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Da diversidade cultural aos limites do modernismo estético Políticas culturais da coleção nacional, mecanismos de exibição e exposição

 

Autores: Andrew Dewdney e Victoria Walsh

Tradução: Thais Olmos

Revisão técnica: Cayo Honorato e Diogo de Moraes

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Da diversidade cultural aos limites do modernismo estético
Políticas culturais da coleção nacional, mecanismos de exibição e exposição

 

O artigo discute como a análise do impacto das políticas de diversidade cultural britânicas – relacionadas às práticas de formação de público[1] na Tate Britain, de 2007 a 2010 – levou o projeto de pesquisa Tate Encounters: Britishness and Visual Culture a identificar a necessidade de compreender como as práticas variadas de colecionismo, exposição e museografia eram conectadas e desconectadas através das redes organizacionais de curadoria, marketing e aprendizado. Ao vincular as esferas de influência entre curadoria e educativo, objeto e público, que habitualmente se encontram separadas, a pesquisa reabriu a questão do agenciamento que se dá através das figuras de linguagem empregadas pela curadoria, examinando o que pode ser visto como um conflito entre a estética de exibição dominante no modernismo e as práticas de museu voltadas à formação de público[2], no contexto das condições contemporâneas de participação. Conforme destaca o artigo, um dilema aparentemente insolúvel para os museus de arte apresenta-se agora devido a sua contínua fidelidade aos formatos modernistas de exibição; nos quais os princípios estéticos do modernismo estão em inextricável oposição à crescente preocupação acerca da ampliação das formas de participação do público. Entre os problemas-chave apontados no artigo, destaca-se a lógica de mercado inerente à coleção, que privilegia os valores históricos e culturais dos objetos; evidenciados por uma combinação entre: erudição, colecionismo e expografia, tais valores reforçam apenas o valor de troca, em vez do valor de uso de tais objetos. Ao deslocar o objeto para o campo da contemplação estética, o valor de troca da obra – enquanto bem colecionável – é continuamente privilegiado e assegurado. Esse valor é mantido em detrimento do valor de uso do objeto, que é sempre relativo e mutável, podendo ser assegurado somente pelo trabalho posterior do público. O artigo argumenta que, na conjuntura contemporânea, a presença dos públicos transculturais e alfabetizados pela linguagem da mídia ameaça essa separação institucionalizada de valores, desafiando a autoridade cultural em que se apoia a estética modernista. O artigo baseia-se em uma discussão mais ampla gerada pelas descobertas propiciadas pelo Tate Encounters, apresentadas na publicação Post Critical Museology: Theory and Practice in the Art Museus. (Dewdney, Dibosa, Walsh, 2013)

 

I. TATE ENCOUNTERS: BRITANICIDADE[3] E CULTURA VISUAL

Ocorrido entre 2007 e 2010, Tate Encounters foi um projeto de pesquisa interdisciplinar alojado no interior de instituições parceiras: Tate Britain, London South Bank University e Chelsea College of Art. O projeto fez uso de métodos de pesquisa de campo extraídos da etnografia, estudos científicos e de tecnologia, e culturas visuais, baseando-se nos conhecimentos de historia da arte, estudos em curadoria, programação cultural, estudos culturais e de mídia, e ciências sociais. Como um questionamento de base empírica acerca das políticas e práticas nacionais de diversidade cultural e de como elas eram negociadas em um museu de arte nacional, o projeto apresentou uma série de questões à Tate Britain, todas elas ligadas à relativa ausência de visitantes dos segmentos Negros e de Minorias Étnicas (NME). O foco recaiu, em particular, na política institucional, nas barreiras ao acesso, nas tipologias de público e nas acepções de britanicidade cultivadas dentro da Tate Britain. Neste sentido, buscou-se evidenciar como as noções de público e observador eram consideradas por funcionários da Tate e, consequentemente, como elas apareciam durante a produção das exposições. Como um projeto de pesquisa experimental, interdisciplinar e colaborativo, ele criou uma matriz de metodologias mescladas buscando reunir a prática da teoria (a abstração do conhecimento) com as teorias da prática, tendo por objetivo responder à problemática central do projeto: analisar, por meio de um estudo de caso da Tate Britain, os motivos da ausência dos públicos constituídos pela categoria política NME. Com foco nas conexões e desconexões das redes de práticas internas ao museu, o projeto tentou expor uma análise das relações entre o espectador proveniente da diáspora e o trabalho de arte, com o intuito de compor um relato contextualizado dos encontros[4], em vez de um relato conceitual baseado no discurso teórico ou na abordagem estatística da política institucional.

Durante o desenvolvimento do trabalho de campo, o projeto convocou mais de 600 alunos do primeiro ano de graduação da London South Bank University, selecionados principalmente por seus históricos de migração e educação não tradicional. Os participantes visitaram os museus Tate Britain e Tate Modern e produziram suas respostas aos encontros mediante o preenchimento de questionários e a elaboração de ensaios. Em seguida, um grupo de 12 estudantes tomou parte em um estudo mais aprofundado, com duração de dois anos, trabalhando junto a um antropólogo visual, a fim de explorar e desenvolver suas respostas ao encontro na Tate Britain. Os integrantes desse grupo passaram a assumir o papel de co-pesquisadores no projeto. Participantes voluntários, eles tinham laços e raízes familiares no oriente, da Malásia a Bangladesh; no leste europeu, da Letônia e Ucrânia a Polônia; na Escandinávia, da Finlândia a Noruega; na Espanha; na Irlanda; no continente africano, da Nigéria a Gana; e também no Caribe. Outro elemento-chave para a pesquisa foi um estudo organizacional envolvendo 38 funcionários da Tate, que aconteceu ao longo da produção da exposição da Tate Britain The Lure of the East: the British Orientalist Painting [A sedução do oriente: a pintura orientalista britânica], em 2008. Por fim, o projeto desenvolveu um programa público com entrevistas, painéis de discussão e projeções. Ocorrido durante o mês de março de 2009 nas galerias da Tate Britain, o programa público reuniu 72 colaboradores, incluindo funcionários da Tate, artistas, curadores, educadores, acadêmicos, atores políticos, especialistas em marketing e novas mídias e os co-pesquisadores do projeto, para discutir as descobertas da pesquisa.

Além da abordagem bottom-up proveniente da grounded theory e da reflexividade crítica (Alvesson e Skoldberg, 2009), a Teoria do Ator-Rede (TAR) (Latour, 2012) também foi adotada para avançar além do modelo binário da pesquisa positivista em ciências sociais. Fundamentando essa posição, temos a reivindicação de Certeau acerca da “invenção do cotidiano” (de Certeau, 1984), tornando visível o conhecimento tácito da prática individual, em lugar do discurso institucional da gestão organizacional. Além disso, sua reivindicação forneceu uma lente através da qual a pesquisa se aproximou da ação dos estudantes e da análise da forma de organização dos quadros de funcionários. No plano metodológico, o projeto pautou-se pela consciência de que a complexidade de sua abordagem demandaria níveis intensos de investimento individual e coletivo, gerando e analisando dados no interior do processo de reflexão crítica, que Latour abertamente adota como a "confusão" de "rastrear o social". O apelo e o potencial da TAR, além de abrir novas leituras sobre como se conectam os modelos de formação de público e as políticas de diversidade cultural, também se baseia no reconhecimento dos múltiplos papéis assumidos pelo trabalho de arte, tanto como "intermediário" quanto como "mediador", no fluxo de valor. Dessa forma, desvia-se da ideia do objeto de arte como uma construção cultural de valor estético fixo, como proposto pelos modelos estruturais de análise crítica. Como escreve Latour:

Se, no antigo paradigma, com seu "espaço interior" de "inefável beleza", era necessário um jogo de soma zero – tudo quanto a obra de arte perdia o social ganhava, tudo quanto era perdido pelo social era ganho pela "qualidade intrínseca" da obra de arte –, no novo paradigma estamos diante da situação de ganhar ou ganhar: quanto mais apego, melhor. [...] Quanto mais "afluência", melhor. Vai contra a intuição tentar distinguir o que vem dos "observadores" do que vem do "objeto", pois a resposta óbvia é "deixar-se levar". Objeto e sujeito talvez existam; mas tudo o que interessa acontece a montante e a jusante. Apenas siga a corrente. Siga os atores, ou antes, aquilo que os faz atuar: as entidades em circulação.[5] (Latour, 2012: 338-339)

 

II. TATE BRITAIN E AS NARRATIVAS DE NAÇÃO

A Tate Britain ocupa posição especial dentro do discurso de britanicidade por três razões. Primeiramente, desde 2000, por ocasião da renomeação da Tate Britain, a associação do museu com o estado-nação passaria a integrar seu perfil institucional. Em segundo lugar, a britanicidade é corroborada pelo seu status de “museu nacional”. O terceiro aspecto refere-se ao fato de que a Tate Britain abriga trabalhos de arte que, nominalmente, constituem a Coleção Nacional de Arte Britânica, mantendo a realização de aquisições "em nome da nação". Apesar de a própria Tate, ao se referir à autoria dos trabalhos, adotar um uso altamente fluido e flexível do termo "britânico", e de seu programa de exposições incorporar artistas que extrapolam a conotação óbvia de britânico, a identificação com a britanicidade é compreendida e forjada por meio das três condições expostas acima, adquirindo corpo através de suas expografias e do programa de exposições. Como consequência direta, a britanicidade da Tate Britain chamou atenção nos debates recentes sobre participação e pertencimento na cultura britânica.

Buscando responder às questões originais da pesquisa - sobre como são construídas as narrativas de britanicidade nas expografias adotadas pela Tate Britain - Tate Encounters foi prontamente conduzido pelos estudantes co-pesquisadores em direção aos debates desencadeados pela promoção de políticas governamentais calcadas nos conceitos de britanicidade, identidade nacional e cidadania e em suas relações diretas com o contexto migratório europeu e internacional. No caso do Tate Encounters, a incerteza em torno da representação nacional foi claramente enquadrada nos termos das irresolvidas políticas do multiculturalismo, especificamente das políticas de diversidade cultural voltadas à ampliação da inclusão social e da participação cultural. Neste sentido, Tate Encounters, que havia sido fundado dentro de um contexto migratório, tinha por missão produzir entendimentos sobre como a migração – e a experiência cultural por ela gerada – se enredava com a cultura da Tate Britain.

 

III. TATE E AS IDEIAS DE VALOR PÚBLICO E O PÚBLICO-VISITANTE.

A Tate é uma instituição pública pertencente ao público e para ele destinada. A missão da Tate é ampliar o conhecimento, a compreensão e o desfrute público da arte britânica – moderna e contemporânea – através da Coleção e de um programa inspirador dentro de nossas galerias e muito além delas. Tudo o que fazemos – incluindo a Coleção que cuidamos, as exposições que realizamos, os nossos modos de exibição, o programa que desenvolvemos e a administração da nossa organização – é feito para maximizar o valor para o público. (Tate Online, acessado em 28.07.2010)

Enquanto a Tate compromete-se com a maximização do "valor para o público", aquilo que de fato constitui "valor" e "público" dentro das diferentes práticas da instituição mostra-se muitas vezes fragmentado, provocando linhas de tensão e de contradição na articulação e mediação dos valores do museu em sua relação com o público. Ao examinar a abordagem focada nos públicos "minoritários", revelou-se não apenas o impacto negativo de uma política cultural racializada, como também a questão mais ampla de como os públicos per se são modelados pelo museu e, além disso, como "diferença" é entendida em relação ao conceito de "central".

Ao retomar os primeiros encontros com a Tate Britain, realizados pelo grupo de estudantes com um passado de diáspora e que eram "não-frequentadores" de museus, e acompanhando o surgimento de seus relatos que contavam o que a Tate Britain significava em suas vidas cotidianas, fora do ambiente do museu, veio à tona uma complexa narrativa do quão interconectadas estão as questões de identidade, subjetividade e nacionalismo com as novas formas de transmigração e globalização. Nessa pesquisa, foi possível descobrir que os estudantes categorizados como “outro” que não o britânico branco prontamente rejeitavam e resistiam às categorias racializadas, e não se viam como representantes de uma determinada identidade pessoal ou de certo comportamento social. Logo, rejeitavam noções fixas de identidade e, no lugar delas, adotavam modos mais fluidos de subjetividade baseados na transmigração. Isso poderia indicar que, como público, eles demandavam uma acepção mais complexa para categoria “britânico”, que pudesse dar conta de refletir e abarcar a importância da subjetividade, do hibridismo cultural e da dimensão transcultural. (Dewdney and Walsh, 2013)

Outra descoberta-chave, e o foco deste artigo, refere-se à maneira como as narrativas monoculturais do Modernismo – conhecidas por seu apelo à autonomia estética da obra de arte e pela ênfase na experiência estética – entraram em conflito, na ótica dos co-pesquisadores, com a percepção de narrativas nacionalistas, que foram entendidas não somente como delimitadoras da discussão sobre arte britânica mas também, e mais explicitamente, sobre a ampla historia global de transmigração revelada nas exposições contemporâneas. Além disso, as sofisticadas leituras apresentadas pelos co-pesquisadores diante das obras em exposição demonstravam familiaridade com a reivindicação por uma integridade estética dos trabalhos expostos. Ao mesmo tempo, eles sublinhavam suas escolhas individuais e independentes de interpretação, colocando as obras em relação direta com o campo expandido da cultura visual – não reconhecido pelas próprias formas de interpretação fomentadas pelo museu. Contrários à argumentação relacionada às políticas de representação, os estudantes demonstraram pouco interesse pelas versões históricas revisionistas, assim como pelas narrativas pós-coloniais, mas expressaram de maneira consistente o interesse por relatos mais abertos e complexos sobre o valor da cultura visual e a construção de significado dentro do museu.

O estudo organizacional revelou, entretanto, que a estrutura funcional da Tate diminiu a possibilidade de tais perspectivas serem viabilizadas, já que a instituição continua baseada em uma hierarquia de gosto e interpretação voltada para uma única direção. Esta é definida pelo paradigma modernista, partindo da visão do artista, passando pela mediação do galerista e do colecionador privado, sendo chancelada pela autoridade do curador e do historiador para, finalmente, ser processada por uma infinidade de departamentos do museu cujo trabalho consiste em produzir um público através das estratégias de marketing, publicidade, mídia e educação. Como a pesquisa também revelou, não existe uma definição única de público operando dentro da Tate Britain. Em realidade, diferentes conceitos e métodos de trabalho atravessam os departamentos de Educação, Curadoria e Marketing, dentre os quais alguns são importantes para os propósitos da coleção e sua política de aquisição, enquanto outros se prestam à legitimação curatorial e pública. Isso fica claro quando observamos os vários termos empregados pelos diferentes departamentos do museu para se referir aos seus frequentadores, todos eles repletos de pressupostos conceituais: público, visitantes, audiência, portadores de ingresso, observadores, aprendizes, consumidores etc.

Em contraste à “audiência” do Marketing, a rede com a qual interage o departamento de Educação é fomentada pela experiência afirmativa de encontros diretos com o “público”, no nível das subjetividades individuais. Situadas em tramas de comunidades específicas – em lugar das entidades anônimas ou meramente conceitualizadas – tal experiência busca redefinir os modos de endereçamento mono-culturais concebidos pela Curadoria e difundidos pelo Marketing. Na tentativa de se comprometer com um sentido mais crítico e democrático de diversidade e hibridismo cultural, no que diz respeito à composição do corpo de visitantes do museu, os projetos educativos e suas iniciativas junto aos públicos do museu buscam vincular a agenda estética das exposições aos valores políticos e sociais em jogo na recepção dos trabalhos. Na prática, isso é assegurado pelo envolvimento e representação de outras vozes, por meio de parâmetros alternativos aos da cartilha estética, em termos de conhecimento. No caso da exposição The Lure of the East: British Orientalist Painting [A sedução do oriente: a pintura orientalista britânica], isso envolveu o convite a figuras públicas de distintos segmentos profissionais (jornalismo, academia, literatura e música) para produzir textos a serem apresentados junto a trabalhos específicos de arte, com o intuito de redistribuir a voz do museu e sua autoridade cultural, favorecendo uma relação interpretativa mais crítica e ativa.

Contudo, como revelou o conjunto de entrevistas com os curadores, o conceito de público é tratado de maneira altamente elusiva na prática curatorial. Ao mesmo tempo, existe uma série de crenças e consensos em torno do que seria o objetivo principal da curadoria: produzir uma experiência visual prazerosa, na qual o trabalho de arte seja potencializado por práticas interpretativas contidas no próprio design da exposição (cor da parede, iluminação, distribuição espacial), tendo em vista o benefício do público-observador. Essa ênfase no modo de exibição dos trabalhos de arte, calcado nas premissas modernistas, prioriza a experiência estética, suspendendo-a e diferenciando-a das relações espaço-temporais cotidianas. Invariavelmente, ele acaba por alimentar e ampliar a tradição interpretativa baseada na contemplação e no "gosto". É a partir desse repertório que as estratégias de marketing se reportarão ao seu público-alvo.

Essas tradições interpretativas fundamentam-se, inevitavelmente, na autoridade cultural da arte, convenientemente sustentada emantida pelo museu através da combinação da ênfase na recepção estética com um tipo de visão que compreende os objetos do acervo como entidades possuidoras de algum significado inerente, fixos e potencialmente universal, com base na validação histórica da arte e na expertise curatorial. Conforme explicitado pela pesquisa, o parâmetro estético e a chave interpretativa do Modernismo entrariam em conflito com a coleção histórica britânica pré-moderna, pois a lógica modernista de coleção compreende as obras em termos de progressão histórica do cânone estético, em vez de considerá-las a partir de contradições sociais e históricas ligadas ao capital, ao trabalho e ao colonialismo. Sustentar a autoridade cultural do Modernismo acaba por conferir à coleção histórica britânica pré-moderna o estatuto de uma herança (heritage) não contraditória.

 

IV. EDUCAÇÃO COMO CULTURA, CURADORIA COMO HERANÇA

Conforme destacado pela pesquisa desenvolvida no contexto do Tate Encounters, o aumento do financiamento governamental e a ênfase na formação de público foram traduzidos pelo museu, num primeiro momento, com um aumento de seus projetos educativos. Mas, conforme sinalizado pelo artista Raimi Gbadamosi em seu trabalho com jovens na Tate Britain, um aspecto problemático para o museu, na intersecção com a “virada educacional”, teve a ver com o fato de que esta evidencia o quanto os conhecimentos ligados à prática artística não estão baseados somente no museu, mas nos âmbitos da cultura e da história social, que por sua vez são inextrincavelmente sustentados pela diversidade. A cultura e a história social – invariavelmente incorporadas e mobilizadas durante o engajamento criativo dos jovens – sempre precederão a prática da história da arte que o museu fixa como paradigma de interpretação. Esse tipo de encontro ocorrido no contexto museológico, entre a cultura e patrimônio, potencializa o surgimento de tensões, em particular nos projetos baseados na aprendizagem, quando significados fluidos da cultura são confrontados com as narrativas do patrimônio nacional. É também neste ponto que a autoridade cultural do curador fica mais exposta aos questionamentos quanto à sua expertise e legitimidade em selecionar obras para aquisição e exibição.

Em sua entrevista ao Tate Encounters, na condição de curador de programas interculturais no departamento de Educação da Tate Britain, cargo que ocupou entre 2007-10 (Goodwin, 2010), Paul Goodwin se aprofunda na discussão sobre as bases do conhecimento e as formas de produção desse conhecimento no museu de arte, refletindo sobre os desafios que a arte contemporânea socialmente engajada impõe aos museus, sendo ela uma arte que incorpora novas histórias e entendimentos das comunidades, do urbanismo e da globalização e que, geralmente, desvaloriza o argumento modernista da autonomia estética do trabalho de arte. Mais especificamente, Goodwin reflete sobre as anomalias apresentadas pela nomenclatura de seu cargo que, com frequência, era confundido internamente com o de “curador intercultural”, o que misturava questões de identidade e expertise, desviando dos reais objetivos do programa. Esses objetivos focavam na necessidade de expandir a base de conhecimento do museu, no que tange à compreensão das questões de diversidade e representação na prática artística, bem como em sua recepção. Ao mesmo tempo, Goodwin indica a necessidade de se “repensar as ideias acerca da negritude em um mundo global”, chamando atenção para os limites do multiculturalismo no trato com as questões de uma sociedade complexa e super-diversificada. A partir de sua experiência na programação da Tate Britain e do trabalho com artistas e públicos, tanto da comunidade local como de visitantes internacionais, Goodwin propõe a seguinte questão: “com qual versão do global a Tate está lidando?”

A relação inseparável entre as bases de conhecimento do museu de arte, a disciplina de História da Arte e seus processos de reprodução de valor também veio à tona na entrevista com o historiador de arte Leon Wainwright (Wainwright, 2011). Ativamente interessado na história da Arte Britânica Negra, Wainwright identifica que, concomitante à existência de uma rede de críticos, curadores e galeristas engajados em promover essa produção nos anos 1990, existia um notável vácuo de interesse na disciplina em si. Isso o levou a criar, em 2001, o projeto Globalising Art, Architecture and Design History [Globalizando a história da arte, da arquitetura e do design] (GLAADH), que promoveria o ensino dentro de um contexto global, encorajando reflexões sobre as interações entre a multiculturalidade britânica e o mundo globalizado. Esta "abordagem radical de ensino da História da Arte... tinha a intenção de conscientizar a disciplina sobre seu racismo... [e sua] etnicização do conhecimento." Ao perseguir a relação entre políticas representacionais e a segregação do conhecimento, Wainwright discute como narramos a história de acordo com a geografia. O que, no caso da arte britânica, com a perda do Império, produziu uma sensação temporal de "atraso" que acabou enquadrando a produção artística britânica negra, e outras práticas multiculturais, como acréscimos ao registro canônico, em vez de serem compreendidas como sintomas do mesmo tipo de mudança social e cultural que produziu outras formas de arte centrais como, por exemplo, o Expressionismo Abstrato americano e a Arte Pop.

Partindo desse argumento, Wainwright reconhece, por um lado, a prevalecente aderência aos conceitos do transnacional na experiência contemporânea de migração. Por outro, argumenta que isso deveria ser criticamente articulado ao entendimento e ao reconhecimento das condições históricas, políticas, sociais e econômicas que forçaram essa migração. Porque ao se distanciar da história de migrações forçadas, questões mais profundas da problemática relação entre o patrimônio britânico e a britanicidade podem ser obscurecidas, reduzindo-se o papel histórico da nação na história migratória. A este respeito, o "transnacional" pode ser muito facilmente cooptado como parte de um projeto iluminista do museu, possibilitando que uma instituição nacional como o British Museum se reclassifique como "o museu do mundo".

Para Donald Preziosi, no entanto, as relações espaço-temporais e as narrativas da modernidade e de patrimônio são suplantadas por uma questão ainda mais fundamental; ela diz respeito à própria constituição da ideia de arte, no sentido de nos perguntarmos sobre as motivações que alavancaram a invenção europeia da arte e de seu "fantasma", com o qual a história da arte tem trabalhado em conjunto para produzir "paradigmas de diferença" (Preziosi, 2010). Já que a história da arte tem perpetuado esses paradigmas, a necessidade de nos perguntarmos "quem eles beneficiam" se tornou ainda mais urgente e, apesar da proliferação de novos museus e de estudos sobre museus, a questão de como "pular fora deste carrossel" persiste, convocando-nos a questionar não apenas o papel da história da arte, mas também o papel do museu enquanto parte de uma máquina de interpretação que sustenta a diferença através da cenografia forjada por um modo de exibição específico. Ao se envolverem com essas questões, disciplinas alternativas como a “antropologia artesanal” oferecem, para Preziosi, uma forma de avançar por meio da reconexão da ideia de arte com o conhecimento processual do artesão que a produz. Esse movimento lança um desafio direto à estética modernista predominante nos museus de arte que reifica o objeto artístico.

Como conselheiro de políticas internacionais e antigo Diretor de Políticas Culturais da UNESCO, Yudhishthir Raj Isar foi convidado a participar do conselho do Institute of International Visual Art (Iniva), em Londres, para contribuir com uma "visão comparativa internacional" sobre como os conceitos europeus de diferença cultural e migração vinham se desenvolvendo e, somado a isso, como os diferentes estados-nação estavam lidando com a diversidade no nível político. Conforme Isar expôs em sua entrevista ao Tate Encounters, muitas das questões implicadas nas problemáticas da inclusão e da exclusão – historicamente abordadas por Bourdieu em A Distinção – se modificaram significativamente desde 1994, tendo sido potencialmente superadas: "pode ser que os problemas originais da falta de capital cultural, por parte de pessoas cujo processo educacional e antecedente familiar os tonou privados de tal capital, esteja sofrendo um curto-circuito por distintas combinações de atividades e tecnologias no museu de hoje" (Isar, 2011). Sem dúvida, o papel da comunicação digital na democratização da cultura está impactando na relação entre Estados-nação e multiculturalismo, já que nessa "nova era metropolitana (...) as grandes narrativas da nacionalidade estão enfraquecendo" no nível geracional, enquanto outros vínculos e comunidades emergem simultaneamente nos âmbitos local e global. Mas, de acordo com Raimi Gbadamosi, a distinção entre patrimônio e cultura é fundamental para a forma como um Estado-nação se move na atualidade do multiculturalismo, e, como enfatiza Isar, o transnacional é mais fácil de discutir em relação à cultura, mas não em relação à política cultural, que sempre será definida e buscará apoiar os interesses do estado-nação, cada vez mais através do discurso patrimonialista. O que nos conduz ao reconhecimento de que a "globalização cultural" é uma contradição nos próprios termos, já que a cultura é baseada na diversidade e a globalização, na homogeneização.

Talvez o que melhor descreva todas essas contribuições seja o desejo por uma abordagem mais complexa, mais aberta ao questionamento, à análise e mais representativa da formação histórica e da experiência contemporânea. Uma abordagem que favoreça as relações entre as contingências, lutas e prazeres da experiência vivida com os esforços de interpretação e produção de significados, considerando que o acesso a essas relações encontra-se interditado por aquilo que Preziosi, no âmbito dos processos acadêmicos de produção do conhecimento, chama de “muralha do Iluminismo”. Historicamente, a noção de conhecimento no museu vem sendo identificada exclusivamente àqueles que estão diretamente envolvidos com a aquisição e exibição dos trabalhos de arte. Com a ampliação do papel dos museus na esfera pública e a crescente manifestação dos públicos como seres individuais – desde o consumidor do marketing, o aprendiz da educação, o visitante que se informa com o orientador de público[6], até o interator das mídias sociais e o apreciador dos recortes curatoriais – os tipos de conhecimento requisitados na exibição e recepção dos trabalhos de arte estão cada vez mais dispersos pelos departamentos da instituição; o que provoca a fragmentação e a ameaça de desaparecimento da autoridade curatorial baseada nas premissas modernistas da experiência estética.

O processo de fragmentação da noção centralizadora de autoridade cultural foi vivido pela Tate em virtude do crescimento de uma cultura organizacional baseada na administração do risco, que busca conter e direcionar a multiplicidade de significados engendrados exatamente pelo sucesso da incorporação do consumidor individualizado, tido como ameaça constante de incoerência. Como demonstrado pela pesquisa, na Tate Britain as estratégias adotadas para conter a ameaça àquela autoridade, representada pelas políticas de diversidade, não poderiam ir além dos limites estabelecidos por suas próprias formas fundamentais de autoridade. Isso se efetivou na Tate, por um lado, em termos de uma racialização inerente à segmentação dos públicos tidos como minoritários e, por outro, na forma de representação marginalizada dos artistas britânicos identificados sob a designação de minorias. Agora, em face dos movimentos empreendidos pela Tate e por outros museus internacionais de arte no sentido de assumirem posições junto ao mercado de arte global, torna-se flagrante a contradição entre a aceitação curatorial do transcultural global e o impacto cultural da migração nos públicos locais. Tais contradições podem ser explicadas pela separação constatada pela pesquisa, entre as instâncias da coleção e da recepção, do objeto e do sujeito. Tais contradições podem ser explicadas a partir do que esta pesquisa nomeou como sendo a cisão entre colecionismo e recepção, objeto e sujeito, e que nos leva a reconhecer a necessidade de converter o conhecimento tácito e implícito da expertise curatorial em uma forma mais explícita de conhecimento, um conhecimento/engajamento público que se conecte às distintas bases de conhecimento espalhadas pelo museu.

Uma das formas de expor as linhas históricas de separação entre o conhecimento museológico e a história da arte se daria pela geração de novos saberes através da pesquisa transdisciplinar, priorizando as conexões entre cada “estágio” da produção ou da “performance” ensejada pela rede artista-obra-coleção-exposição. Entretanto, continua existindo um forte direcionamento do tráfico cultural nos assuntos do museu, os quais, em termos metafóricos, percorrem itinerários do centro às margens. A fonte do fluxo cultural é normalmente identificada com o artefato, enquanto o objeto material e o destino desse fluxo é [sic] entendido como sendo a difusão da cultura no âmbito generalizado de sua recepção. Mas enquanto a fonte imediata de valor cultural é associada ao objeto material consagrado, uma percepção mais complexa da realidade sugere que a fonte de valor está situada, primeiramente, nas relações sociais de produção do objeto (na maioria dos casos, algo que se mantém historicamente opaco) e, em segundo lugar, no processo subsequente por meio do qual o objeto é adquirido e mantido como tema de atenção do museu. No fluxo diário do tráfico cultural no museu, o lado dos fornecedores é separado do lado da demanda, que em seu sentido público corresponde à afirmação do valor. Por conta da naturalização das divisões especializadas entre aquisição, coleção e exibição, o lado da recepção por parte do público é, em larga medida, considerado como algo supérfluo por muitos processos organizacionais, que por sua vez relegam o visitante a uma posição marginal frente à reprodução dos valores do museu. Contudo, enquanto essas especializações e divisões são preservadas, o público é requisitado como fiador do investimento público em museus, mas apenas como testemunha passiva do processo de reprodução cultural. Ele tem de aceitar o que lhe é apresentado com base na confiança, como uma função pública, que todavia deve ser exercida dentro de limites privados e restritos.

 

V. MODERNISMO E TRANSMEDIAÇÃO

A resposta da pesquisa para a questão sobre a relação entre identidade e fruição de trabalhos de arte afastou-se das noções de identidade definidas racial ou etnicamente, direcionando-se à ideia de que a observação de trabalhos de arte corresponde a um processo relacional, que envolve transcodificações culturais e midiáticas de vários tipos. A transcodificação tem sido reconhecida nos estudos de mídia e educação como um conceito central. É por ele que se perscruta a maneira como o significado é gerado, substituindo a antiga noção de interpretação proveniente da literatura e da história da arte, em acordo com os termos da pesquisa (Manovich, 2001). Transcodificação é também uma forma de alfabetização visual, em que o sujeito se mostra capaz de converter ou traduzir o significado derivado de um meio para outro. Portanto, é parte do conceito mais amplo de transmediação (Thorburn e Jenkins, 2004). O agora padronizado processo de transmediação que emerge num mundo global e midiatizado, tomado em relação àquilo que identificamos como a posição subjetiva do transcultural, produz o que o projeto define como transvisual, caracterizado como um novo modo de ver que procura, ou exige, uma forma de resposta expressiva.

Os argumentos da pesquisa partem da evidência qualitativa de que as formas institucionais e representativas de autoridade cultural são agora desafiadas pelas novas condições de transvisualidade, geradas pelo aumento no movimento global de pessoas e pela globalização da informação. A arte histórica tradicional e a autoridade cultural museológica correm o risco de terem o seu interesse reduzido a uma parcela cada vez menor de pessoas, enquanto as práticas expandidas de transcodificação de imagens inauguram o museu distribuído. Enquanto o modernismo estético continua preso à proveniência do objeto de arte, as formas distribuídas de autoridade cultural, que emergem com o transvisual, começam a partir do encontro contingente com as relações associativas de significado e, então, desenvolvem noções de valor baseadas tanto na situação dada como na diferença. O mais significativo é a evidência de que tais questões não são apenas moldadas ou influenciadas pelas novas formas de mídia social na paisagem digital (Turkle, 2012), haja vista que o digital tornou-se o meio, a moeda corrente através da qual o visual é envolvido e compreendido, seja qual for o ambiente (Rubinstein e Sluis, 2008). Isso não quer dizer, conforme verificado pela pesquisa, que o trabalho de arte não foi valorizado como uma entidade distinta durante os encontros, mas que o enquadramento interpretativo foi derivado de instâncias extramuseológicas, alheias ao poder de influência do museu sobre a construção e apresentação de significado.

 

VI. CONCLUSÃO

Uma das conclusões da pesquisa Tate Enconters foi que, enquanto a Tate mobilizou-se para envolver o público globalizado, sua forma de lidar com ele manteve-se limitada por uma dupla vinculação, por um lado, à resposta estética de indivíduos educados e sua tipologia demográfica correspondente e, por outro, à lógica do valor de troca na coleção; o que restringe e exclui o conhecimento em termos da multiplicidade de encontros e da cacofonia dos significados distribuídos. O que parece ter ficado claro a partir da pesquisa é que a autoridade cultural não pode ser mantida por uma simples insistência em algum tipo de significado inerente, fixo e definitivamente universal dos objetos da coleção, representado pela reserva de conhecimento histórico especializado, validado por práticas de custódia e, finalmente, ligado à função primária de manter o mercado de valor de troca dos objetos.

Como antevisto por Benjamin em relação à obra de arte: “[...] do mesmo modo a preponderância absoluta conferida hoje a seu valor de exposição atribui-lhe funções inteiramente novas, entre as quais a “artística”, a única de que temos consciência, talvez se revele mais tarde como secundária.” [7] (Benjamin, 1987) Se a coleção torna invisível o agenciamento criativo do visitante do museu, e o valor absoluto da exposição, como Benjamin sugere, torna “o artístico” secundário, alguém pode se questionar: o que preenche o espaço da construção de significado, e em que medida o trabalho de arte pode mediar/incorporar o processo de produção ativa e recepção ativa? Tradicionalmente, esse espaço metafórico de significação tem sido preenchido pelo trabalho da academia e da crítica (os avalistas do significado “correto”). Tais “significados corretos” atuam junto às práticas museológicas correntes, conduzidas pelos segmentos da sociedade que “sabem como” ler o trabalho de arte como algo valioso. Porém, as últimas três décadas têm visto não somente o robustecimento da crítica e da problematização frente às posições canônicas dominantes de setores da academia, mas também o crescimento de uma espécie de “confiança de consumidor” por parte do público em sua participação na arte contemporânea, bem como em assuntos mais abrangentes da cultura e do gosto. Entretanto, sob a luz do argumento acima, o sucesso dos novos museus de arte no tocante à “ampliação” do interesse pela arte, atraindo enormes contingentes de visitantes – como é o caso da Tate Modern –, em si mesmo não resolve o problema da(s) localização(ões) e transação(ões) do conhecimento. As pessoas podem ou não estar presentes em grande número, a depender do caso, mas a questão que mais importa permanece: como o agenciamento criativo desse novo público, entendido como um trabalho auto-sustentável de identidade(s), torna-se visível?

Mas, à luz do novo valor estratégico das exposições como parte de um projeto global de expansão, a contestação de Mark Rectanus em seu artigo Globalization: Incorporating the Museum [Globalização: incorporando o museu] também levanta a importância de olhar além das narrativas e práticas de aquisição:

As exposições revelam uma interação e recontextualização do global dentro do local. Os conteúdos da exposição e a estética de suas representações se referem à troca simbólica da cultura que se globaliza… Essas tensões, por sua vez, se referem às disjunções mais amplas do fluxo global entre os cenários etnográficos, tecnológicos, financeiros, midiáticos e ideológicos, que caracterizam a globalização (Appadurai, 1996) e são simultaneamente multiplicadas através do envolvimento do próprio museu com cada uma dessas “paisagens”. (Rectanus, 2011)

Ainda que o papel, a interpretação e a experiência das coleções e exposições continuem sendo compreendidos no interior das práticas de representação, enquadradas pelo conhecimento epistemológico ou pelas políticas culturais, começa a se tornar visível a limitação de tais perspectivas dentro do novo contexto globalizado, no qual os públicos encontram e entendem os trabalhos de arte. Com a reestruturação das economias capitalistas, também a esfera pública se reestrutura, tal como Robins afirma: “Assim como os territórios são transformados, também o são os espaços de identidade.” (Robins, 1999: 17) A via de mão-única do trânsito econômico e cultural, determinada pelas formas coloniais e pós-coloniais de trabalho e fluxo de capital, está agora abrindo passagem para novos circuitos descentralizados de intercâmbio e desmantelando os parâmetros geográficos calcados nas noções de centro e periferia, núcleo e margem. Isso não é menos verdadeiro para os museus, assim como para os públicos dos museus, mas como Robins tem declarado, “a globalização dissolve as barreiras da distância, torna o encontro do centro colonial com a periferia colonizada imediato e intenso” (Robins 1999, 18), levando à conclusão de que “É na experiência da diáspora que podemos começar a compreender o caminho para além do império.” (Robins, 1999: 28)

Ainda que continue vigorando um discurso hegemônico de representação da nação nas políticas e práticas culturais, Tate Encounters revelou em seus estudos qualitativos um relativo declínio das noções taxativas de nação, raça e etnicidade na formação das subjetividades. O enfraquecimento dos discursos nacionalistas e raciais de identidade, pelo menos nas metrópoles cosmopolitas, precisa agora ser entendido no contexto de um novo complexo global de mudanças socioeconômicas e técnicas. No contexto específico do Tate Encounters, a globalização foi traçada concretamente a partir de novos padrões de migração econômica, com base no transnacionalismo e na super-diversidade produzida em cidades globais, nas quais o cruzamento de fronteiras culturais e nacionais constitui uma característica chave. Esses novos padrões transnacionais de movimento humano, de extensão das redes sociais e laços familiares são agora facilitados por uma tecnologia global de comunicação de muitos para muitos. Internet, Web 3.0, wifi e dispositivos móveis, tudo isso foi desenvolvido no período de mudança política, econômica e social na Grã-Bretanha, tratado aqui. Enquanto as forças econômicas globais separam e impelem as pessoas aqui e acolá através do globo, desenvolvimentos tecnológicos têm criado conectividade contínua. Essas novas condições estão desafiando as formas tradicionais de autoridade cultural.

O impacto de tais mudanças globalizantes sobre a produção e o consumo da cultura, entretanto, permanece amplamente desconhecido pelas principais instituições britânicas, cujas respostas iniciais têm sido identificar-se como marcas líderes mundiais. No caso da Tate, eles promoveram sua forte marca em termos de liderança da agenda cultural da arte contemporânea internacional, figurando entre os maiores polos de atração de público. A combinação entre espetáculo visual, comercialização e autoridade curatorial produziu um sucesso estelar para a Tate Modern nos anos 2000. Mas o sucesso do recém-descoberto empreendedorismo dos principais museus de Londres, e sua capacidade de atrair quantidades enormes de visitantes internacionais, oculta o fato de que o mudou muito pouco o modo como os museus pensam os seus públicos. Os públicos podem ser pensados agora como clientes ou consumidores cuja experiência da visita tende a viabilizar-se ou aperfeiçoar-se por meio de programas adicionais, mas eles não são considerados enquanto fontes de autoridade cultural ou geradores de valor cultural. O questionamento da autoridade cultural do museu, baseado na pressuposição de que seu lugar na esfera pública implica uma política de representação, tem a intenção de desafiá-la, assim como evidenciar os discursos e representações especificamente modernistas nas práticas profissionais do museu de arte.

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Referências

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Benjamin, W. A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 3ed. São Paulo: Brasiliense, 1987
(A versão consultada pelos autores não consta na bibliografia)

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Robins, K. 1999. 'Tradition and Translation: National Culture in its Global Context'. In Representing the Nation: a Reader: Histories, Heritage, Museum, edited by D. Boswell, 16-32. London: Routleadge.

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[1] A expressão original, audience, foi traduzida ao longo do texto pelo termo público, pois entende-se que, no Brasil, a palavra audiência possui uma conotação comercial, como no caso da conhecida “guerra por audiência” dos programas televisivos. Já as discussões a respeito dos frequentadores dos equipamentos culturais optam pelo uso do termo público. Cabe ressaltar, ainda, que a palavra audience não corresponde a uma escolha exclusiva de Dewdney e Walsh, já que ela é amplamente utilizada no inglês britânico para fazer referência aos visitantes de equipamentos culturais. No web-site da Engage, a maior organização privada dedicada ao ensino das artes visuais e à formação de mediadores no Reino Unido, pode-se encontrar a seguinte frase: “Gallery education works with gallery visitors and with specific audience groups such as families, disabled people, young people, older people or early years groups, and with the wider public.” Se Dewdney e Walsh fizeram uso de um termo corriqueiro na língua inglesa, um termo com o mesmo caráter deve ser empregado em português e, neste caso, o termo público mostra-se mais apropriado. (N. da T.)

[2] No texto original o termo utilizado foi engagement. Uma palavra que pode ser traduzida por envolvimento ou comprometimento. Aliás, uma palavra tão flexível que aparece nos trincos de banheiros públicos. Quando giramos o cadeado a palavra engaged aparece do lado de fora, indicando que a cabine está ocupada. A mesma palavra também significa noivado. Quando um casal se torna engaged, significa que eles estão comprometidos com um casamento próximo. No campo da mediação, este termo aparece com bastante frequência, na maioria das vezes, referindo-se ao que precisa ser feito para que o museu se torne mais engaging ou propício ao envolvimento e à participação. Enquanto o museu não se torna esse lugar convidativo, busca-se constantemente formar um público que seja capaz de engage com as obras. Não por acaso, engage também é o titulo de uma das publicações de referência no campo da mediação no Reino Unido, aludida na nota anterior. A escolha por traduzir o termo engage por participação justifica-se pelo amplo uso do último nas discussões brasileiras, fazendo crer que refletem preocupações equivalentes nos cenários britânico e brasileiro. (N. da T.)

[3] A palavra britanicidade consta do dicionário Houaiss. Ainda assim, certas ocorrências em português adaptam o termo para britanidade, por soar mais familiar ao idioma. (N. da T.)

[4] Nota-se a opção pelo uso da palavra encontro para designar uma situação comumente identificada pelo termo visita. Aqui o protagonismo é deslocado. Ao longo do texto, fica claro que a escolha por encontro (que também dá nome ao programa como um todo) permite reconsiderar a hierarquia de relações. Trata-se de conceber um cenário em que não apenas o visitante dirige-se ao museu para visitá-lo e apreender os conhecimentos nele disponíveis, denotando, no reverso, a possibilidade de um encontro em que a instituição também é confrontada com esse visitante, suas atitudes e seus repertórios. (N. da T.)

[5] Trecho extraído do livro Reagregando o social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede, traduzido por Gilson César Cardoso de Sousa, (Salvador, Edufba, 2012; São Paulo, Edusc, 2012). Em inglês o livro de Bruno Latour foi publicado sob o título Reassembling the social: An introduction to Actor Network Theory (Oxford, Oxford University Press, 2007). (N. da T.)

[6] No Reino Unido, a palavra experience está sendo cada vez mais utilizada em associação às funções do orientador de público. Essa função, antes designada por gallery assistant, passou a ser chamada de visitor assistant, evidenciando a inversão de prioridades. Na tradução, perde-se uma parte do que significa a existência de um experience manager, aqui traduzido por orientador de público. (N.da T.)

[7] Trecho retirado do livro Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, traduzido por Sergio Paulo Rouanet (São Paulo, Braziliense, 3 Ed., 1987). Na versão original do texto não consta a referência para a edição consultada pelos autores. (N. da T.)

Periódico Permanente é a revista digital trimestral do Fórum Permanente. Seus seis primeiros números serão realizados com recursos do Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010, gerido pela Funarte.

 

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