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Além da materialidade

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Joana Asseff Neves

 

Em 1963, no clássico livro Teoria da restauração, o italiano Cesare Brandi fez uma ampla e sistemática formulação teórico-metodológica sobre a área de restauração, pontuando, como primeiro axioma, que se restaura somente a matéria da obra de arte. Para ele, esse axioma valoriza a matéria como “aquilo que serve à epifania da imagem” (BRANDI, 2008, p. 29). Dessa forma, o tratamento de obras convencionalmente construídas, composta pelo suporte (estrutura) e pela imagem (aspecto), reafirma e valida o trabalho do conservador-restaurador. É sob essa base que a área de restauração se consolidou no Ocidente a partir da segunda metade do século XX.

Porém essa consolidação vem sendo questionada nas últimas décadas, pois tem se mostrado inadequada para fornecer as bases teóricas para a intervenção de algumas obras da produção contemporânea, segundo Baldini:

A pouca durabilidade dos materiais, a dificuldade de estabilizar os processos de degradação, a insegurança sobre os limites da intervenção e a falta de uma teorização específica que estabelecesse estes limites, fez com que, nas últimas décadas do século XX, começassem a surgir os primeiros congressos e simpósios voltados especificamente para a arte moderna e contemporânea. (BALDINI, 2010, p. 83).

 

Assim, os artigos “O que conservar?”, de Lino Morales, e “O valor de contemporaneidade”, de Isis Baldini, apresentados nesta edição da revista Periódico Permanente, discutem essa nova função do conservador-restaurador, propondo maneiras singulares de refletir e intervir em obras de arte contemporâneas de complexa criação. Os textos – embora seguindo caminhos explicativos diferenciados – visam ampliar as discussões da área de conservação-restauração para além da materialidade dessas obras, tema esse com crescente abordagem nos meios teóricos nas últimas décadas. Segundo Athöfer, por exemplo, atualmente, não basta conhecer os materiais e dominar as técnicas de restauração para fazer um bom trabalho. Para ele, também é necessário mergulhar no universo intelectual, na filosofia do artista; caso contrário, a restauração partiria de um ponto equivocado (Althöfer, 2006, p. 73).

Sendo assim, a partir do momento em que o trabalho do conservador-restaurador precisou ir além da materialidade da obra de arte (requerendo uma análise sob um novo ponto de vista) para que a intervenção respeitasse sua existência imaterial, abriu-se um debate sobre a formação desse profissional que muitas vezes está preso aos problemas apresentados pela matéria.

O texto de Morales trabalha alguns conceitos como autenticidade, identidade, unidade e finalidade, procurando demonstrar a inter-relação entre eles e a sua importância para as dúvidas geradas nos tratamentos das obras contemporâneas. Para ele, a noção de autenticidade ampliou-se ao longo do tempo com as discussões promovidas acerca da conservação do patrimônio cultural, tanto em seus aspectos materiais como imateriais. Portanto, não existe um estado de autenticidade imutável, mas sim diferentes estados de autenticidade, uma vez que a escolha da autenticidade final do objeto restaurado (protoestado) é uma escolha de identidade. Dessa forma, o foco principal da conservação é a identidade da imagem, centrada justamente na subjetividade da relação sujeito-objeto. Morales observa que, apesar das dificuldades pontuadas, o processo de documentação desses bens deveria ser capaz de garantir sua identidade e justificar a necessidade da sua conservação.

Já Baldini complementa o questionamento de Morales. Para ela, quando realizamos uma intervenção em uma obra não convencional, além da materialidade, temos de considerar os aspectos imateriais, ou seja, aqueles subjetivos, entre eles o que ela denomina de valor de contemporaneidade. Esse valor é dinâmico, flexível e maleável, está diretamente ligado à poética da obra, influi no mapa dos atores envolvidos em sua salvaguarda e remodela a avaliação crítica que deve embasar um tratamento interventivo (BALDINI, 2022, p. 2).

Baldini traz também a reflexão acerca dos campos que compõem uma obra - estruturados de forma metonímica - e das camadas de informações adicionadas a estes. Para a autora, algumas obras da produção contemporânea apresentam um novo campo nessa estrutura (ligado aos aspectos filosóficos) que altera significativamente a decisão do conservador-restaurador diante da salvaguarda dessas obras.

É possível considerar que os diferentes estados de autenticidade, citados por Morales, também podem integrar esses campos ou ser resultado da interação destes quando influenciados pelas camadas socioculturais inseridas pelo fator tempo.

Dessa forma, os textos, mesmo que expressos em linhas de raciocínio nem sempre convergentes, possuem similaridades que se complementam e possibilitam uma ampla reflexão sobre a conservação de obras de arte contemporâneas, como pode ser constatado nas entrevistas que serão apresentadas ao final.

 

 

 

 

Bibliografia

 

 

ALTHÖFER, Heinz. La restauración del arte moderno y contemporáneo. In: RIGHI, Lídia (org.). Conservar el arte contemporáneo. Donostia-San Sebástian: Editorial Nerea, p. 71-78 , 2006.

 

BALDINI ELIAS, Isis. Conservação e restauro de obras com valor de contemporaneidade. A arte postal da XVI Bienal de São Paulo. Tese (Doutorado) – Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, 2010.

 

BRANDI, Cesare. Teoria da restauração. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008.

Periódico Permanente é a revista digital trimestral do Fórum Permanente. Seus seis primeiros números serão realizados com recursos do Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010, gerido pela Funarte.

 

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