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PENSAMENTOS AO FIO DE DUAS ABERTURAS E UMA BIENAL FALIDA. CARLOS MONROY, ICARO LIRA, E A BIENAL QUE FINALMENTE NÃO FOI DE MERCOSUL.

 

Este texto foi publicado originalmente em espanhol na plataforma Esfera Publica no 13/11/2015. Para  acessar o artigo original ver http://esferapublica.org/nfblog/al-hilo-de-dos-inauguraciones-y-una-bienal-fallida/

 

 

“O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede, concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma ação política ou como uma meditação. (…) Um mapa é uma questão de performance”[1]

 

    1. Enquanto Carlos Monroy inaugurava seu Museu da Lambada no novo galpão do VideoBrasil em São Paulo, cuja edição atual intitula-se “Panoramas do Sul”, a Bienal de Mercosul “Mensagens duma nova America” convertia a fronteira num criterio valido para solicitar que “os de fora” se custeassem eles próprios a participação na reputada Bienal. Este comportamento, que pretende-se apresentar como uma questão pratica e logística, põe de manifesto uma atitude cultural tão arrogante quanto patética -quase me atreveria a dizer “colonialista”-, com a qual, sendo espanhola, estou bem familiarizada. No texto introdutório que fica em um dos cantos do Museu da Lambada, podemos ler a seguinte declaração de Monroy: “O Brasil, da perspectiva dos outros países latino-americanos, continua sendo o gigante entorpecido (e não adormecido). A cortina de fumaça formada pelo consumo desmedido do progresso tem gerado o que eu vejo como um desentendimento cultural do Brasil perante a America hispânica… o Brasil não se ve como ‘nos, latino-americanos’; não ha políticas culturais ou sociais que construam essa identidade. O brasileiro faz a vista grossa para nós, nos exotiza e nos empacota, tal qual as políticas coloniais ainda vigentes fazem com ele”. Sincronicidade junguiana da boa. Enquanto Monroy mapea a gênese dum fenômeno cultural latino-americano cujo catalisador foi um migrante boliviano anônimo no Brasil, entregado aos devires socio-económicos da época, a Fundação Bienal de Mercosul demarca unilateralmente os limites da grande ilha continental, com todas as implicações simbólicas que isso tem por se tratar do Mercosul e, ainda melhor, dos “mensagens duma nova America”.

       

        2. O Museu da Lambada é um exercício cartográfico: entre cartográfico e mediúnico, como as pesquisas de outrora. O artista até certo ponto exercita-se como notário da realidade: anota, assinala, levanta acta. Mas o método que ele emprega não se parece com o “científico”, segundo este fora definido após Galileu, e sim com outros que o historiador Carlo Ginzburg chama de “conjecturais”. Ginzburg compara os “sintomas” freudianos com os “traços” que dirigem os passos do investigador Sherlock Holmes e com as “marcas pictóricas” que Giovanni Morelli usava para reconhecer a autoria de pinturas de atribuição incerta. Ginzburg mostra como Freud foi influenciado pelos métodos do detetive inglês criado pelo espírita Sir Conan Doyle e também pelos escritos de Giovanni Morelli. Mas o que estes três tinham em comum? Seus métodos de interpretação baseados em informação descartada e dados marginais. O termo “conjectural”, tem sua origem em práticas divinatórias, que funcionavam de forma parecida com a caça: as procuras do caçador tinham por objeto o esclarecimento do passado, enquanto as práticas divinatórias tinham por objeto o esclarecimento do futuro. No entanto, existem entre elas grandes semelhanças, sendo que “as operações intelectuais envolvidas – análises, comparações, classificações” eram “formalmente idênticas”.[2] Assim, Ginzburg fala sobre um paradigma venatório que pode ser dirigido ao passado, presente ou futuro. O “paradigma venatório” seria o paradigma segundo o qual detalhes considerados de pouca importância fornecem a chave de assuntos cruciais. Não é à toa que Ginzburg abre seu ensaio com a conhecida epígrafe de Aby Warburg: “Deus está no detalhe”.

           

            3. Concomitantemente à abertura de Monroy e a falencia bienalistica, Icaro Lira abria ao público seu “Campo Geral” na Galeria Central, um “mapa movel”[3] de sua pesquisa/trabalho/produção. Icaro cartografa a história esquecida do nordeste do Brasil ao longo do curso de suas viagens, re-coletando peças de evidencia descartada e se “deslocando” em mais dum sentido, bem além do estritamente geográfico. A viagem vira um trabalho, pois viajar é, também, uma técnica; tanto quando se trata de alcançar um estado de suspensão que pode permitir uma viagem extracorpórea como quando se trata de ir a algum lugar de um mapa. Viajar é, em muitas culturas, uma arte de iniciação e, como tal, é a arte de ser transformado. Mas como? Por meio, neste caso, dos detalhes: da imersão numa teia de minudências que vão marcando as rotas, construindo uma cartografia “com multiplas entradas e saídas”[4]. Traços que testemunham a existencia de campos de concentração para migrantes do interior do nordeste, vestigios de movimentos revolucionários místicos que nunca chegaram até as páginas dos livros de história e ferramentas da roça e da produção de borracha se misturam com diários de viagem e pedacinhos de santos quebrados…. Em resumo: detalhes que fornecem a chave de assuntos cruciais. Detalhes que vão construindo uma grande cartografia. Usando a terminologia de Guattari e Deleuze, mapas moveis (não decalcados); me remitindo a Ginzburg, cartografias venatórias, construidas em base a detalhes sem importancia aparente. O resultado, longe de ser “um mapa imaginario fica ancorado no real[5]. O que muitos acadêmicos do ramo das humanas vivem se debruçando para fazer (“acompanhamento de percursos, implicação em processos de produção, conexão de redes ou rizomas”[6], como dizem Eduardo Passos e Virgínia Kastrup na apresentação de suas “Pistas do Método Cartográfico”), Icaro e alguns outros conseguem como artistas. Artistas que são documentaristas/museografos/dançarinos/arqueólogos/historiadores/jornalistas… que são, em resumo, artistas.

               

                4. Durante os seis meses que durou a pesquisa e produção do Museu da Lambada, Carlos Monroy foi todos os domingos para a Kantuta, também conhecida como a “feirinha boliviana” do Bom Retiro. Mas antes disso ele foi para Bolivia, não só para realizar entrevistas para o documentário sobre a vida de Chico de Oliveira ou Francisco Olivares, mas também para entender um pouco mais de uma “cultura” (excuse my French) que não era a sua. Carlos Monroy tem se deixado transformar pelo projeto: ele quer continuar dançando e entendendo como outras danças híbridas e fronteiriças se conformam. Mas o potencial transformador do “projeto” não pode-se pressupor: depende sempre de nossa capacidade e disposição para ser transformados. Nestes casos, de ser transformados por pessoas (e culturas, ahem…) consideradas “detalhes sem importancia”: um anônimo migrante boliviano no Brasil, por exemplo. Aqueles que guardam a memoria dos campos de concentração do nordeste, por exemplo. Desde duas estrategias de visibilização diferentes, Carlos Monroy e Icaro Lira desenham esses cruzamentos de trajetórias e produzem mapas de fluxos, de desejos migratorios concatenados na margem (além ou aquém) das fronteiras.

                   

                    5. Em conclusão: muito poderiam aprender as instituições que tentam mapear as mensagens duma nova America (e acabam decalcando as velhas fronteiras) dos mecanismos cartográficos dos artistas e suas viagens deslocadas e deslocadoras.



                      [1] Mil Platos

                      [2] Ginzburg, Carlo.

                      [3] Mil Platos

                      [4]

                      [5] “O mapa se opõe ao decalque é por estar inteiramente voltado para uma experimentação ancorada no real.”

                      [6] Pistas do metodo cartografico 1

                      Periódico Permanente é a revista digital trimestral do Fórum Permanente. Seus seis primeiros números serão realizados com recursos do Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010, gerido pela Funarte.

                       

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