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Editorial

 

Ao longo do 2015 e 2016, um grupo composto majoritariamente por artistas, pesquisadores e curadores formou uma frente de pesquisa interessada em estudar e debater o modo como o processo de museificação da História, com sua complexa estrutura de dispositivos narrativos e expográficos, tenderia a legitimar certas formas ideológicas de dominação política e cultural. Tendo por referência as teorias pós-coloniais e operando na fronteira entre arte, antropologia e história, o grupo se dedicou a levantar, analisar e debater diferentes aspectos constitutivos das práticas museológicas e curatoriais contemporâneas: suas escolhas temáticas; suas estratégias de esquecimento; seus discursos e elaborações conceituais; suas propostas expositivas; seus mecanismos de retificação simbólica e conceitual; suas fórmulas de fluxo e visitação; suas estratégias de financiamento, comunicação e visibilidade; suas estruturas técnicas, pedagógicas, etc.

Uma série de questões passaram a ser levantadas por nós como grupo: Seria a reificação histórica uma característica inerente à lógica da instituição museu? Existiria lugar no interior deste para uma crítica de sua própria narrativa? Poderiam esse tipo de prática  engendrar novas contradições, as quais, mediante novas roupagens teóricas e conceituais, simplesmente perpetuariam de modo outro as anteriores? Que políticas de exclusão e esquecimento poderiam vir a se formar, deliberada ou indeliberadamente, como resultado desse percurso de institucionalização da una nova crítica e antiga culturalizacão das hieraquias sociais? Por fim, como determinar a relação entre memória viva e História?

Atualmente uma nova geração de artistas, curadores e acadêmicos vem contribuindo para renovar o pensamento crítico no Brasil, se propondo a partir daí a repensar seu lugar e suas estratégias de atuação política no interior do sistema artístico nacional. Apostando numa reinvenção da antiga relação entre estética e política, uma série de iniciativas passaram a tensionar o status quo do fenômeno estético, apontando para uma crítica político-ideológica de suas narrativas institucionais. No entanto, se ainda na década passada essas iniciativas se viam obrigadas a circular aos trancos e barrancos pelas margens da institucionalidade oficial, o que observamos agora é algo bem diverso. No cenário atual, tudo se passa como se tudo e todos tivessem sido atingidos por uma inesperada revirada estético-ideológica. Museus, bienais, galerias e até mesmo feiras de arte investem seu capital simbólico e econômico no sentido de fomentar e apoiar iniciativas dessa ordem. Sem dúvida, tal mudança, permitida também ironicamente por décadas de crescimento e estabilização do mercado e sua cena, está influenciada pela emergência de outros espaços e experiências no campo artístico, como a Casa do Povo, Vila Itororó, a Oficina Cultural Oswald de Andrade ou a Residência Artística Cambridge, imprescindíveis para entender as transformações da cena paulista oficial. Através do redesenho de programações, da renovação de corpos curatoriais, a convocatória de editais de todo tipo e outras iniciativas, uma nova institucionalidade começou a se tracejar, uma na qual radicalidade e espírito crítico parecem ocupar um lugar importante. Assim, por exemplo, instituições como o MAR no Rio de Janeiro e recentemente a Pinacoteca de São Paulo tem aberto sua grades expositivas para uma conversa até agora esquecida sobre como “incluir” discursos identitários marginalizados na História da arte. No entanto, poucas são as vezes em que, para além da epiderme deste ou daquele viés temático, as velhas estruturas narrativas e marcos coloniais se vêem postos em rigoroso questionamento. Nesse sentido, nos parece um desafio contribuir para à reflexão sobre a teorização pós-colonial no debate artístico brasileiro. Ainda mais quando essas teorias passam a ser interiorizadas pelo meio artístico nacional em meio a toda uma gama de mal-entendidos, desvios e instrumentalizações intelectuais. Se por um lado queremos tratar dos influxos exógenos de violência e poder, por outro, queremos também falar de suas formulações internas e locais, de suas escaramuças ideológicas, sobretudo nacionalistas, que fazem do Brasil uma espécie de colônia extrativista de si mesmo.

Os artistas que formam parte deste grupo de trabalho fazem parte de uma nova geração que está atualizando o caráter político da arte brasileira  através de uma reflexão multifacetada do legado histórico, político e social do país. A partir das propostas e projetos apresentados nesse número, é possível se ter uma ideia de como suas diferentes abordagens da violência, do racismo, da escravidão, dos elitismos, da impunidade e da memória histórica nacional se posicionam no sentido oposto ao da univocidade dos grandes relatos fechados da História.

Na edição que preparamos para o Periódico Permanente, reunimos também matérias que incluem resenhas e textos de apresentação de alguns dos projetos curatoriais que nos últimos anos propuseram uma revisão crítica da narratividade histórica. Para além de seus eventuais conteúdos, tal seleção serve também aqui como um recorte representativo do debate historiográfico e curatorial brasileiro recente.

Sendo um grupo internacional na sua formação, não é de se estranhar que  seu olhar se mostre atento às pesquisas tanto de dentro quanto de fora do país. Por isso, em busca de outras vozes e rupturas, se encontrarão aqui textos relativos a experiência de estrangeiros atuando no Brasil, como também, por exemplo, reflexões sobre experiências realizadas no contexto colombiano e mexicano.

Por último, procuramos também republicar textos que julgamos de altíssima importância para este debate como um todo e que, para além disso, possam servir de refêrencia para tentarmos traçar uma genealogia da teoria critica pós-colonial no Brasil. Esses são os casos dos textos do antropólogo Antonio Riserio, “Os fios da Meada”, 1989, e do ensaísta e professor Silviano Santiago “O entre-lugar do discurso latino-americano”, 1971.

 

Instruções de uso para uma deriva: Índice e/ou Sumario?

Cada um dos integrantes do grupo propôs originalmente uma deriva pela sua matéria de pesquisa, apresentando temas, textos, projetos e referências tanto já existentes no próprio forumpermanente.org como em outras plataformas. Este material foi apresentado, debatido e recontextualizado a partir das demais referências propostas, de modo que, com o passar do tempo, certos entrecruzamentos, embates e aglutinações passaram, organicamente, a formar uma espécie de constelação conceitual dos temas e materiais debatidos. Nosso sumário é uma espécie de ensaio, resumo ou compêndio daquilo que sobreviveu a esse processo. Suas quatro seções (“Limites e fricções no museu”, “Desafiando taxionomias”, “Micromuseologias” e “Políticas do esquecimento”) são os pedaços e fragmentos de uma experiência de construção e analise uma experiência que vê na deriva talvez a nica possibilidade de trânsito e navegação por entre as ruínas da História.

 

O grupo e seus dois nomes em discussão: Historias em display ou Contra/histórias?

Qual deveria ser o nome da pesquisa coletiva tem sido um assunto de discussão dentro do grupo, dada a relevância inerente de qualquer titulo. “Historias em display” coloca como ponto central da discussão o desenvolvimento dos discursos nas arquiteturas e estruturas museológicas, relacionando estas com a apresentação de uma história. Como este “display” influi na percepção de noções vinculadas à construção do olhar sobre a sociedade na qual vivemos? Como desde a arte pode se propor uma nova articulação desses dispositivos? Porém “Contra/historias” enfatiza uma intenção propositiva as narrativas que são impressas nessas teias dos museus, pensando em quais são esquecidas e quais deveriam ser incluídas. As duas perspectivas somam os interesses do grupo, que quer aprofundar tanto no conteúdo dos discursos quanto na forma que estes são apresentados, sabendo que ambas são partes importantes na elaboração de contra-representações do passado e do presente que poderiam incidir na análise e articulação política de nossa identidade.

Desde o dia 11 de julho de 2014, data da primeira reunião formal, a dinâmica principal do grupo tem sido a visita a museus e exposições como espaços da administração da memória, da sua representação e imagem, que é aquela que possibilita a criação de discursos de identidade coletiva e verdade nacional.

Primeiro foi feita uma visita coletiva de campo a cada uma das instituições e mostras: Histórias Mestiças no Instituto Tomie Ohtake, Fundação Maria Luisa e Oscar Americano, Memorial da Resistência de São Paulo, Museu AfroBrasil, Museu da Imigração do Estado de São Paulo, Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, e a Pinacoteca do Estado de São Paulo, Museu Histórico Nacional de Rio de Janeiro. As vezes as visitas guiadas foram feitas pelo curador ou integrante da equipe curatorial do espaço, com o intuito de conhecer as intenções na concepção, narração e expografia do projeto. Em outras ocasiões o percurso foi feito junto com os gabinetes didáticos e guias que atendem ao público geral, permitindo assim identificar também os termos e estratégias do discurso institucional, no modo que ele é transmitido a qualquer visitante. A segunda parte de cada sessão consistiu no diálogo com vários convidados com trajetórias e experiências relevantes na formação de visões e revisões históricas na sua prática teórica e/ou artística, assim como na discussão de leituras que aprofundaram pontos de interesse e dúvidas surgidas nos diversos encontros.

Tem se formado assim uma dinâmica flutuante e aberta na qual os participantes das sessões têm discutido coletivamente as experiências surgidas nas visitas, os textos lidos e as conversas com os convidados. Nelas  fica explícita a convivência de múltiplos pontos de vistas bem como as diversas possibilidades de releitura e reelaboração de narrativas históricas. Nesta edição do Periódico Permanente apresentamos uma amostra das pesquisas e diálogos que se estabeleceram, propondo uma leitura que não quer se fechar em um só padrão possível.

 

 


 

Editorial: Claudia Rodriguez-Ponga, Maria Iñigo Clavo, e Marta Ramos-Yzquierdo.

Revisão do editorial: Deyson Gilbert.

Coordenação da edição: Claudia Rodriguez-Ponga, Maria Iñigo Clavo, Mariana Lorenzi de Azevedo e Marta Ramos-Yzquierdo.

Participantes no grupo 2014-2016: Ana Tomimori, Beto Shwafaty, Bruno Moreschi, Carlos Guzmán, Clara Ianni, Claudia Rodríguez – Ponga, Daniel Steegmann, Deyson Gilbert, Fabio Tremonte, Fer Nogueria, Fernando Piola, Frederico Costa, Guilherme Peters, Ícaro Lira, Jaime Lauriano, Lais Myrrha, Leandro Nerefuh, Marcos Gorgatti, María Iñígo Clavo, Mariana Lorenzi de Azevedo, Marina Coelho, Marta Mestre, Marta Ramos-Yzquierdo, Mónica Espinel, Olivia Ardui, Paulo Nimer Pjota , Rita Natálio, Roberto Winter, Tobi Maier, Tomás Toledo de Azevedo e Victor Leguy.

Convidados 2014-2016: Benjamin Meyer-Krahmer , Cristina Lleras, Eduardo Góes Neves, Laymert García dos Santos, Lilia Schwarcz, Pedro Nery e Regina de Miguel.

Visitas realizadas 2014-2016: “Histórias Mestiças”, Instituto Tomie Ohtake, Fundação Luisa e Óscar Americano, Memorial da Resistência de São Paulo, Museu Afro Brasil, Museu da Imigração do Estado de São Paulo, Museu de Arquelogia e Etnologia. Universidade de São Paulo e Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Agradecimentos:  Casa do Povo, Kunsthalle São Paulo e Pivô.

FAPESP <bolsa de pos-doutorado de Maria Inigo Clavo>

Periódico Permanente é a revista digital trimestral do Fórum Permanente. Seus seis primeiros números serão realizados com recursos do Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010, gerido pela Funarte.

 

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