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Editorial: Periódico Permanente #6 - Mediação Cultural

A mediação não é só um termo em voga, embora também o seja. De fato, emprega-se o termo em situações as mais díspares, de forma cada vez mais disseminada. Além disso, muitas são as mediações, segundo as diferentes disciplinas que a discutem, sem que uma relação entre elas possa ser pressuposta. Nesse sentido, o campo da mediação alude à própria fragmentação sociocultural em que ela é convocada a intervir. Vivemos em meio a sociedades cada vez mais complexas, onde as bases para o diálogo entre as partes são cada vez mais heterogêneas – onde o próprio conceito de esfera pública, circunscrito por uma subjetividade específica, é denunciado como uma base excludente, e a necessidade de se “traduzir” uma base em outra se mostra urgente.

Embora esse processo concorra para o reconhecimento de uma pluralidade, inúmeras formas de violência – até mesmo sob disfarces altruístas, de transformação do outro, ou de apoio a processos de democratização – têm sido cometidas para se manter uma hierarquia entre as partes. Nesse contexto, a mediação tem sido, invariavelmente, convocada a suturar as fraturas socioculturais, por meio de conciliações e inclusões. Porém, nem sempre os conflitos aí deflagrados são conciliáveis e, muitas vezes, conciliá-los corresponde à tentativa de encobrir as desigualdades e assimetrias que eles expõem. Do mesmo modo, a vontade de incluir “dentro” quem está “fora” pode corresponder à inclusão subordinada de uma parte pela outra – à tentativa de recompor as mesmas hierarquias com a aquiescência das partes subordinadas.

Portanto, enfrentar a necessidade de tradução entre bases heterogêneas, considerando a complexidade das relações socioculturais, mas sem incorrer na promoção daquele tipo de conciliação ou inclusão, demanda outro tipo de mediação, não inteiramente novo, mas efetivamente comprometido com processos de transformação sociocultural, nos quais a pluralidade não se resuma à coexistência indiferente das diferenças, mas participe da construção de um comum dissensual, efetivamente político, radicalmente democrático. Eis o que este número da Periódico Permanente pretende favorecer. Inscrevendo-se, particularmente, no campo da educação em museus e exposições de arte, a PP #6 busca não só expor os limites dos modelos difusionistas – com os quais muitas práticas e instituições ainda se encontram comprometidas –, mas propor um conjunto de tópicos e referências que trabalhe “de dentro desses emaranhados” (Clifford).

Em continuidade à linha editorial da Periódico Permanente, selecionamos quinze textos/relatos do arquivo do Fórum Permanente, que há mais de dez anos vem se dedicando a documentar criticamente inúmeras situações de debate no campo das artes no Brasil. Esse arquivo foi vasculhado a partir dos verbetes: mediação, educação, público(s), ação cultural e política cultural. Os textos escolhidos ao longo dessa busca foram confrontados aos critérios estabelecidos pelos editores, que priorizaram: (a) abordagens críticas acerca das mediações institucionais e suas diferentes camadas; (b) análises problematizadoras das políticas culturais; e (c) entrecruzamentos de questões de natureza política, educacional, sociológica, artística, histórica, antropológica e comunicacional.

Buscou-se promover a aproximação entre, de um lado, textos concebidos por atores vinculados ao debate da mediação cultural stricto sensu e, de outro, escritos produzidos por agentes notadamente ligados às práticas da produção artística, da curadoria e da crítica. Assim, foram agrupados textos dos seguintes autores: André Mesquita, Artur Matuck, Beto Shwafaty, Cristiane Arenas, Euler Sandeville, Flávia Vivacqua, Gavin Adams, George Sander, Graziela Kunsch, Henrique Parra, Jorge Menna Barreto, José Augusto Ribeiro, Julia Buenaventura, Lúcia Maciel Barbosa de Oliveira, Maiza Franco, Maria Iñigo Clavo, Moacir dos Anjos, Paula Braga, Pompéa Tavares, Rachel de Sousa Vianna, Raquel Garbelotti, Thaisa Palhares e Thais Rivitti.

Para além dos textos do arquivo do Fórum Permanente, propusemos a tradução de oito textos inéditos em língua portuguesa, que, esperamos, possam contribuir decisivamente com a renovação da bibliografia de referência do campo, assim como do seu quadro de problemas. São os seus autores: Andrew Dewdney, Carmen Mörsch, Javier Rodrigo Montero, James Clifford, Jean-Marie Lafortune, Michael Warner, Niels Werber, Paulo Freire e Victoria Walsh. Também nos importa sublinhar que essas traduções foram realizadas por interlocutores que, de diferentes maneiras, atuam no campo da mediação cultural, ensejando, já na produção da PP #6, uma pequena esfera de circulação e debates de suas ideias – o que ela tem como um público (Warner). São os seus tradutores: Alexandre Barbosa de Souza, Diego Kerchove, Diogo de Moraes, Ethiene Nachtigall, Jorge Menna Barreto, Katalina Leão, Lucas Oliveira, Mônica Hoff, Thais Olmos e Valquíria Prates.

Esses textos foram organizados em quatro diferentes seções: (1) Mediação como prática cultural; (2) Entre a democratização e a democracia cultural; (3) Escavando as noções de públicos; e (4) Experiências não-hegemônicas em mediação. Além delas, uma quinta seção – (5) Mediação documentária – reúne diferentes projetos, apresentados em mídias diversas, que também podem ser considerados não-hegemônicos. São os seus autores: AntiKulti Atelier, Artur Zmijewski, Cécile Zoones, Graziela Kunsch, Kelly Sabino, Ligia Nobre, Mediación Comunitária, Mônica Simões e Temporal Filmes. Cada seção denomina um vetor ou aspecto das práticas mediativas em arte e cultura que, julgamos, deve ser adensado no processo de sua reconceituação – o que detalhamos a seguir. Por último, mas não por menos, o número tem seu projeto gráfico – ligado a um ensaio visual – concebido pelo designer e artista Vitor Cesar.

(1) Mediação como prática cultural: Nem sempre a mediação designa um campo de atuação profissional. A Antropologia Urbana, por exemplo, concebe-a como uma trajetória específica, de diferentes agentes (artistas, políticos, empregadas domésticas, etc.), que transitam entre diferentes mundos culturais (Gilberto Velho & Karina Kuschnir, 2001). No campo da educação em museus e exposições de arte, no entanto, a mediação costuma designar um lugar específico, em meio à divisão do trabalho que opera nesses contextos: o lugar de um serviço prestado, com funções meramente reprodutivas dos discursos consumados por outras instâncias. Concebê-la como uma prática cultural específica implica, em contraponto, pensá-la em relação a um espaço próprio de questões; a um espaço de pesquisa e atuação, onde sentidos e conhecimentos são produzidos.

(2) Entre a democratização e a democracia cultural: A mediação pode atuar segundo diferentes agendas político-ideológicas. No campo das suas relações com as políticas culturais, para efeito de análise, duas categorias têm identificado posições distintas, que ora se opõem, ora se complementam, quanto a seus propósitos e atribuições. Uma delas é a democratização cultural, que implica a distribuição para muitos daquilo que é produzido por poucos. Outra é a democracia cultural, que implica a articulação entre muitos daquilo que também é produzido por muitos. Em todo caso, é preciso notar que, no âmbito das políticas culturais, a primeira categoria tem sido amplamente priorizada, em comparação à segunda – o que convoca uma atenção para as linhas de poder que atravessam as relações entre ambas.

(3) Escavando as noções de públicos: Os públicos, muitas vezes, são considerados a razão de ser da mediação. De modo pertinente, o artista e educador Luis Camnitzer (2009), por exemplo, afirmou certa vez, em relação ao curador pedagógico, que este atua como um “embaixador do público”. Todavia, mesmo os públicos no plural, quando não o público no singular, costumam ser subsumidos a categorias sistêmicas e desistorizadas, como as de “público agendado” e “público espontâneo”, que desconsideram os públicos enquanto alteridade radical, em relação às intencionalidades institucionais, ou ainda, enquanto formações emergentes, capazes de auto-organização e dotadas de um imaginário político específico, eventualmente contrapúblico (Warner) – o que serve à instrumentalização dos públicos pelas instituições.

(4) Experiências não-hegemônicas em mediação: A renovação da mediação que se propõe aqui conta com um repertório relativamente amplo de práticas e experiências, que buscam (re)negociar seu papel em bases alternativas e não-hegemônicas. Reconhecendo a mediação como uma prática cultural específica, tais experiências a assumem como um espaço conflitivo, onde se travam “conversações culturais complexas” (Montero) – o que conclama tranformações no próprio funcionamento das instituições, assim como de suas lógicas de produção e circulação do conhecimento.

(5) Mediação documentária: Conceber a mediação como prática documentária implica, antes de mais nada, a percepção de que as práticas mediativas têm, muitas vezes, uma consistência efêmera e volátil; de que seus registros servem, muitas vezes, à demonstração de resultados “bem-sucedidos”, em atendimento aos interesses da gestão de sua imagem institucional – o que nos atrapalha de reconhecê-la como um espaço de produção de conhecimento. Em contraponto, a mediação documentária tem o registro e sua comunicação como um meio de reflexão e autocrítica. Além disso, a documentação implica o compromisso com o endereçamento a outras instâncias, tempos e contextos, daquilo que ela produz. Noutros termos, com a exposição daquilo que ela produz a uma esfera pública de debates sobre as questões (artísticas, culturais, políticas, sociais, etc.) que a envolvem.

Enfim, esperamos que este conjunto de textos e projetos seja útil a essa mesma esfera pública de debates.

 

Cayo Honorato e Diogo de Moraes

Fevereiro de 2016

 

Referências

CAMNITZER, Luis. Introdução. In: CAMNITZER, Luis & PÉREZ-BARREIRO, Gabriel (orgs.). Educação para a arte/ Arte para a educação; tradução de Gabriela Petit [et al.]. Porto Alegre: Fundação Bienal do Mercosul, 2009, pp. 13-28.

VELHO, Gilberto & KUSCHNIR, Karina (orgs.). Mediação, cultura e política. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001.

Periódico Permanente é a revista digital trimestral do Fórum Permanente. Seus seis primeiros números serão realizados com recursos do Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010, gerido pela Funarte.

 

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