurso tem imensa ressonância do ponto de vista dos indivíduos. Falar, escrever e pensar envolve-nos - ativa e imediatamente - em um público, e, portanto, em sermos soberanos. Imagine o quão impotentes as pessoas se sentiriam se seu pertencimento a um grupo e sua participação fossem simplesmente definidas por estruturas pré-determinadas, por instituições e leis, como em contextos sociais nos quais isso é definido pelo parentesco. Como seria o mundo se todas as formas de ser público fossem semelhantes a tirar carteira de motorista ou se associar a um sindicato - isto é, se mediações formalmente organizadas substituíssem o público auto-organizado como a imagem de pertencimento a um grupo ou uma atividade comum? Esta é a imagem do totalitarismo: uma sociedade sem afinidades, organizada pela burocracia e pela lei. A posição, função e capacidade de ação de cada um sendo definidas pela administração. A impotência do indivíduo em um mundo assim assombra também o capitalismo moderno. Nossas vidas são minunciosamente administradas e registradas, em um grau sem precedentes na história; navegamos em um mundo de agentes corporativos que não respondem nem agem como pessoas. Nossas capacidades pessoais, tal como a credibilidade, acabam refletindo expressões da agência corporativa. Sem uma fé – justificada ou não – em públicos auto-organizados, organicamente ligados à nossa atividade em sua própria existência, capazes de serem destinatários de um discurso e capazes de ação, não seríamos nada além de peões do capital – o que é claro que podemos ser, e alguns de nós mais do que outros.

Na ideia de um público, a confiança política está comprometida com um destino estranho e incerto. Às vezes isso pode parecer algo muito estranho. Frequentemente não conseguimos nos imaginar dirigindo-nos a um público capaz de compreensão ou ação. Isto é especialmente verdadeiro no caso das pessoas que se acham em minoria ou na marginalidade, ou pessoas distribuídas através de sistemas políticos. O resultado pode ser uma espécie de depressão política, um bloqueio na atividade e otimismo, uma desintegração da política em direção ao isolamento, frustração, anomia, esquecimento. Esta possibilidade, que nunca pode ser excluída, revela por contraste o quanto fazer parte de algo exige confiança em um público. A confiança na possibilidade de um público não é simplesmente um trunfo nas mãos dos poderosos, dos especialistas e sábios, e subcelebridades oportunistas que tentam fazer de nós o seu público; a mesma confiança continua a ser vital para pessoas cujo papel na mídia pública é o de consumir, testemunhar, reclamar ou especular, em vez de um papel de plena participação ou fama. Se a fé é justificada ou parcialmente ideológica, um público só pode produzir um sentimento de pertencimento e atividade se é auto-organizado por meio do discurso, e não através de uma estrutura externa. É por isso que qualquer distorção ou bloqueio no acesso a um público pode ser tão grave, levando as pessoas a se sentirem impotentes e frustradas. Estruturas de atividade externamente organizadas, como o voto, por exemplo, são percebidas como um substituto pobre.

No entanto, talvez justamente porque parece tão importante pertencer a um público, ou ser capaz de saber algo sobre o público a que se pertence, tais substitutos têm sido produzidos em abundância. As pessoas têm tentado arduamente encontrar ou criar alguma forma externa de identificar o público, de resolver essa circularidade entre o ovo e a galinha. A ideia de que o público possa ser tão mutável e tão incognoscível como o público deste ensaio (você ainda está comigo?) parece enfraquecer o otimismo político que a acessibilidade do público permite.

Institutos de pesquisa e alguns cientistas sociais pensam que seu método é uma forma de definir um público como um grupo que poderia ser estudado empiricamente, independentemente do discurso que nutre sobre si mesmo. No início da história da pesquisa em teoria da comunicação e relações públicas, reconheceu-se que esta investigação ia ser difícil, uma vez que existem múltiplos públicos e que se pode pertencer a muitos públicos diferentes simultaneamente. Pesquisadores de opinião pública têm uma longa história de debate insatisfatório sobre este problema de método. O que determina se alguém pertence a um público ou não? Espaço e presença física não fazem muita diferença; um público é entendido como diferente de uma multidão, uma audiência, ou qualquer outro grupo que requeira copresença. A identidade pessoal por si só não faz de alguém parte de um público. Públicos diferem das nações, raças, profissões, ou quaisquer outros grupos que, embora não exigindo copresença, são impregnados de identidade. Pertencer a um público parece exigir um mínimo de participação, mesmo que passiva ou nocional, e não um estado de ser permanente. Prestar atenção, simplesmente, pode ser o suficiente para fazer de você membro de um público. Como se poderia, então, quantificar esse público?[1]

Alguns tentaram definir um público em termos de interesse comum, falando por exemplo de um público de uma política externa, ou do público de um esporte. Mas essa maneira de tratamento é apenas uma fuga do dilema do público autocriado. É como explicar a popularidade dos filmes ou romances como uma resposta à demanda do mercado; a alegação é circular, porque a demanda do mercado é inferida a partir da popularidade das próprias obras. A ideia de um interesse comum, como a de uma demanda do mercado, parece identificar a base social do discurso público, mas a base é de fato projetada a partir do próprio discurso público, ao invés de ser exterior a ele.

De todos os artifícios destinados a escapar dessa circularidade, o mais poderoso, de longe, tem sido a invenção da pesquisa de opinião. A pesquisa de opinião, juntamente com formas análogas de pesquisa de mercado, tenta nos dizer quais são os interesses, desejos e demandas de um público, sem simplesmente inferi-los do discurso público. É um elaborado aparelho concebido para caracterizar um público como fato social independente da destinação ou circulação discursiva. Como Pierre Bourdieu ressaltou, no entanto, este método continua negando o papel constitutivo da própria pesquisa como uma forma de mediação[2]. Habermas e outros têm enfatizado que esta ferramenta distorce sistematicamente a esfera pública, produzindo algo que se passa por opinião pública, quando na verdade resulta de uma forma que não tem nada do caráter aberto, estrutura reflexiva ou acessibilidade do discurso público. Eu acrescentaria que ela carece da criatividade encarnada e da capacidade de invenção de mundos, inerentes à dimensão pública. Públicos têm de ser entendidos como mediados por formas culturais, mesmo que algumas dessas formas, como a pesquisa, neguem seu próprio papel constitutivo como formas culturais. Públicos não existem à margem do discurso que a eles é dirigido.

Seriam eles, portanto, internos ao discurso? Os estudos literários muitas vezes entenderam um público como um destinatário da retórica, implícito nos textos. Mas o termo é geralmente empregado para indicar algo sobre a condição mundana do texto, o seu destino real, que pode ou não se assemelhar ao seu destinatário. A autobiografia de Benjamin Franklin, para tomar um exemplo famoso, manteve-se dirigida ao seu filho, mesmo depois de Franklin ter cortado relações com ele e decidido publicar o texto; o público da autobiografia resulta crucialmente distinto de seu destinatário. É claro que se pode distinguir, neste caso, entre o destinatário nominal e o destinatário implícito, mas é igualmente possível distinguir entre um destinatário implícito da retórica e um público-alvo de circulação. Que estes não sejam idênticos é o que permite às pessoas moldar o público ao abordá-lo de uma determinada maneira. Isto também permite que estas pessoas falhem, no caso de um destinatário da retórica não ser captado como o reflexo de um público.

O sentido de que um público seja uma restrição mundana no discurso, e não apenas uma criação livre desse discurso, dá credibilidade à abordagem contrária das ciências sociais. A natureza auto-organizada do público não significa que ele deva ser sempre espontâneo ou que organicamente expresse os desejos dos indivíduos. Embora a premissa do discurso auto-organizado seja necessária ao artefato cultural peculiar que chamamos de um público, é contradita tanto pelos limites materiais - meios de produção e distribuição, objetos textuais físicos, condições sociais de acesso - como por outros internos, incluindo a necessidade de pressupor formas de inteligibilidade já em vigor, bem como a clausura social acarretada por qualquer seleção de gênero, idioleto, estilo, abordagem, e assim por diante. Voltarei a essas restrições de circulação. No momento eu quero enfatizar que elas parecem arbitrárias em função da performatividade do discurso destinado a um público e da auto-organização implícita na ideia de um público.

Outra maneira de dizer o mesmo é que qualquer extensão empírica do público vai parecer arbitrariamente limitada, justamente porque o destinatário do discurso público está sempre ainda por realizar-se. Em alguns contextos da fala e da escrita, tanto o destinatário retórico quanto o público têm um referente empírico bastante claro: em correspondências e na maior parte dos e-mails, nos relatórios e memorandos que tramitam nos escritórios, em bilhetes de amor e cartões de dia dos namorados ou nas cartas que iniciam por “querido fulano...”, se entende que o objeto de endereçamento é uma pessoa ou conjunto de pessoas identificáveis. Mesmo que esse destinatário seja um ente público ou genérico – por exemplo, um comitê pessoal, um Congresso ou uma congregação de igreja -, é definido, conhecido, nomeável e quantificável. A interação é demarcada por uma relação social.

Mas em outras chaves e contextos de escrita - incluindo a crítica literária, jornalismo, teorias, propaganda, ficção, drama, a maior parte da poesia - os destinatários disponíveis são essencialmente imaginários, o que não quer dizer que sejam irreais: o povo, academia, a república das letras, posteridade, a geração mais jovem, a nação, a esquerda, o movimento, o mundo, a vanguarda, os pouco ilustrados, as “pessoas de bem” em toda parte, a opinião pública, a irmandade de todos os crentes, a humanidade, meus colegas queers. Todos estes são públicos. Eles são, em princípio, abertos. Eles existem em virtude de serem destinatários.

 

2) Um público é uma relação entre desconhecidos.

Outros tipos de escrita - escrita que tem um destinatário definido, que pode ser conhecido com antecedência - podem, é claro, extraviar-se. Escrever para um público incorpora esta tendência da escrita ou da fala como uma condição de possibilidade. Mas aí não se trata exatamente de um extravio, tendo em vista que alcançar desconhecidos é a orientação primária da escrita. Na modernidade, essa concepção de público é melhor ilustrada nos usos da mídia impressa ou eletrônica, mas também pode ser estendida para cenários de fala audível, isso no caso dessa fala ser orientada a desconhecidos indefinidos, uma vez que o horizonte crucial da "opinião pública" e seu imaginário social tenha sido disponibilizado. Nos tornamos capazes de reconhecer-nos como estranhos, mesmo quando nos conhecemos uns aos outros. Declamando este ensaio a um grupo de pessoas íntimas, eu ainda poderia ser ouvido como dirigindo-me a um público.

Uma vez que este tipo de público se apresenta como um imaginário social, devo acrescentar, a sociabilidade entre desconhecidos adquire inevitavelmente um caráter diferente. Na sociedade moderna, um estrangeiro não é tão maravilhosamente exótico como um nômade errante o teria sido em uma cidade antiga, medieval, ou mesmo numa cidade moderna. Nestas sociedades antigas, ou em análogas contemporâneas, um estrangeiro é misterioso, uma presença inquietante exigindo resolução[3]. No contexto de um público, no entanto, os desconhecidos podem ser tratados como já pertencentes ao nosso mundo. Mais: eles devem ser. Estamos rotineiramente orientados para eles na vida comum. Eles são uma característica normal do social. Os desconhecidos, no sentido antigo do termo – estrangeiro, alienígena, deslocado -, poderiam naturalmente fazer parte da cristandade, da ummah, de uma guilda ou de um exército - afiliações que se poderia partilhar com desconhecidos, tornando-os um pouco menos estranhos. Os desconhecidos alocados nestas filiações estão em um caminho de comunalidade. Os públicos nos orientam aos desconhecidos de uma maneira diferente. Eles não são mais apenas as pessoas-ainda-não-conhecidas; em vez disso, um ambiente de estranheza é a premissa necessária de alguns de nossos mais apreciados modos de ser. Enquanto os desconhecidos precisam estar em um caminho para o comum, em formas modernas a estranheza é o meio necessário de uma condição coletiva. O imaginário social moderno não faz sentido sem desconhecidos. Uma nação, um público ou um mercado em que todos pudessem ser conhecidos pessoalmente não seriam uma nação, um público ou um mercado afinal. Este ambiente constitutivo e normativo de estranheza é mais, também, que uma Gesellschaft[4] objetivamente descritível; ele requer nossa imaginação constantemente.

 

3) O destinatário do discurso público é ao mesmo tempo pessoal e impessoal.

O discurso público pode ter grande urgência e um significado íntimo. No entanto, sabemos que ele foi dirigido não exatamente para nós, mas para o desconhecido que éramos até o momento em que passamos a ser destinatários dele. (Eu estou pensando aqui em qualquer gênero dirigido a um público, incluindo romances e letras de músicas, bem como a crítica, ou outra prosa não-ficcional, e quase todos os gêneros de discursos de rádio, televisão, filmes e internet.) Habitar o discurso público implica em protagonizar esta transição continuamente, e em certa medida, isto permanece presente na consciência. O discurso público deve ser tomado de duas maneiras: como dirigido a nós e como dirigido a desconhecidos. O benefício nesta prática é que confere uma relevância social geral ao pensamento e à vida privada. Nossa subjetividade é entendida como tendo ressonância com outras, e de forma imediata. Mas isso só é verdade na medida em que o traço da nossa estranheza continua presente na nossa compreensão de nós mesmos como os destinatários.

Este elemento necessário de impessoalidade no endereçamento do público é uma das coisas que se perdem na noção althusseriana de interpelação, ao menos como é atualmente entendida. O famoso exemplo de Althusser é a fala dirigida a um desconhecido: um policial diz - "Ei, você!" No momento de reconhecer a si mesmo como o destinatário, no momento de olhar para trás, alguém é interpelado na qualidade sujeito do discurso estatal[5]. A análise de Althusser tinha a virtude de mostrar a importância da identificação imaginária, e localizá-la não na força coercitiva ou punitiva do Estado, mas na prática subjetiva da compreensão. Quando o modelo de interpelação é extraído a partir de exemplos como esse para explicar a cultura pública em geral, a análise será distorcida, pois o caso de Althusser não é um exemplo de discurso público. Um policial que diz: "Ei, você!" será percebido como se dirigindo a uma determinada pessoa, não a um público. Quando alguém se volta para trás, é em parte para verificar se é a pessoa em questão. Se não for, a pessoa segue seu caminho. Se assim for, então todas as outras pessoas que possam estar em pé na rua são espectadores, e não destinatários. Com a fala pública, por outro lado, podemos nos reconhecer como destinatários, mas é igualmente importante lembrarmos que a fala foi dirigida a pessoas indefinidas; que ao nos singularizar não o faz com base na nossa identidade concreta, mas apenas em virtude da nossa participação no discurso e, portanto, no que temos em comum com os desconhecidos. Não se trata de sermos abordados em público por sermos um determinado tipo de pessoa, ou que possamos não querer ser identificados como este tipo de pessoa (embora isso também seja muitas vezes o caso, como quando o público é tratado como heterossexual, branco, interessado em esportes ou americano). Não é exatamente o caso de termos sido identificados incorretamente. Parece mais o caso de dizer que públicos são diferentes de pessoas, que endereçar uma retórica pública nunca vai ser o mesmo que endereçar a pessoas reais, e que a nossa não-identidade parcial com o objeto de endereçamento na fala pública parece ser parte do que significa considerar algo como discurso público.

O apelo a desconhecidos nas formas circulantes de endereçamento ao público, portanto, ajuda-nos a distinguir o discurso público das formas de abordagem a determinadas pessoas em sua singularidade. Resta esclarecer melhor como um público poderia ser traduzido em uma imagem do público, como uma entidade social. Quem é o público? Será que inclui os meus vizinhos? O porteiro do meu prédio? Os meus alunos? As pessoas que circulam nos clubes e bares gays? Os proprietários da bodega da minha rua? Alguém que me liga no telefone, ou me envia um e-mail? Vocês? Encontramos pessoas em tantos contextos díspares que a ideia de um corpo ao qual todas elas possam pertencer, e no qual possam ser destinatárias do discurso, parece ter algo de desejável. Para dirigir-nos a um público não saímos por aí dizendo a mesma coisa para todas as pessoas. É como se disséssemos coisas num local de endereço indeterminado, esperando que as pessoas se encontrem ali. A diferença pode ser uma fonte de frustração, mas também é uma implicação direta da auto-organização do público como um corpo de desconhecidos unidos através da circulação de seu discurso, sem a qual o endereçamento público não teria sua importância especial para a modernidade.

 

4) Um público é constituído meramente pela atenção.

Se pressupõe que a maioria das classes e grupos sociais deva abranger seus membros o tempo todo, não importa a circunstância. Uma nação, por exemplo, inclui seus membros tanto se eles estiverem dormindo quanto acordados, sóbrios ou bêbados, sãos ou dementes, alertas ou em estado de coma. Já um público, uma vez que existe apenas em virtude de seu endereçamento, requer algum grau de atenção, mesmo que nocional, por parte de seus membros.

A qualidade cognitiva desta atenção é menos importante do que o mero fato da captação ativa. A atenção é a principal categoria de classificação pela qual membros e não membros são discriminados. Se você está lendo isso, ou ouvindo, ou vendo, ou presente diante disso, você faz parte deste público. Você pode estar fazendo várias coisas ao mesmo tempo no computador; a televisão pode estar ligada enquanto você estiver aspirando o tapete; ou você pode ter passado pelo campo de audição de um orador em uma sala de convenções, apenas porque ele estava no seu caminho para o banheiro. Não importa: ao entrar neste campo você cumpre a única condição de ingresso exigida por um público. É possível até mesmo compreendermos alguém dormindo durante um espetáculo de balé como um membro do público deste balé, porque a maioria das performances de balé contemporâneo é organizada como eventos voluntários, abertos a qualquer pessoa disposta a assistir ou, na maioria dos casos, a pagar para assistir. O ato de atenção envolvido na apresentação é suficiente para criar um público endereçável. Mas é indispensável algum tipo de captação ativa, mesmo que sonolenta.

A existência de um público é contingente da atividade de seus membros, seja nocional ou comprometida, e não da classificação categórica de seus membros, da posição objetivamente determinada que ocupam na estrutura social ou existência material. No autoconhecimento que os faz funcionar como tais, os públicos assemelham-se assim ao modelo de associação voluntária que é tão importante para a sociedade civil. Desde o início do período moderno cada vez mais instituições têm se conformado a este modelo. A velha ideia de uma igreja nacional estabelecida, por exemplo, permitiu à Igreja dirigir-se ela mesma aos membros letrados ou iletrados, virtuosos ou viciosos, competentes ou idiotas. Cada vez mais, as igrejas se veem inseridas em um mundo de múltiplas denominações, tendo de pensar a si mesmas não como a porção constituída de seus membros. Em lugar disso, elas a todo tempo se empenham em saudar os recém-chegados, buscando manter um rol de membros e solicitando sua atenção. Algumas ênfases doutrinárias, como aquelas sobre a fé ou a conversão, possibilitam que as igrejas orientem a si mesmas a esta captação ativa, da qual são cada vez mais dependentes.

Ainda assim, alguém pode juntar-se a uma igreja e, em seguida, parar de frequentá-la. Em alguns casos, pode-se inclusive nascer no seio de uma Igreja. Públicos, por outro lado, carecem de uma institucionalidade, começam a partir do momento de atenção, têm de predicar continuamente uma atenção renovada, e deixam de existir quando a atenção não é mais predicada. Eles são entidades virtuais, e não associações voluntárias. No entanto, em função de seu limiar de pertencimento ser uma posição ativa, eles podem ser entendidos dentro do quadro conceitual da sociedade civil; ou seja, como tendo uma filiação livre, voluntária e ativa. Onde quer que se evoque o caráter liberal da personalidade, o momento de tomada de posição que constitui um público pode ser visto como uma expressão da vontade dos seus membros. E este fato tem consequências enormes. Ele nos permite compreender os públicos como situações de autoatividade, de pertença histórica ao invés de intemporal, e de participação ativa ao invés de pertença adscrita. Sob as condições corretas, ele ainda nos permite atribuir a faculdade de agente a um público, mesmo que esse público careça de institucionalidade ou manifestação concreta.

O discurso público implora por atenção como uma criança. Textos clamam por nós. Imagens solicitam a nossa contemplação. Olhe aqui! Ouça! Ei! Ao fazê-lo, de modo algum nos tornam passivos. Pelo contrário. O sistema moderno de públicos cria uma fenomenologia social exigente. A nossa vontade de processar um apelo passageiro determina a que públicos pertencemos, e leva a cabo a sua extensão. A experiência da realidade social na modernidade resulta muito diferente daquelas de sociedades organizadas por laços de parentesco, status hereditário, filiação local, acesso político mediado, natividade paroquial ou ritual. Nessas configurações, o lugar que alguém ocupa na ordem comum é o que é independentemente de seus pensamentos, por mais intensa que algumas vezes sua carga afetiva possa ser. A energia apelativa dos públicos nos impõe uma carga diferente: ela nos faz crer que a nossa consciência pode ser decisiva. A direção do nosso olhar pode constituir o nosso mundo social.

Os temas que discuti até agora - a auto-organização dos públicos por meio do discurso, sua orientação em direção aos desconhecidos, a ambiguidade resultante do endereçamento pessoal e impessoal, a adesão como membro através da mera atenção - podem ser esclarecidos se nos lembrarmos de sua suposição comum, que percorre um longo caminho para explicar o desenvolvimento histórico dos outros temas:

 

5) Um público é o espaço social criado pela circulação reflexiva do discurso.

Esta dimensão é fácil de esquecer se pensarmos apenas em um evento de fala envolvendo orador e destinatário. Nesse intercâmbio localizado, a circulação pode parecer irrelevante, estranha. Essa é a razão pela qual os modelos de comunicação pública emissor/receptor ou autor/leitor são tão enganosos. Não existe um único texto que possa criar um público. Nem uma voz única, um único gênero, ou mesmo um único meio poderiam. Todos são insuficientes para criar o tipo de reflexividade que chamamos de um público, uma vez que este se entende como um espaço contínuo de encontro para o discurso. Textos por si só não criam públicos, mas sim a concatenação dos textos ao longo do tempo. Um texto pode ser destinado a um público somente quando um discurso previamente existente pode ser suposto, e quando um discurso responsivo pode ser postulado.

Entre o discurso que vem antes e o discurso que vem depois é preciso postular algum tipo de vínculo. E esse vínculo possui um caráter social; não é mera consecutividade no tempo, mas um contexto de interação. A maneira usual de imaginar o caráter interativo do discurso público se dá através de metáforas de conversação, da resposta, da réplica, deliberando. A relação social interativa de um público, em outras palavras, é percebida como se fosse uma relação entre falante/ouvinte ou autor/leitor. Discussão e polêmica, como gêneros dialógicos manifestos, continuam a ter um papel privilegiado na autocompreensão dos públicos. De fato, é notável que bem poucos trabalhos, mesmo nas formas mais sofisticadas da teoria, têm sido capazes de separar o discurso público de sua autocompreensão como conversação[6]. Ao abordar um público, no entanto, até mesmo textos de maior rigor argumentativo e dialógico dirigem-se também a espectadores, não apenas a partícipes da discussão. Eles tentam caracterizar o campo de interação possível. Quando aparecem em um campo público, gêneros como a discussão e a polêmica têm de adequar-se às condições especiais de endereçamento público; o interlocutor agonístico é colocado lado a lado com interlocutores passivos, inimigos declarados com estranhos indiferentes, partes abertas a uma situação de diálogo com partes cuja localização textual pode estar alhures, em outros gêneros ou cenas de circulação. O significado de qualquer expressão vocal depende do que é conhecido e antecipado por todas estas diferentes origens discursivas. Na discussão pública ou na polêmica, o ato principal é o de projetar o próprio campo de discussão - seus gêneros, a sua gama de circulação, suas participações, o seu idioma, seu repertório de agências. Qualquer posição é reflexiva, não apenas se autoafirmando, mas caracterizando sua relação com outras posições até os limites da cena de circulação imaginada. A relação interativa postulada no discurso público, em outras palavras, vai muito além da escala de conversação ou discussão, para abranger um mundo da vida multigenericamente organizada não apenas por um eixo relacional de enunciação e resposta, mas por eixos potencialmente infinitos de citação e caracterização.

 

6) Os públicos atuam historicamente de acordo com a temporalidade da sua circulação.

O tempo pontual da circulação é crucial no sentido de que a discussão atualmente está se desdobrando em uma esfera de atividade. Não é atemporal, como a meditação; nem carece de conteúdo, como a filosofia especulativa. Nem toda circulação acontece no mesmo ritmo, é claro, e isso explica as diferenças dramáticas entre os públicos em sua relação com possíveis cenas de atividade. Um público só pode agir na temporalidade da circulação que lhe dá existência. Quanto mais pontual e abreviada for a circulação, e quanto mais o discurso indexar a pontualidade de sua própria prática, mais próxima de um público fica a política. Nos ritmos mais longos ou nos fluxos contínuos, a ação se torna mais difícil de imaginar. Esta é a sina dos públicos acadêmicos, um fato pouco compreendido quando acadêmicos afirmam intencionalmente ou por proclamação que estão fazendo política. Na modernidade, a política toma muito do seu caráter de uma temporalidade como a das manchetes jornalísticas, não como a do arquivo.

Os públicos têm uma vida em curso: não se publica algo para um público de forma definitiva (como se faz, digamos, com um artigo acadêmico). É a maneira como os textos circulam, o que constitui a base para novas observações, que nos convence de que os públicos têm atividade e duração. Um texto, para ter um público, deve continuar a circular através do tempo, e por isso só pode ser confirmado através de um ambiente de citação intertextual e implicação; todos os públicos são intertextuais, mesmo os intergenéricos. Isso muitas vezes se perde de vista, porque a atividade e duração dos públicos são comumente estilizadas como a conversa ou uma tomada de decisão. Eu já sugeri que estas são ideologizações enganosas. Agora podemos ver por que elas são ilusões duráveis: porque conferem agência aos públicos. Não existe um momento em que a conversa pare e uma decisão siga, com exceção das eleições, que são conduzidas apenas por quadros jurídicos, e não pelos próprios públicos. No entanto, a ideologização é crucial no sentido em que os públicos atuam em uma temporalidade secular. Para sustentar esse sentido, o discurso público articula-se no tempo com os momentos de sua publicação e circulação.

Uma maneira através da qual a internet e outras novas mídias podem estar mudando profundamente a esfera pública, por sinal, é a da mudança que implica na temporalidade. Formas de circulação altamente mediadas e capitalizadas estão cada vez mais organizadas como contínuas (“acesso 24 horas do dia, 7 dias por semana”) ao invés de pontuais[7]. No momento da escrita deste texto, o discurso da internet tem muito pouco do campo citacional que nos permitiria falar dele como desdobramento de um discurso através do tempo. Uma vez que se disponibiliza um site, pode ser difícil dizer o quão recentemente algo foi postado ou atualizado, ou por quanto tempo continuará disponível. A maioria dos sites não são arquivados ou indexados de forma centralizada. O aparato reflexivo do discurso da internet consiste principalmente em links de hipertexto e sites de busca, e estes não são pontuais. Assim, embora haja exceções, incluindo a migração de alguns periódicos impressos para o formato eletrônico e o uso bem-sucedido da internet por parte de alguns movimentos sociais, ainda não está claro até que ponto a tecnologia em transformação será assimilável ao quadro temporal do discurso público[8]. Se a mudança de infraestrutura continuar nesse ritmo, e se os modos de apreensão mudarem em conformidade a ela, a ausência de ritmos pontuais pode tornar muito difícil conectar atos localizados de leitura com os modos de atuação no imaginário social da modernidade. Pode até mesmo ser necessário abandonar a "circulação" como categoria analítica. Mas aqui eu meramente ofereço este tema para especulação.

 

7) Um público é a feitura de mundo poético.

Em um público, o endereçamento indefinido e o discurso auto-organizado revelam um mundo vivido, cujo encerramento arbitrário permite o próprio discurso ao mesmo tempo em que está em contradição com ele. O discurso público, na natureza de seu endereçamento, abandona a segurança de sua audiência positiva e dada. Ele promete dirigir-se a alguém. Compromete-se, em princípio, com a possível participação de qualquer desconhecido. E, portanto, coloca em risco o mundo concreto que é a sua condição de possibilidade dada. Esta é a sua perversidade frutífera. O discurso público postula um campo circulatório de estranhamento, o qual ele se esforçará por capturar como uma entidade endereçável. Nenhuma forma com uma estrutura deste tipo poderia ser muito estável. O caráter projetivo do discurso público, em que cada caracterização do trajeto circulatório torna-se material para novos estranhamentos e recaracterizações, é um motor (não necessariamente progressivo) de mutação social.

O discurso público, em outras palavras, é poético. Com isso quero dizer não apenas que é auto-organizado, ou uma espécie de entidade criada pelo seu próprio discurso, nem mesmo que este espaço de circulação é levado a ser uma entidade social, mas que, para que isso aconteça, todo discurso ou performance dirigidos a um público devem caracterizar o mundo em que eles aspiram circular, e devem tentar tornar real este mundo através do endereçamento[9].

Não existe discurso ou performance dirigidos a um público que não tentem especificar antecipadamente, de inúmeras maneiras altamente condensadas, o mundo vital de sua própria circulação: não apenas através de suas pretensões discursivas - do modo como pode ser dito para orientar a compreensão - mas também através da pragmática de seus gêneros de discurso, expressões idiomáticas, marcadores estilísticos, endereçamento, temporalidade, mise en scène, campo citacional, protocolos de interlocução, léxicos, etc. Seu destino circulatório é a realização desse mundo. O discurso público diz não apenas: "Haja um público", mas também "que possa ter este caráter, falar desta forma, ver o mundo desta maneira”. Em seguida, ele sai em busca da confirmação de que esse público existe, com maior ou menor êxito – sendo este êxito toda tentativa de citar, pôr em circulação e perceber o mundo compreendendo suas articulações. Hastear a bandeira e ver quem a saúda. Produzir um show e ver quem aparece.

Esta dimensão performativa do discurso público, no entanto, é comumente reconhecida de forma incorreta. O discurso público subjaz à necessidade de abordar o seu público como pessoas reais já existentes. Ele não pode trabalhar declarando francamente seu projeto subjuntivo-criativo. Seu êxito depende do reconhecimento dos participantes e de sua posterior atividade circulatória, e as pessoas normalmente não se reconhecem como projeções virtuais. Elas se reconhecem apenas como sendo já destinatárias, pertencentes ao mundo que é condensado em seus discursos.

A função poética do discurso público é reconhecida erroneamente também por uma segunda razão, já mencionada acima em outro contexto: na tradição dominante da esfera pública, o endereçamento para um público é ideologizado como diálogo racional-crítico. A circulação do discurso público é imaginada de uma forma consistente, tanto na teoria popular quanto na mais sofisticada filosofia política, como diálogo ou discussão entre os interlocutores já presentes. A imagem dominante é algo como a de um parlamentar discursando na tribuna. Eu já havia observado que esta teoria popular favorece que a circularidade constitutiva de públicos desapareça da consciência, porque públicos são pensados para serem pessoas reais em interações diádicas entre autor/leitor, ao invés de uma circulação multigênero. Também tenho notado que a mesma ideologização permite a ideia de que os públicos possam ter a qualidade de agência volitiva: eles existem para deliberar e depois decidir. Aqui, a questão é que a percepção do discurso público como uma conversa obscurece a importância das funções poéticas, tanto da linguagem quanto da expressividade corporal, em dar uma forma particular para os públicos. Neste caso, o público é pensado para existir empiricamente, e para exigir a persuasão ao invés de poiesis. A circulação pública é entendida como uma discussão racional em larga escala.

Este desconhecimento constitutivo dos públicos se baseia em uma ideologia de linguagem particular. O discurso é entendido como sendo resumível em proposições; as qualidades poéticas ou textuais de qualquer elocução são desconsideradas em favor do sentido. Também atos de leitura são entendidos como replicáveis e uniformes[10]. Assim sucede com as opiniões, razão pela qual a leitura privada parece estar diretamente conectada ao poder soberano da opinião pública. Assim como o sentido pode ser resumido em proposições, as opiniões podem ser mantidas, transferidas, reformuladas indefinidamente. (O papel essencial desempenhado por este tipo de transposição no imaginário social moderno pode ajudar a explicar por que a filosofia moderna tem sido obcecada com a semântica referencial e com a fixidez.) Outros aspectos do discurso, incluindo o afeto e a expressividade, não são fungíveis da mesma forma. Sem dúvida, o desenvolvimento de tal ideologia da linguagem ajudou a possibilitar a existência de confiança na sociabilidade com o desconhecido, que é própria da circulação pública. Desconhecidos são menos desconhecidos se você pode confiar neles para ler como você lê, ou se o sentido do que eles dizem pode ser totalmente abstraído da maneira como eles o dizem.

Eu também suspeito que o desenvolvimento do imaginário social de públicos, como uma relação entre desconhecidos projetada a partir de leituras particulares de textos em circulação, tem exercido nos últimos três séculos uma poderosa força sobre a concepção do ser humano, elevando as faculdades do leitor privado, ou o que se entende como tal, à condição de faculdades essenciais (racional-críticas) ao homem. Se vocês conhecem e estão intimamente ligados a estranhos apenas por meio da leitura, opinião, argumentação e testemunho, então pode parecer natural que outras faculdades passem para um segundo plano, abandonando os níveis mais altos de pertença social. A hierarquia moderna das faculdades e o imaginário social estão mutuamente implicados. O discurso crítico do público corresponde, como soberano, ao poder superintendente do Estado. Assim, as dimensões da linguagem eleitas na ideologia da discussão racional-crítica adquirem prestígio e poder. Os públicos mais abertamente orientados em sua autocompreensão para as dimensões poético-expressivas da linguagem, incluindo os públicos artísticos e muitos contrapúblicos, carecem de poder para transpor-se à generalidade do Estado. Ao longo de toda a cadeia de equações na esfera pública - de atos privados de leitura ou cenas discursivas a um horizonte geral de opinião pública e sua oposição crítica ao poder do Estado -, a pragmática do discurso público deve se tornar sistematicamente imperceptível.

A unidade do público depende da estilização do ato de leitura como transparente e replicável; depende de uma clausura social arbitrária (através da linguagem, idioleto, gênero, mídia e endereçamento) para conter sua extensão potencialmente infinita; depende de formas institucionalizadas de poder para realizar a agência atribuída ao público; e depende de uma hierarquia de faculdades que permite que algumas atividades contem como públicas ou gerais, enquanto outras são pensadas como sendo meramente pessoais, privadas ou particulares. Alguns públicos, por estas razões, têm uma probabilidade maior do que outros para representar o público, para enquadrar o seu endereçamento como o debate universal do povo.

Mas, e quanto aos públicos que não fazem qualquer tentativa de apresentar-se desta maneira? Os seus membros são entendidos não apenas como sendo um subconjunto do público, mas sim constituídos através de uma relação conflituosa com o público dominante. Eles são estruturados por disposições ou protocolos diferentes daqueles que se obtêm em outros terrenos da cultura, fazendo suposições diferentes sobre o que pode ser dito ou o que não é preciso dizer. No sentido do termo que eu estou defendendo aqui, tais públicos são contrapúblicos, em um sentido mais forte do que a simples inclusão de subalternos em um programa de reformas. Um contrapúblico mantém em algum nível, consciente ou não, a noção de sua condição subordinada. O horizonte cultural ao qual ele se contrapõe não é apenas um público em geral ou mais amplo, mas um dominante. E o conflito não se estende apenas às ideias ou questões políticas, mas aos gêneros do discurso e modos de elocução que constituem o público, ou à hierarquia entre os distintos meios de comunicação. O discurso que o constitui não é meramente um idioma diferente ou alternativo, mas algo que em outros contextos seria considerado com hostilidade, ou com um senso de indecência.

Como todos os públicos, um contrapúblico passa a existir através de um endereçamento a desconhecidos indefinidos. (Esta é uma diferença significativa entre a noção de um contrapúblico e a noção de uma comunidade ou grupo.) Mas o discurso contrapúblico também se dirige aos desconhecidos como não sendo apenas um segmento qualquer. Eles são socialmente marcados por sua participação neste tipo de discurso; presume-se que as pessoas comuns não gostariam de ser confundidas com o tipo de pessoa que pudesse participar neste tipo de conversa, ou estar presente neste tipo de cena. Dirigir-se a desconhecidos indefinidos, em uma revista ou um sermão, tem um significado peculiar quando se sabe de antemão que a maioria das pessoas não vai querer ler uma revista gay ou ir a uma igreja de negros. Em alguns contextos, as trocas de código do bilinguismo podem exercer uma função similar à de manter o horizonte contrapúblico saliente - assim como a fragmentação linguística dos muitos cenários pós-coloniais cria resistência à ideia de um espaço suturado de circulação.

Dentro de um contrapúblico gay ou queer, por exemplo, ninguém está no armário: a heterossexualidade presumida que constitui o armário para indivíduos na fala comum é suspensa. Mas este espaço circulatório, livre de protocolos dos discursos heteronormativos, é ele próprio marcado por essa mesma suspensão: a fala direcionada a qualquer participante como queer irá circular até certo ponto, no qual por certo encontrará resistência intensa. Ela pode, portanto, circular em locais especiais, protegidos, em publicações limitadas. A luta individual com o estigma é transposta, por assim dizer, para o conflito entre modos de caráter público. A natureza expansiva do endereçamento público procurará manter esta fronteira em movimento para um público queer, buscando mais e mais lugares para circular onde as pessoas possam se reconhecer neste endereçamento, mesmo não tendo plena consciência do risco e conflito aí envolvidos.

Em alguns casos, como no do fundamentalismo ou em certos tipos de cultura jovem, os participantes não são subalternos por qualquer outra razão que não a da sua participação no discurso contrapúblico. Em outros, é possível predicar uma identidade socialmente estigmatizada, mas, nesses casos, um público de subalternos é apenas um contrapúblico quando seus participantes são abordados de uma forma contrapública, como, por exemplo, afro-americanos dispostos a falar em um idioma considerado como racialmente marcado. O status de subordinação de um contrapúblico não reflete simplesmente identidades formadas em outros lugares quaisquer; a participação nesse tipo de público é uma das maneiras pelas quais as identidades dos seus membros são formadas e transformadas. Uma hierarquia ou estigma são os fundamentos assumidos na prática. Entra-se nesse terreno por conta e risco próprios.

O discurso contrapúblico é muito mais do que a expressão da cultura subalterna, e muito mais do que alguns Foucaultianos chamam de "discurso reverso". Fundamentalmente mediados por formas públicas, os contrapúblicos incorporam o endereçamento pessoal/impessoal e o estranhamento expansivo das elocuções públicas como a condição de seu mundo comum. Talvez, nada demonstre mais a importância fundamental dos públicos discursivos no imaginário social moderno do que isso - mesmo os contrapúblicos que desafiam a hierarquia social moderna o fazem projetando o espaço de circulação discursiva entre desconhecidos como uma entidade social, e ao fazê-lo forjam suas próprias subjetividades em torno das exigências de circulação pública e sociabilidade entre desconhecidos[11].

 

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[1] Uma avaliação instrutiva dos problemas metodológicos pode ser encontrada em Communications and Public Opinion: A Public Opinion Quarterly Reader, ed. Robert O. Carlson (New York: Praeger, 1975); ver especialmente Floyd D. Allport, "Toward a Science of Public Opinion," 11—26; e Harwood Childs, "By Public Opinion I Mean—", 28—37.

[2] A crítica da pesquisa de opinião aparece em diversos contextos no trabalho de Bourdieu; ver especialmente "Opinion Polls: A 'Science' without a Scientist," em Pierre Bourdieu, In Other Words: Essays Towards a Reflexive Sociology, trad. Matthew Adamson (Stanford: Stanford Univ. Press, 1990), 168—76.

[3] Este antecedente exótico é o tipo de desconhecido que Georg Simmel tem em mente em seu muito citado ensaio de 1908 "The Stranger", em Georg Simmel, On Individuality and Social Forms (Chicago: Univ. of Chicago Press, 1971). Simmel não consegue distinguir entre o estrangeiro como representado pelo comerciante ou o Judeu Errante e o estrangeiro cuja presença na modernidade é normal, mesmo necessária para a natureza das polis modernas. Um dos elementos definidores da modernidade, a meu ver, é a sociabilidade normativa do desconhecido, de um tipo que parece surgir apenas quando o imaginário social não é definido por parentesco (como nas sociedades não-estatais), nem pelo lugar (como nas sociedades estatais até a modernidade), mas sim pelo discurso.

[4] O termo foi mantido em alemão (assim como na versão original de Publics and Counterpublics) em função da relevância de sua discussão para a sociologia, sobretudo a partir da publicação da teoria da contraposição entre comunidade e sociedade, apresentada por Ferdinand Tönnies em Gemeinschaft und Gesellschaft, de 1887. (N. da T.)

[5] Louis Althusser, "Ideology and Ideological State Apparatuses," em Lenin and Philosophy and Other Essays (New York: Monthly Review Press, 1971), 127—86.

[6] Como exemplo de uma análise promissora e rica marcada por este equívoco, ver Nina Eliasoph, Avoiding Politics: How Americans Produce Apathy in Everyday Life (Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1998). A ideia declarada, mas não examinada por Eliasoph é a de uma continuidade da discussão, da interação em pequena escala até os mais altos níveis de organização da política.

[7] Eyal Amiran discute a temporalidade da mídia eletrônica, de uma forma que difere substancialmente da minha, em seu "Electronic Time and the Serials Revolution," Yale Journal of Criticism 10 (1997): 445—454.

[8] É difícil avaliar esta transformação não apenas porque os efeitos das transformações no meio ainda não se tornaram visíveis, mas porque a infraestrutura do meio está ela mesma mudando. Sobre isso, a melhor referência que conheço é Lawrence Lessig, Code and Other Laws of Cyberspace (New York: Basic Books, 1999). O livro de Lessig, embora centrado na regulação legal do ciberespaço, também levanta importantes tópicos para uma discussão mais geral das novas mídias e suas implicações sociais.

[9] Até mesmo se o endereçamento é indireto. O estudo mais perspicaz que eu conheço sobre a relação estreita entre uma forma pública e um modo de vida é também um exemplo de implicação indireta de um contexto de recepção por uma forma que se recusa a endereçá-lo completamente: estou pensando em D. A. Miller, Place for Us: An Essay on the Broadway Musical (Cambridge: Harvard Univ. Press, 2000).

[10] Em toda a literatura sobre a história da leitura, o desenvolvimento desta ideologia continua a ser um fenômeno pouco estudado. Adrian Johns faz uma contribuição significativa em The Nature of the Book: Print and Knowledge in the Making (Chicago: Univ. of Chicago Press, 1998), especialmente p. 380—443. O estudo de Johns sugere que a ideia de leitura como um ato privado e dotado de significado replicável para desconhecidos dispersos pelo espaço, surgiu no período que deu origem aos públicos sob a forma moderna analisada aqui; também pode-se achar apoio a esta conjectura em Kevin Sharpe, Reading Revolutions: The Politics of Reading in Early Modern England (New Haven: Yale Univ. Press, 2000); Guglielmo Cavallo e Roger Chartier, eds., A History of Reading in the West (Amherst: Univ. of Massachusetts Press, 1999); e James Raven, Helen Small, e Naomi Tadmore, eds., The Practice and Representation of Reading in England (Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1996).

[11] Para um caso limite interessante, ver Charles Hirschkind, "Civic Virtue within Egypt's Islamic Counter-Public”, Cultural Anthropology 16.1 (2001). Hirschkind analisa os modos complexos de comentários e circulação no Egito contemporâneo; o que permanece pouco claro é o grau em que esta emergente e reativa cultura discursiva ainda pode ser chamada de um público.

O populismo como uma forma de mediação

 

Autor: Niels Werber

Tradução: Jorge Menna Barreto e Diogo de Moraes

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O populismo como uma forma de mediação[1]

 

 

“Vox populi! – é o eco da voz divina. Aquele que

trabalha com a lei e a justiça deve acatá-la.”

(Bettina von Armim, Dies Buch gehört dem König, Berlim: 1843, p. 277)

 

 

Populismo ou Iluminismo? Localização histórica

Em 1805, Johann Cristoph Greiling definiu popularidade como a habilidade de mediar entre as elites especializadas e um povo “carente de mediação”. Quando especialistas se dirigem aos leigos, deveriam manter a sua comunicação “popular”. Em vista da inevitável diferença de conhecimento, quando se sai dos limites mais estreitos de um discurso praticado entre especialistas, a “popularidade”, Greiling opina, torna-se necessariamente uma forma de “condescendência” por parte desses mesmos especialistas. Por exemplo, “descer ao nível das noções e do pensamento do povo”.  Isso também se aplica aos assuntos políticos ou, como em 1805, às instâncias superiores, quando “regentes” e “fazedores da lei” passam a se endereçar ao povo[2]. Seja uma questão de assuntos da ciência, arte, filosofia, religião ou medicina, Greiling pressupõe que exista um hiato entre os especialistas e a sua clientela, resultado da intensificação da diferenciação social e da complexidade dos assuntos em jogo. O próprio fato de que os poderosos e sábios deveriam passar a se endereçar “ao povo” é igualmente novo e se origina na forma moderna de inclusão das pessoas na sociedade. Colocado de outra forma, uma pessoa não mais é um nobre ou um camponês, alguém famoso ou um mendigo de nascença, mas ao invés disso desempenha diferentes papéis em diferentes contextos. Indivíduos agora devem se adaptar a “novos papéis complementares, tais como governo/sujeito, produtor/consumidor, professor/aluno, médico/paciente, artista/apreciador de arte e até mesmo padre/leigo”.[3] Por exemplo, o nobre não mais encontra apenas os seus similares ou as pessoas comuns, mas, dependendo do contexto funcional, pode encontrar-se desempenhando o papel de uma entidade legal, um comprador, aluno, recebedor ou cliente – se é que já não exerce, por meio de qualificações especiais que não têm relação com o seu nascimento, o papel de servidor civil, político, professor, etc. Esses papéis funcionais são, em larga medida, desenhados para serem completamente independentes entre si: o juiz pode se tornar um paciente, o acusado um artista, o padre ter que fazer suas compras a preços de mercado e um consumidor pode ser eleito como um membro do governo. Esse novo princípio de inclusão, tipicamente moderno, torna em primeiro lugar necessária a popularização da ciência, pois o processamento eficiente e racional de uma comunicação altamente especializada presume que os especialistas tenham que lidar com clientes que prontamente devem compreender os papéis de alunos, membros do eleitorado, defensores, pacientes e amantes da arte. As organizações dos diferentes sistemas funcionais alimentam seus respectivos clientes, que por sua vez saberão como votar, concluir um contrato, solicitar apoio para o aluguel, ter lucro, aplaudir um concerto, comportar-se em salas de espera ou dar um testemunho. Todas essas descrições pressupõem um hiato entre elites funcionais e seus respectivos clientes – o “povo” de Greiling – e em sua opinião só pode ser atravessado a partir de um lado, pelas elites condescendentes que se rebaixam até o nível do “povo”. Foi tarefa das elites se familiarizar com a arte e achar uma forma de abordagem para temas complexos que podem “em geral ser mediados”.

Na observação de Greiling, a “sociedade do conhecimento”, já altamente diferenciada e complexa por volta de 1800, exigiu um discurso especial para a mediação de seus conhecimentos, a fim de funcionar sem problemas, como algo natural”. Immanuel Kant tinha falecido há um ano apenas (1804) e a escola de filosofia transcendental que ele havia fundado exercia grande poder nos círculos alemães de estudos. Nos seus trabalhos mais influentes, por exemplo, seu tratado sobre a paz (1795) ou seu ensaio sobre o iluminismo (1784), Kant defende seus argumentos sem recorrer a pessoas ou seus papéis, mas citando o ser humano enquanto ser humano. O alicerce de sua ética foi o livre arbítrio do homem, tendo em vista que a igualdade de todos os homens formava a base de sua filosofia política, assim como a faculdade cognitiva humana era a base do iluminismo. Na famosa frase de abertura de seu opúsculo Resposta à Pergunta: O que é o iluminismo?, Kant afirma: “Iluminismo é a emergência do homem do seu estado de imaturidade auto-infligida”[4]. O ser humano, todos eles sem nenhuma exceção, conforme Kant acredita, deveria fazer justiça à sua habilidade definitiva de pensar por si mesmo ao invés de se deixar liderar por outros. O que poderia ser descrito do ponto-de-vista de Greiling como uma assimetria sociocultural, apareceria na perspectiva de Kant como um estado imaturo que todos nós, sem exceção, podemos superar e pelo qual somos os culpados:

Preguiça e covardia são as causas que explicam por que uma grande parte dos seres humanos, mesmo muito após a natureza tê-los declarado livres da orientação alheia, ainda permaneça, com gosto, e por toda a vida, na condição de menoridade. É tão confortável ser menor! Tenho à disposição um livro que entende por mim, um pastor que tem consciência por mim, um médico que prescreve uma dieta, etc.: então não preciso me esforçar. Eu não preciso pensar, contanto que eu possa pagar; outros em breve me substituirão nesse trabalho cansativo.

Hoje temos jornais para fornecer nossas opiniões, conselheiros de finanças para o nosso dinheiro e festas para a res publica… As comparações de Kant são especialmente reveladoras no contexto atual, haja vista que a literatura de não-ficção, os regulamentos médicos para dietas e as recomendações de um líder religioso também poderiam ser vistos como produto da divisão social do trabalho, ao invés de uma imaturidade a ser condenada. Permitir que outros deem conta do seu próprio negócio em troca de dinheiro poderia ser verdadeiramente considerado a fórmula subjacente da sociedade moderna, mas Kant insta o homem, e portanto os chama para resolverem seus próprios negócios. Não é suficiente ser um paciente ou confessar-se. É preciso ser um médico ou guia espiritual. Kant julga qualquer um que não faça isso como sendo preguiçoso ou covarde. A acusação de que você não lida com suas próprias transações teológicas, médicas ou científicas por conforto ou medo pressupõe que poderíamos fazer isso caso desejássemos, embora essa visão invariavelmente ignore o grau de complexidade da sociedade moderna, na qual a diferenciação funcional e a assimetria de papéis funcionais se alimentam reciprocamente[5]. Acadêmicos habilidosos que tudo sabem sequer existiam no final do século XVIII. Inevitavelmente, são os especialistas que encontramos e eles têm que transmitir o seu conhecimento para os outros, ou popularizá-lo. Há algo que nós leigos possamos fazer a não ser permanecer condenados à imaturidade?

Na Antiguidade clássica, conforme sugerido por Friederich Schlegel em seu Studiumsaufsatz de 1797, a popularidade não era um problema de como o conhecimento era mediado, já que todas as esferas do conhecimento baseavam-se na mitologia com a qual todo grego tinha familiaridade, fazendo com que qualquer ensinamento já fosse em princípio “exotérico” e “popular”[6]. Portanto, os mitos, Schlegel continua, tornavam desnecessários para os antigos deliberarem sobre como mediar seus insights. Já nos tempos modernos, isso acontece especificamente mediante à popularização. Schlegel afirma, por exemplo, que há um “contraste incisivo entre a arte mais erudita e a mais popular”; ele diz que a segunda se endereça ao “público” em geral e a primeira, só aos “acadêmicos”. Schlegel claramente já postula sobre as diferenças entre as artes erudita/popular e elitista/abrangente. Mesmo com mais esclarecimento não haverá mudança nesse diferencial, já que qualquer um que avance nos seus conhecimentos, tal como tornando-se, por exemplo, um conhecedor de arte, não poderá ao mesmo tempo estudar para tornar-se uma autoridade em assuntos de alimentação, impostos ou trajetória balística. Ao contrário de Kant, Schlegel não acusa o público de não se empenhar, seja por preguiça ou covardia, para tornar-se “estudioso” a ponto de poder apreciar a arte “erudita”. Ao invés disso, considera as assimetrias um marco da modernidade.

Precisamente hoje, dois tipos de poesia existem muito próximos um do outro; cada qual com o seu próprio público, seguindo seus próprios caminhos sem se preocupar um com o outro. Eles não dão a mínima importância um para o outro, exceto no caso de encontros acidentais, na forma de descaso ou desprezo; frequentemente com inveja secreta da popularidade de um ou da elegância do outro (p. 227).

Schlegel não quer aceitar essa bipartição moderna da sociedade, invocando assim a época pós-moderna para oferecer um “meio popular” que forje um vínculo com as massas[7]. Não é de se surpreender, dadas as suas deliberações sobre a Antiguidade Clássica, acreditando ter achado um meio na “nova mitologia”, uma mitologia criada artificialmente[8] e cuja função seria reintegrar a sociedade, que por sua vez se diferenciou em discursos especializados e sistemas funcionais. Gerhard Plumpe definiu consequentemente essa “nova mitologia” enquanto uma estratégia de “desdiferenciação” e “retotalização”[9]. Desnecessário dizer, a época futura dessa nova mitologia não seria mais moderna, pois teria superado precisamente as características estruturais típicas da modernidade e não haveria mais nenhuma necessidade de mediar informação, já que não haveria mais diferença entre especialistas e leigos. Em completa concordância com essa visão, Novalis escreveu: “O povo é uma ideia. Nós precisamos primeiro nos tornar um povo. Um ser humano perfeito é um povo em miniatura. A verdadeira popularidade é o objetivo mais alto de qualquer homem”[10]. Novalis acredita que a “popularidade” é um “ideal” (p.252), pois a “verdadeira popularidade” toma um mero agrupamento de indivíduos e os integra formando um “povo”. Para Schlegel e Novalis, o mito era o meio para atingir a popularização, assim como para os seus contemporâneos Hölderlin e Schelling. A primeira agenda romântica de retotalização mítica responde à diferenciação funcional da sociedade moderna, enfrentando o problema de como fazer a mediação entre a complexidade das especificidades sistêmicas da comunicação dos sistemas funcionais e a sociedade como um todo. Ou, mais simplesmente, como negociar a comunicação entre especialistas e o povo.

Tomando como referência a terrível experiência dos Nazistas reciclando mitos, ninguém quer optar por tal modelo: mas os sábios ainda buscam métodos de integração holística do homem a um discurso que não seja, por princípio, funcionalmente específico e portanto alienado. Jürgen Habermas, por exemplo, criticou o “anti-humanismo metodológico” de Luhmann e propôs “um mundo da vida[11] compartilhado intersubjetivamente” como um lugar onde o ser humano pode encontrar o seu lugar enquanto ser humano[12]. Aquilo que a teoria de sistemas “precisamente” sub-divide em sistemas funcionais, códigos especiais e assimetrias de papéis sempre esteve integrado foram integradas ao mundo da vida[13]. E pelo menos teoricamente, as pessoas participam do discurso deliberativo e não-dominador da “ação comunicativa” não a partir de seus papéis funcionais, mas enquanto seres falantes e racionais com a capacidade de “discurso argumentativo”, ao que Habermas adiciona um “poder unificador não-compulsivo para chegar num consenso” (p. 68). Condescendência e populismo não são necessários nessa perspectiva, porque o mundo da vida sempre se encarregou de mediar. O mundo da vida é o que a nova mitologia significava para Schlegel: um meio popular que reintegra o indivíduo na sociedade, que, sob o ponto de vista do “funcionalismo sistêmico”,  se desintegrou em “sub-sistemas” (p. 104).

 

Inclusão popular, integração populista

Habermas fala da “integração social” de indivíduos em seus mundos da vida (p. 100), enquanto Luhmann fala de inclusão de pessoas. A sociedade moderna, de acordo com Luhmann, está engrenada para alcançar a completa inclusão, mas não a integração. Todos podem ser uma entidade legal, participar das eleições, receber educação, ter permissão para trabalhar e comprar, seguir uma religião, amar, casar ou pesquisar. No mundo europeu pré-moderno, apenas uma pequena elite, por direito de nascença,  tinha acesso à lei e ao conhecimento. Logo, o acesso à honra e ao poder estava aberto apenas a ela. Já a sociedade moderna concebe a “inclusão sem exclusão”[14]. Não apenas certos estamentos ou associações, cujos membros eram por nascimento completamente integrados enquanto “pessoas em suas totalidades”, podem participar de determinados discursos; contrariamente, os sistemas funcionais estão engrenados para a “inclusão de todos”[15], embora isso não signifique seres humanos, mas sim pessoas no tocante aos papéis que desempenham. Cada pessoa pode desempenhar vários papéis, dependendo do contexto. Em contraste, uma princesa sempre será uma princesa e um fazendeiro, um fazendeiro, independente de quando ou onde. A harmonização dos muitos e diferentes papéis funcional-meritocráticos exercidos por indivíduos não é necessária, pois cada pessoa processa os diferentes sistemas funcionais de maneira distinta, dependendo do papel que tem. O que eu faço enquanto entidade legal ou consumidor não causa nenhum impacto no meu papel de aluno ou amante. Para Luhmann, não é possível haver um mundo da vida que integre esses diferentes discursos comunicativos.

Ninguém escapa aos sistemas funcionais. “Todos” devem ou deveriam “estar aptos a participar” em suas comunicações – mas por que? As “leis de inclusão estão sob responsabilidade dos sub-sistemas”, que oferecem oportunidades para que os “indivíduos” façam “conexões” estruturais[16]. Dito isso, essas oportunidades para inclusão devem ser aproveitadas e a probabilidade disso acontecer depende daquilo que eu chamarei de “a forma do popular”. No pensamento de Greiling, a popularidade já é uma forma de resolver o problema da diferenciação funcional. Ele reflete sobre problemas de mediação que resultam das assimetrias dos papéis funcionais modernos, orientados para um tipo de consecução que envolve os papéis de cliente. De acordo com Luhmann, todo mundo deveria “estar apto a participar da totalidade dos sistemas funcionais”. Entretanto, a elaboração e efetivação de “oportunidades de comunicação altamente diferenciadas” parece não realizar-se por si só (p. 625). Logo, conforme Greiling, seria necessário tornar esses sistemas “populares”. Sem a popularização, os especialistas correriam o risco de falar somente entre si, sem abranger seus clientes. É a forma do popular que primeiro transmite uma comunicação específica do sistema para todos, tornando a “inclusão interessante e atraente”[17]. Os sistemas funcionais fazem uso da “forma do popular” para atingir a todos e motivá-los a adotar papéis funcionais (enquanto eleitores, compradores, receptores, estudantes, etc.). Falando empiricamente, essa pressuposição é corroborada pelo fato de que os partidos, os conselhos administrativos e as autoridades locais tendem a contratar agências de propaganda e estúdios gráficos para tornar suas respectivas agendas “amplamente comunicáveis” ou precisamente “populares”, ao invés de apoiar-se em suas próprias elites e jargões. Os especialistas se apoiam na “mídia popular” para transmitir à população geral as especificidades de sua percepção sobre as necessidades de reforma do sistema de benefícios para os desempregados, o fechamento de fábricas ou a construção de novas rodovias. Os dados foram lançados e agora os clientes (eleitores, trabalhadores, residentes, pensionistas, etc.) devem entender que eles precisavam ter sido lançados. Desnecessário dizer que “entender” significa “aceitar” ou “aprovar”. Comunicar a reforma do sistema de benefícios para os desempregados não significa transformar seus clientes em especialistas, de acordo com a demanda de Kant, mas sim persuadi-los a concordar. Vox populi é uma voz que deve repetir aquilo que já foi dito, pois os especialistas já “popularizaram” de antemão aquilo que o povo deve dizer. Nesse contexto de mediação da mensagem, o objetivo não é apenas a inclusão, mas também a afirmação.

Não é suficiente tomar decisões dentro do sistema, sustentando os seus códigos legalmente, esteticamente, politicamente, economicamente ou cientificamente, pois a decisão deve ser mediada. Se você quer que eleitores em potencial votem, consumidores comprem, amantes casem, trabalhadores paguem impostos, crianças aprendam, espectadores assistam TV ou católicos mantenham sua fé, então você precisa de métodos populares de inclusão. Se a comunicação popular é especialmente organizada para esse fim, então é sobre propaganda que estamos falando. Se tal comunicação popular não serve apenas para a inclusão de pessoas, mas também para o condicionamento e controle das massas – buscando atingir objetivos outros, que não só o da inclusão –, então o que temos são métodos populistas de mediação. Estamos de volta ao médico ou conselheiro espiritual de Kant, que parecem esperar que seus clientes simplesmente aceitem recomendações pré-fabricadas. Criticamos Kant pela impossibilidade de se estabelecer uma conversa entre iguais na sociedade moderna, já que os leigos jamais superarão o abismo de conhecimento que os separa dos especialistas. Dificilmente poderíamos esperar mais de nossos cientistas e médicos, teólogos e economistas do que sua condescendência em relação ao povo, ou que exijam dos leigos algo além da leitura da brochura de informações para pacientes, ou da confiança na verdade do conhecimento disponível em uma enciclopédia ou, ainda, do comprometimento com as recomendações de investimento do corretor financeiro. Essa confiança não se baseia em um condicionamento correspondente, mas na possibilidade de se consultar uma segunda ou terceira opiniões. A assimetria de papéis não implica que inevitavelmente o leigo seja controlado pelo especialista. Embora seja exatamente isso que o populismo político tente alcançar.

Um “pôster” ou “volante”, uma “imagem” e um “filme”, as “milhares de repetições dos conceitos mais básicos” e, na maior parte das vezes, os “textos curtos” alcançam “amplas massas” mais rápida e incisivamente do que as opiniões de especialistas, cheias de “verdades científicas”. Pelo menos é assim que os especialistas imaginam[18]. Adolph Hitler baseou sua campanha publicitária contra a República de Weimar nas “práticas” da “mais bem sucedida agência de publicidade”[19]. A conversa aqui é assumidamente sobre papéis funcionais, mas com a intenção de suplantar a pluralidade dos papéis complementares na comunidade de pessoas e líderes. Em consideração aos “sentimentos das massas” e sua “habilidade limitada de compreender”, a transmissão de mensagens é aperfeiçoada para se tornar uma “arte da propaganda”, que não é endereçada ao indivíduo em toda a sua complexidade factual, mas simplesmente informa as massas[20]. As pessoas não são incluídas em diferentes papéis, em distintos sistemas funcionais, mas são integradas na homogeneidade da massa, ou na comunidade do povo – ou excluídas, se não extintas. A noção romântica de que um meio popular como o mito poderia reintegrar um vasto número de indivíduos alienados para formar um povo é pervertida pelos nazistas e articulada como um controle das massas pela propaganda. Aqui, as assimetrias modernas entre especialistas e leigos é simplificada, reduzida à noção de que a elite tem liderança sobre os leigos. “Se a publicidade infundiu uma ideia em uma população inteira, então a organização pode tomar o controle, dirigida por apenas algumas pessoas”[21]. O meio escolhido para a integração totalitária dos indivíduos na comunidade do povo não foi um “mito”, como queria Rosenberg[22], mas as mais novas modalidades da mídia de massa, a saber, o rádio e o filme, pôsteres e anúncios publicitários. Seu sucesso é atribuído à habilidade de subverter a especificidade de papel do indivíduo de modo a não endereçar-se ao “produtor/consumidor, professor/aluno, médico/paciente, artista/amante da arte”, ou mesmo “padre/leigo”, mas, ao invés disso, endereçar-se ao ser humano por trás de todos esses papéis, cujas funções Pavlov e Skinner pesquisaram e que a publicidade agora se empenha em controlar no nível das massas.

Os métodos populistas para a implantação de lemas ou ideias nas massas são baseados no “aspecto essencialmente ‘fascista’ da realidade das mídias de transmissão”[23] que informam as massas. Num dos primeiros tratados de cinematografia, escrito em 1916, o psicotécnico Hugo Münsterberg afirmou que o cinema não servia apenas para dirigir a atenção das massas, mas também para condicionar as massas por meio de estímulos subliminais para que os espectadores agissem como se estivessem em transe[24]. A mídia de massa e, sobretudo, o cinema foram os meios mais influentes e importantes de chamar e dirigir a atenção, “sugerindo” uma conotação positiva/negativa para lemas ou mercadorias, de acordo com Edgar Stern-Rubarth em 1921[25]. Münsterberg descobriu as bases para o sucesso do cinema nos princípios da psicologia humana. Ninguém pode escapar dos mecanismos de um close-up[26], por isso um filme consegue alcançar todos aqueles que tiverem alma em uma plateia. Os meios de massa criam, por si só, aquela plateia anônima e inespecífica, à qual a publicidade também irá endereçar-se para comandar. Já em 1916, o cinema era considerado “a forma de entretenimento mais popular no [...] mundo” e sua influência, “uma das energias mais fortes de nossos tempos. Sinais indicam que essa popularidade e influência tem crescido dia após dia”[27]. Popularidade e influência fazem desse novo meio uma forma comprovada de “sugestão em massa mais ou menos subconsciente e explícita”[28]. Aqui, o popular não está focado na inclusão de pessoas alinhadas aos seus papéis, mantendo a diferenciação funcional, mas sim na integração totalitária em uma comunidade que, devido ao seu condicionamento, é controlada por seus líderes. Mediar essas mensagens para as massas (ou melhor, “marcá-las a fogo” nas mentes das massas)[29], integrando-as em uma comunidade, seria genuinamente populista.

 

Mediar arte como a arte da mediação

Participante: Aquelas são as cores primárias.

Imdahl: Correto, e por que se chamam cores primárias?

P: Porque não são misturadas, são cores naturais tal como encontradas na natureza.

I: Está certo. Vocês ouviram o que ele falou? [...] Usando essas cores você pode misturar para fazer outras cores, mas você não pode chegar nas primárias misturando as outras cores.

P: Não, não pode.

I:  Não, não pode[30].

 

Seria possível conceber uma alternativa entre a fragmentação de humanos em papéis, promovida pela teoria de sistemas, e a reintegração populista na comunidade? Não seria possível evitar a alienação humana,  deixando de tratar o indivíduo como um mero destinatário das comunicações específicas do sistema? Ou impedir que o homem se degrade a ponto de ser apenas um fragmento condicionado de uma massa manipulada? Nessa linha, seria possível nutrir um discurso que não se enderece às pessoas em termos de seus papéis e nem tente dirigir as massas, mas, como Kant já dizia, busque falar com humanos enquanto humanos? Um discurso assim, popular, teria que subverter as assimetrias que Luhmann observou e, ainda, resistir à tentação de optar por uma arte da mediação que fosse “propangandística” ou populista, não teria? Um “discurso não-dominador” da mediação que viesse após a II Guerra Mundial teria que desistir do uso da mídia de massa, pois despertaria abriria uma enorme suspeita quanto a sua submissão ao poder”. O capítulo sobre a indústria cultural na Dialética do Esclarecimento dá o tom aqui. Adorno e Horkheimer compartilham da crença, predominante nas décadas de 1920 e 1930, de que os avanços das “psicotécnicas” poderiam levar ao “tratamento comportamentalista do homem”, mediante o uso dos mais novos meios, como cinema, publicidade, revistas ilustradas e rádio para integrar os indivíduos nas massas, que então responderiam aos “sinais” da maneira como Pavlov condicionova os cães[31]. Adorno e Horkheimer não deixam de enfatizar que as tecnologias “populares” de mediação estão aqui operando e que, precisamente, o “ministro da educação de massa” nazista era um mestre da “popularidade” (p. 166). Aos olhos dos críticos da indústria cultural, foi precisamente porque os métodos de Adolf Hitler eram populares que ele os descreveu em Mein Kampf: a implantação de lemas e slogans na psique das massas, utilizando a mídia. A concepção de que a classe dominante pode, usando as mídias de massa, dirigir ostensivamente a plateia a partir de “signos” pré-definidos (p. 166) é uma noção que Adorno e Horkheimer compartilham com Hitler e a maior parte dos teóricos da mídia na primeira metade do século XX. Além de tudo, a crítica formulada por Adorno do “sistema” de mídia foi tão influente que, até o final da década de 1990, a velha hipótese do capítulo sobre indústria cultural, assim como a mais antiga fórmula do controle de massa, foi repetida:

A esfera pública simultaneamente pré-estruturada e dominada pelos meios de comunicação desenvolveu uma arena infiltrada por poder, na qual uma luta é travada não apenas para exercer influência (por meio da seleção tópica e da contribuição tópica), mas também para controlar os fluxos de comunicação que afetam o comportamento do público, ao passo que as suas intenções estratégicas são mantidas escondidas o tanto quanto possível[32].

Todos os comentadores ainda estão convencidos do fato de que as massas podem ser controladas por quem injeta bilhões de dólares em doações e anúncios de TV durante as eleições presidenciais nos EUA, com a finalidade de influir no resultado do pleito – como se os eleitores não tivessem voto e apenas respondessem a sinais.

Dessa perspectiva da “Escola de Frankfurt”, um discurso só poderia ser não-dominador e não-hegemônico se ocorresse para além da mídia de massa, pois esta sempre será “orientada pelo poder”, o que significa que ele deveria ocorrer em interação “direta” entre pessoas presentes no mesmo local e momento.  Não é uma coincidência que os românticos programaticamente preferissem o meio da conversa ao da publicação. Habermas desenhou seu modelo da esfera pública democrática pegando o gancho da interação, algo que só pode ser minado e colonizado pela mídia[33]. Qualquer um que acredite que a estratégia populista dos controladores da mídia de massa está sempre operante terá que recorrer à interação pública entre pessoas em um mesmo local e momento. Eu gostaria de comentar uma tentativa paradigmática nesse sentido.

Um dos livros mais conhecidos de Max Imdahl é a obra documental que ele publicou em 1982, tratando dos seminários que aconteceram em 1979 e 1980 na fábrica Bayerwerk em Leverkusen, dirigido aos trabalhadores de colarinho azul e de colarinho branco. O que motivou esse famoso “professor de história da arte da Universidade Ruhr de Bochum” a apresentar “12 seminários de discussão sobre arte moderna” justamente na Fábrica Bayer AG, Leverkusen? (p. 7) O que ele queria, o próprio Imdahl escreveu, era simplesmente:

...discutir arte moderna [...] de maneira completamente livre. Todos podiam simplesmente dizer o que pensavam! Esse também foi o grande ganho que os encontros proporcionaram para mim, porque na universidade, se eu fizesse isso em Bochum com meus alunos, eles teriam um posicionamento bem diferente e sentiriam medo, talvez, de falar alguma bobagem ou qualquer coisa, como se estivessem correndo um risco. Agora, aqui, você realmente pode dizer o que você pensa e se você considera que algo seja uma completa bobagem então pode simplesmente dizê-lo. (p.13)

Ao contrário de seus alunos temerosos, os quais permanecem bloqueados mentalmente por seus papéis, estereótipos e interesses (graduações, créditos e diplomas), Imdahl esperava que os trabalhadores da Bayer protagonizassem uma discussão autêntica sobre arte. Inclusive, a pré-condição para que Imdahl se dispusesse a atuar como professor, naquela situação, tinha justamente a ver com o fato de que os trabalhadores não eram seus alunos. “O meu desejo”, dizia ele aos participantes em diversas ocasiões, “é que vocês – já que a nossa relação não pressupõe dependência de nenhuma parte – deixem suas mentes falar”. E também, “vocês realmente devem dizer aquilo que pensam dever dizer, sem levar em conta se o que dizem é verdadeiro ou falso”. “Acima de tudo”, conclamava, “bom é aquilo que é dito honestamente, e isso é o principal”. (p. 42) A diferenciação assimétrica de papéis entre professor e aluno, com toda a relação de poder aí em jogo, cede lugar à igualdade fundamental entre pessoas que podem descrever e refletir sobre sua experiência estética da arte moderna sem qualquer impedimento ou dominação. O ser humano torna-se, ele/ela mesmo/a, o “meio popular”. Imdahl está tão convencido dos fundamentos antropológicos do discurso sobre arte que, de maneira explícita, abre mão de sua especialização profissional. A conversa honesta e aberta tem a capacidade de tornar supérflua qualquer disposição condescendente no acadêmico..

Se você pudesse explicar um pouco melhor aquilo que quer dizer – Imdahl se dirige a um participante – nada poderia dar errado. Tudo o que posso lhe dizer é que eu não sei mais do que você. Porque sou da opinião de que ninguém aqui precisa saber nada (...). Logo, somos todos igualmente burros ou inteligentes quando confrontamos o fenômeno. É por isso que você deve dizer o que pensa. (p. 110)

É exatamente isso que românticos como Schlegel ou Novalis haviam esperado. É também a mesma esperança retomada por Habermas 150 anos depois: não somos personagens ou um amontoado de papéis, mas seres humanos; somos todos iguais, nenhuma pessoa sabe mais do que a outra. Imdahl afirma repetidamente que não há diferença entre ele – um professor de história da arte – e os trabalhadores da Bayer no que diz respeito à experiência com as pinturas de Josef Albers, Barnett Newman, Max Bill, Victor Vasarely, Pablo Picasso ou Piet Mondrian, pois todos são seres humanos. Graças às suas qualidades antropológicas fundamentais, todos são capazes de viver "experiências reais" ao ver arte moderna – qualquer que seja a natureza de tais experiências. (p. 68) A "reivindicação" em descrever como a arte "abre as estruturas da existência à experiência" corre como um fio vermelho por todas as publicações de Imdahl sobre história da arte.[34] Esta experiência existencial das pinturas não é destinada exclusivamente aos historiadores ou críticos de arte, por exemplo, mas “essencialmente [...] destinada aos seres humanos”. Ela não apenas pode ser compartilhada por aqueles que têm “paciência” para demorar-se diante de um quadro por um tempo, ou “uma hora”. Tal foi o caso dos trabalhadores da Bayer, que vivenciaram a experiência de um modo especial, na medida em que se envolveram na discussão “sem que [...] vinculassem suas questões a um conhecimento supostamente profissional das artes visuais”. (p. 69) Ou seja, eles puderam tomar parte num discurso de forma "desinteressada", para além de objetivos pré-estabelecidos, praticando uma comunicação não-dominadora, autêntica e comprometida exclusivamente com a verdade. Imdahl sugere que apenas as "qualidades humanas" dos participantes são ativadas por tal discursividade, a qual permite ao indivíduo moderno se desvencilhar de papéis interessados ou alienados. É como se essa discursividade não-dominadora, que Jürgen Habermas tentou deduzir a partir dos primeiros princípios da racionalidade comunicativa, tivesse realmente ocorrido em 5 de Novembro de 1979 em Leverkusen... Pois naquela ocasião as pessoas puderam falar sobre arte umas com as outras em uma chave que não a da relação entre aluno e professor. Outro renomado professor universitário, Hans Robert Jauβ, declarou com grande apreço em seu ensaio In memoriam Max Imdahl que "a criação dos seminários na Bayer de Leverkusen" foi "a mais original das empreitadas de Imdahl".

Ali, "a teoria de Imdahl sobre a evidência inconteste da experiência gerada pelas imagens" celebrou o seu verdadeiro e completo "triunfo". Nesta empreitada, Imdahl ganhou a "aposta" de que "a arte moderna, mesmo em suas vertentes não-figurativas, toca não apenas os peritos, mas também observadores que não tiveram formação estética". As experiências com aquilo que "até então [eles] não haviam experimentado" se deram ali de tal forma, que "puderam ser comunicadas sem qualquer restrição". Jauβ afirma que, de maneira espontânea, a arte proporciona experiências claras o bastante aos seus observadores, não exigindo um público específico, versado em história da arte – como, por outro lado, propunha Tom Wolfe em tom polêmico –, dado que ela requer simplesmente pessoas com olhos para ver.[35]

“A publicação Arbeiter diskutieren moderne Kunst” demostrou, e Jauβ sustentou, “que neste círculo, em última instância, o que é percebido e expresso acerca das obras de Max Bill e Piet Mondrian, Joseph Albers e Barnett Newman não difere do assunto discutido no círculo de debates dos teóricos em Bad Homburg”. [36] Para o círculo altamente exclusivo reunido em torno da série de publicações Poetik und Hermeneutik, trata-se simplesmente de humanos que falam sobre suas experiências, como numa cantina cheia de operários de uma fábrica de químicos. A discrepância entre os peritos e incultos é aqui eliminada. “Atravessar a fronteira, fechar a lacuna”, diria o teórico da cultura pop Leslie Fiedler, reforçando o argumento.[37] O "contraste incisivo", observou Schlegel, entre o "público" em geral e os "estudiosos" deixa de existir. A coisa mais importante, Imdahl afirma, é que “você deve dizer, não eu”. (p. 69) Afinal, a publicação em questão intitula-se Arbeiter diskutieren moderne Kunst (Trabalhadores discutem arte moderna), e não Imdahl ensina arte moderna. Então, o que exatamente Imdahl fazia? Ele atuava como um intermediário, um mediador! O gerente da Bayer AG Leverkusen, professor Eberhard Weise, expressou isso de forma inequívoca:

Partimos da pressuposição de que a nossa cultura – e a arte contemporânea é uma parte fundamental dela – realmente pertence a todos. Ela não deve ser destinada apenas a um grupo seleto... Mas se a produção contemporânea em arte de fato pertence a todos, então todos nós devemos estar preparados para lidar com ela. Desnecessário dizer que um grau de mediação é requerido para aqueles que não mantêm uma relação cotidiana com a arte moderna. Para este fim, deve ser encontrado alguém que, por um lado, seja um especialista e tenha conhecimento para falar sobre arte moderna e que, por outro, também esteja preparado para apresentar o assunto de uma forma que todos possam entendê-lo.[38]

Apesar de toda a retórica da igualdade, há uma diferença entre o especialista e o leigo. Afinal de contas, aquele deve mediar o assunto em questão para este, ainda que o problema central aqui seja saber se o "assunto em pauta", quando mediado, continua sendo o mesmo de antes. De qualquer forma, "é necessário um grau de mediação", a fim de garantir que no término da série de encontros os trabalhadores da fábrica de químicos não tenham experimentado e expressado, em última instância, qualquer outra coisa senão aquilo que foi proposto pelo historiador da arte. Contudo, se o resultado da mediação é definido de antemão, a criação retórica da igualdade poderia ser vista como uma forma de eliminação da diferença.

Tudo o que posso lhe dizer é que eu não sei mais do que você. Porque sou da opinião de que ninguém aqui precisa saber nada (...). Logo, somos todos igualmente burros ou inteligentes quando confrontamos o fenômeno”. O discurso de Imdahl pressupõe que todos percebem/recebem o fenômeno do mesmo modo.  Ele varre o ato da mediação para debaixo do tapete – em seu seminário isso aparece na maneira mais ou menos engenhosa com que ele preside as sessões. Por exemplo, ele transforma com habilidade retórica a declaração de um participante sobre as cores primárias – que, basicamente, fazia menção à manifestação destas na natureza – numa asserção sobre a derivação de todas as outras cores, que seriam resultantes de misturas entre as cores primárias. Toda a discussão do seminário segue essa mesma lógica. Imdahl não apenas determina quais pinturas serão apreciadas e comentadas em conjunto, como também propõe as questões e seleciona as respostas. A reformulação que Imdahl pratica a partir dessas respostas abre caminho para os resultados por ele desejados – nos quais as discussões estão baseadas. Se um participante diz, por exemplo, sobre O Sonho de Picasso, que a obra apresenta uma pessoa que “sonha e, por tudo que sei, pensa em sua irmã ou mãe”, então Imdahl retoma este ponto de vista entusiasticamente (“Eu gosto do que você diz...”) apenas para, na sequência, reformular a afirmação ao ponto de apresentá-la de forma bastante diferente, mediante a sua recapitulação: “Agora, se eu puder simplesmente repetir o que foi dito aqui, porque isso é muito importante: a pessoa representada sonha com o seu próprio outro eu, o qual ela deseja ser. Agora sigamos em frente!”. O participante, que tinha dito algo completamente diferente, simplesmente afirma: “Sim, foi o que eu disse”. (p. 121) Embora Imdahl sustente repetidamente que “você falou aquilo que era mais importante, não eu” (p. 69), as discussões realmente seguem um controle muito rigoroso de interação, o qual está completamente nas mãos do professor. Isso é ocasionalmente percebido por um participante, e criticado. “Participante: Você está tentando nos convencer de algo aqui. / Imdahl: Mas por quê? / P: Você está continuamente transformando nossas opiniões e, dessa forma, modificando-as – e então diz ‘sim’; no entanto, se surge uma opinião diferente, então você não diz ‘sim’, mas ‘seria possível?’. Se uma opinião surge e se encaixa com o seu argumento, então você diz ‘sim’.” (p. 133) Apenas enunciações convergentes com a linha de convicções teóricas de Imdahl são escolhidas para reformulações e declarações conclusivas. Muitas observações interessantes, como, por exemplo, a de que as Constelações Estruturais de Albers são constituídas “apenas por linhas”, não são retomadas. Fica claro que a vox populi (voz do povo) apenas coincide com a vox veritatis (voz da verdade) se ela se adequa aos propósitos de Imdahl. De nenhum modo todas as enunciações ligadas à experiência estética provaram ser adequadas à discussão, mas apenas aquelas que se adaptavam a uma teoria hegemônica da arte moderna.

Talvez pudéssemos tratar o momento em que o participante acredita reconhecer a recorrência de sua própria observação na hipótese de Imdahl sobre história da arte como a transição para as formas populistas de mediação. Mas populista não porque a voz das pessoas estaria sendo ostensivamente representada. É como se não existisse a opinião das pessoas: “Ninguém tem como opinião (...): 40% para o CDU, 37% para o SPD, 4% para o FDP, 6% para os Verdes e 13% indecisos.”[39] Em vez disso, é populista porque o participante do seminário era conduzido a considerar uma hipótese específica apresentada por um especialista como sendo o resultado de sua própria voz. [40] A arte da mediação populista induz o leigo a comentar: “Sim, eu disse isso”, quando o especialista diz a ele que, “em última instância”, sua hipótese corresponde àquilo que o leigo já havia dito.

 

Vox veritatis, vox populi

Majestas populi (Majestade do povo)

Majestade da natureza humana! Eu deveria procurar por você na

Multidão? Você sempre viveu com alguns poucos.

Pertences a pouquíssimos indivíduos, todos os demais são cegos

Imprestáveis; sua turba vazia oculta justamente os vencedores.[41]

(Friedrich Schiller, Gedichte, 1797 [primeira impressão])

 

Agora podemos generalizar. O populismo medeia questões definidas de antemão para o seu público. A forma como opera faz com que este público acredite que ele próprio decidiu ou queira decidir o rumo das coisas. Mas na verdade a decisão é tomada previamente por círculos da elite, seja nas grandes reformas do sistema fiscal, na renúncia por aumentos salariais, seja no fechamento de uma fábrica ou mesmo de bases militares – tudo o que tem de ser feito é transmitir essas decisões para as massas. Neste contexto, a tentativa de mediar a decisão é o mesmo que uma tentativa de controle. Aquilo que deve ser mediado é "inculcado" nas mentes das massas pela mídia popular. Mesmo as mais ambiciosas tentativas de subverter os pressupostos do populismo (assimetria de papéis, discrepâncias entre a elite e a massa, difusão de um-para-muitos), mediante a prática de um discurso não-hegemônico entre iguais, estariam fadadas ao fracasso, a menos que renunciassem ao objetivo de transmitir uma mensagem. Mesmo contrárias às profissões e aos esforços mencionados, as interações entre pessoas presentes se baseiam em técnicas populistas, a fim de alcançar uma escuta e um seguimento obediente à voz da verdade. Em outras palavras, o populismo não significa necessariamente recorrer à opinião popular (vox populi) a fim de destaca-la e, com isso, defendê-la. Já o oposto é verdade: uma ideia, uma opinião ou uma posição é implantada no público – na condição de massa – de modo a fazê-lo supor que essas “escolhas” sempre foram suas. Ainda que sejam transmitidas, elas devem parecer resultantes da vontade do público. “Sim, foi o que eu disse.” As pessoas reconhecem as verdades a elas mediadas como se fossem suas.

Mediar coisas que já foram decididas, verdades discernidas ou opiniões testadas, sempre pressupõe que a decisão esteja correta. Neste sentido, também o critério prévio ou o ponto de vista adotado são tidos como corretos, excluindo sumariamente a complexidade e a contingência do processo de tomada de decisão, ou mesmo a possibilidade de haver posições ou posturas alternativas. "Além disso, sabemos que a complexidade e a experiência contingente sempre nos impelem a fazer escolhas", escreveu Luhmann em 1984.[42] Deveríamos poder escolher entre diversas possibilidades (seleção), e quem tem escolhas a fazer sabe que existem alternativas (contingência). O populismo de uma decisão mediada, por outro lado, nos priva de ambas. Aquilo que é mediado não é mais um ponto em discussão. As questões públicas não são discutidas abertamente com vistas a encontrar respostas para elas. Isso porque tudo já foi decidido e, depois, "vendido", seja de forma bem sucedida ou não. No domínio da política, a referência aos valores ou, melhor ainda, aos valores fundamentais, é altamente promissora, pois aqui se pode presumir que "todos devem aceitá-los". Afinal, quem não seria a favor da "liberdade, igualdade, solidariedade, paz, justiça e segurança?”[43] Valores substituem a complexidade factual; a "trivialidade da linguagem do valor" (p. 363) impede que surja em primeiro plano a inquietante dinâmica moderna da "pressão para selecionar associada à experiência contingente". A questão da entrada da Turquia na União Europeia é tratada em termos de valores. Quem é a favor está a favor da integração, quem é contra é xenófobo. A única alternativa para o valor é o não-valor, mas então quem defende a guerra, a falta de solidariedade, a injustiça ou a insegurança? "Você seria a favor da diminuição dos benefícios previdenciários?", me perguntou um ativista enquanto coletava assinaturas para uma petição contra as reformas de Hartz[44] no sistema alemão de seguro desemprego. O/a populista que deseja transmitir sua agenda para as massas, tem de renunciar às "diferenciações"[45] e, em lugar delas, postular valor contra não-valor: "positivo ou negativo, amor ou ódio, justiça ou injustiça, verdade ou mentira".[46] Qualquer um que possa citar valores a seu favor se desobriga de comunicar a complexidade factual, razão pela qual os valores são tão profusos onde as opiniões políticas devem ser transmitidas às massas.

Sistemas funcionais, tais como os domínios econômico ou científico, operam em chave neutra de valor e de forma antidemocrática, sem possibilidade de ser de outra maneira. A assembleia geral anual ou o seminário bianual não votam sobre a rentabilidade ou a verdade, uma vez que estes são decididos no mercado ou o laboratório. É como a matéria que um professor deseja transmitir como conhecimento, em seu curso. Seria estranho que ele se negasse a fazê-lo. Já no tocante ao discurso político, as coisas são diferentes, haja vista que este é nitidamente baseado na participação e no envolvimento. Espera-se que a política democrática não tente forçar decisões tomadas no âmbito de comissões seletas, como se elas representassem a vontade do povo, mesmo que sejam adornadas com valores, como no caso das decisões que não recebem a aprovação da massa. A política democrática, em oposição à populista, implicaria no esclarecimento do cidadão ou do eleitor quanto às opções disponíveis, e não simplesmente a comunicação das decisões já tomadas. É exatamente o que Kant tinha em mente com a noção de maturidade. Esta é uma virtude política que você não deve exigir de todos os pacientes e clientes, mas sem dúvida de todo cidadão. Mas o Ano Kant 2004[47] já acabou, e os partidos políticos de viés pragmático tendem a se concentrar menos na formação e amadurecimento da opinião dos cidadãos e mais nas técnicas maquiavélicas de poder – sabemos de personagens como Fiesco ou Franz Moor[48]. Simplesmente, o que se tem a fazer é um esforço para "manter a plebe sob nossos polegares". Afinal de contas, são apenas "alguns poucos, muito poucos" aqueles que realmente contam dentre tantos “cegos imprestáveis”. 2005 será o Ano Schiller.

 

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[1] Artigo originalmente publicado no livro The populism reader, organizado por Lars Bang Larsen, Cristina Ricupero e Nicolaus Schafhausen. Publicado em 2005 por Lukas & Sternberg (Nova York). Produzido por Frankfurter Kunstverein junto com NIFCA (The Nordic Institute for Contemporary Art), por ocasião do projeto de exposição Populism, realizado pelo NIFCA em parceria com Contemporary Art Centre (Vilna); National Museum of Art, Archtecture and Design, (Oslo); Stedelijk Museum, (Amsterdam); e Frankfurter Kunstverein (Frankfurt). (N. dos T.)

[2] Johann Christoph Greiling, Theorie der Popularität (Magdeburg: Georg Christian Keil, 1805), p. 1ff.

[3] Niklas Luhmann, Die Gesellschaft der Gesellschaft (Frankfurt/Main: Suhrkamp Verlag, 1997), p. 1052.

[4] Texto original: Immanuel Kant, “Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?”, in Werke in 12 Banden, vol. 11, ed. Wilhelm Weischedel (Frankfurt/Main: Suhrkamp Verlag, 1974), pp. 53-61, p. 53.

[5] Ver, por exemplo, Lühmann, Die Gesellschaft der Gesellshaft, p. 1065ff.

[6] Friederich Schlegel, ‘Über das Studium de griechtschen Poesie’ [1797], in Kritische Friederich-Schlegel-Ausgabe, vol. 1, ed. Ernst Behler (Munich, Paderborn & Vienna: Schöningh Verlag, 1958), pp. 205-368, p. 351.

[7] Friederich Schlegel, ‘Über die Unverständlichkeit’ [1800] in Kritische Friederich-Schlegel-Ausgabe, vol. 2, ed. Ernst Behler (Munich, Paderborn & Vienna: Schöningh Verlag, 1958), pp. 362-72, p. 364.

[8] Ver Friederich Schlegel, ‘Gespräch über die Poesie’ [1800], in Behler, Kritische Friedrich-Schlegel-Ausgabe, pp. 284-351.

[9] Gerhard Plumpe, Astetische Kommunikation der Moderne, vol. 1, (Opladen: Westdeuscher Verlag, 1993), p. 169ff.

[10] Novalis, ‘Blütenstaub’ [1797/98], in Werke, Tagebücher und Briefe Friedrich von Hardenbergs, vol. 2. ed. Hans-Joachim Mäh (Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1999), pp. 225-85, p.247.

[11] Para Habermas, duas esferas coexistem na sociedade. Interdependentes, elas são por ele identificadas como (a) sistema e (b) mundo da vida. A primeira refere-se à produção material, sendo guiada por premissas instrumentais e, deste modo, por relações hierárquicas (poder político) e dinâmicas de troca (economia). Já o mundo da vida é a esfera da produção simbólica por excelência. Efetivada pela linguagem, ela corresponde às redes de significação e às visões de mundo, ambas em diálogo direto com fatos objetivos, normas sociais e, também, com conteúdos subjetivos. (N. dos T.)

[12] Jürgen Habermas, The Philosofical Discourse of Modernity, trans. Frederick G. Lawrence (Cambridge: Polity, 1987), p. 378.

[13] Ver Jürgen Habermas, Nachtmetaphysiches Denken Philosophische Aufsätze (Frankfurt/Main: Suhrkamp Verlag, 1988, p. 99.

[14] Luhmann, Die Gesellschaft der Gesellschaft, p. 625.

[15] Niklas Luhmann, Die Realität der Massendmedien (Opladen: Westdeutscher Verlag, 1996), p. 116.

[16] Luhmann, Die Gesellschaft der Gesellschaft, p. 624f.

[17] Urs Stäheli, “The Popular in the Political System”, in Cultural Studies, vol. 2, no. 17 (2003), pp. 275-99, p. 283.

[18] Adolf Hitler, Mein Kampf. Eine kommentierte Ausurahl [1925-6], (Munich: Econ Ullstein List Verlag, 2001), pp. 110-4.

[19] Ibid., p. 109.

[20] Ibid., p. 110f.

[21] Ibid., p. 119.

[22] The leading Nazi-ideologue. Alfred Rosenberg published the monograph, Der Myths des 20 Jahrhunderts: eine Wertung der seelisch-geistigen Gestaltenkaempfe unserer Zeit (first ed. 1930).

[23] Norbert Bolz, Am Ende der Gutenberggalaxis. Die neuen Kommunikationsverhältnisse (Munich: Fink Verlag, 1993), p. 180.

[24] Hugo Münsterberg. The Photoplay: A Psychological Study [1916] (New York: Dover Publications, 1970), pp. 32, 91, 96.

[25] Edgar Stern-Rubarth. Die Propaganda als politisches Instrument (Berlin: Trowitsch & Sohn, 1921), p. 10f.

[26] Münsterberg, The Photoplay, p. 37ff.

[27] Ibid., p. 93.

[28] A. K.  Flala, ‘Elektrophysiologische Zukunftsprobleme’ [1925], in Medientheorie 1888-1933, ed. Albert Kümmel & Petra Löfflet (Frankfurt/Main: Suhrkamp Verlag, 2002), pp. 177-208. P. 177, cf, 190f.

[29] Hitler, Mein Kampf, p. 108.

[30] Max Imdahl em conversa com participantes no seu seminário em Leverkusen. Max Imdahl, Arbeiter diskutieren moderne Kunst. Seminare im Bayerwerk Leverkusen (Berlin: Rembrandt Verlag, 1982), p. 54. Uma pintura de Mondrian é o foco da conversa aqui.

[31] Max Horkheimer & Theodor W. Adorno, Dialectic of Enlightment [1944], trans. John Cumming (London: Verso, 1979). pp. 165-7.

[32] Jürgen Habermas. “Further Reflections on the Public Sphere”. In: CALHOUN,

Craig (ed.). Habermas and the Public Sphere,1992, pp.437.

[33] Isso é mostrado por André Kieserling, Kommunication unter Anwesenden. Studien über interaktionsysteme (Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1999), p. 415ff. Ver também Niels Werber, ‘Kommunication ohne Interaktion. Thesen zu enem zweiten “Strukturwandel” der Massenmedien, in Zerstreute Offenlichkeiten, ed. Jürgen Fohrmann & Arno Orzessek (Munich: Fink Verlag, 2002), p. XXX.

[34] Angell Janhsen-Vukicevic, “Moderne Kunst und Gegenwart”. In: Gesammelte Schriften, vol. 1, ed. Max Imdahl (Frankfurt/Main: Suhrkamp Verlag, 1996), pp. 7-31, p. 27.

[35] “Durante todos esses anos, junto com inúmeras almas semelhantes, estou certo disso, fiz o meu caminho pelas galerias da Alta Madison e do Baixo Soho, pela Art Gildo no trecho intermediário da Rua 57, assim como por museus como o MoMA, o Whitney e o Guggenheim, pelo Bastard Bauhaus, New Brutalist e Fountainhead Barroque. Ou seja, andei tanto pelas mais humildes igrejas como pelos grandiosos templos do Modernismo dos Barões Ladrões. Em todos esses anos estive, como muitas outras pessoas, diante de milhares e milhares – só Deus saberia dizer quanto – de Pollocks, Newmans, Nolands, de Koonings, Rothkos, Rauschenbergs, Judds, Johns, Olitskis, Louises, Stills, Franz Klines, Frankenthalers, Kellys e Frank Stellas... ora como um vesgo, ora com a órbita do olho bem aberta, ora recuando, ora me aproximando, mas sempre à espera... esperando que meu olhar entrasse no  foco, de modo que eu pudesse alcançar a recompensa visual por todo aquele esforço que se pressupunha só pelo simples fato de eu estar ali, diante daquelas pinturas todas.  Todos (tout le monde) sabiam como se portar ali, à espera de algo que irradiasse, naquele instante, diretamente das pinturas expostas na sala, posicionadas em suas paredes brancas e invariavelmente puras. Essa era a minha cruzada óptica. Ao longo de todos esses anos, em suma, eu tinha assumido que em arte, diferente de qualquer outro lugar, o lance é ver para crer. Ainda que de modo míope! Agora, em 28 de abril de 1974, eu pude finalmente entender. Na verdade, eu tinha recuado o tempo todo. Não se trata de “ver para crer" – notei como fui tolo – mas de "crer para ver". A arte moderna tornou-se completamente literária: as pinturas e outras obras existem apenas para ilustrar o texto”. “The painted word” (1975). In: Tom Wolfe, Radical Chic, The painted word (Picador: Londres, 2002), pp. 1-99, p. 4. Ver sobre o deslocamento no discurso sobre a arte pela arte em Niels Werber: “Kunst ohne Künstler. Paradoxien der Kunst de Moderne”. In: Was ist ein Künstler? Das Subjekt der modernen Kunst, ed Martin Hellmold, Sabine Kampmann, Ralph Lindner & Katharina Sykora (Munique: Funk Verlag, 2003), pp. 149-162.

[36] Hans Robert Jauβ, “In memoriam Max Imdahl”. In: Imdahl, Gesammelte Schriften, vol. 3, pp. 644-652, p. 646.

[37] Leslie Fiedler, “Cross the Border-Close the Gap”, Playboy (Chicago, December 1969)

[38] Imdahl, Arbeiter diskutieren moderne Kunst, p. 7.

[39] Niklas Luhmann, “Öffentliche Meinung und Demokratie”. In: Kommunikation. Medien. Macht, eds. Rudolf Maresch & Niels Werber (Frankfurt/Main: Suhrkamp Verlag, 1999), pp. 19-34, p. 24.

[40] Isto não é, de forma alguma, habitual no sistema de comunicação científica. Nenhum professor de química tenta convencer seus alunos de que eles tenham descoberto o modelo de Niels Bohr para o átomo. Em vez disso, ele comunica um conhecimento verificado. Além de comunicar esse conhecimento, enfatiza a diferença entre, de um lado, os cientistas e, de outro, os leigos ou estudantes que estejam sendo iniciados no discurso especializado (ao menos retoricamente).

[41] Tradução livre a partir da confrontação entre as versões em alemão e inglês. (N. dos T.)

[42] Niklas Luhmann. Social Systems (Stanford: Stanford University Press, 1995), p. 184.

[43] Niklas Luhmann. Die Politik der Gesellschaft (Frankfurt/Main: Suhrkamp Verlag, 2000), p. 359ff.

[44] Trata-se do plano esboçado em 2002 por Peter Hartz, à época diretor de recursos humanos da Volkswagen. Apresentado ao governo alemão como uma saída para a crise, o plano previa a flexibilização das leis trabalhistas, incluindo a redução do seguro desemprego, a multiplicação de míni-empregos e trabalhos temporários e a redução de salários. (N. dos T.)

[45] Parece-nos útil agregar aqui a noção de “nuances”, a qual ajuda a reforçar o sentido denotado por “diferenciações”. (N. dos T.)

[46] Hitler, Mein Kampf, p. 112.

[47] O autor se refere às homenagens e debates em torno da obra do filósofo alemão Immanuel Kant por ocasião dos duzentos anos de sua morte. (N. dos T.)

[48] Personagens de obras distintas de Friedrich Schiller. (N. dos T.)

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