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A discreta história: reflexões sobre a construção de uma história de arte na América Latina

Esta edição do Periódico Permanente é um encontro de textos de vários historiadores, críticos e curadores da arte da América Latina, ensaios e artigos cujo denominador comum está em pensar nas possibilidades de construir, ou não, uma história da arte a partir dessa latitude. Os textos, que vão de 1961 a 2017, reúnem posicionamentos diversos em momentos históricos específicos: da tentativa de fazer uma Bienal de Arte Latino-americana, passando pela crise dos anos 1990, quando o termo "latino-americano" era fortemente questionado, até hoje, dias em que as coleções e os colecionadores têm uma participação decisiva na constituição do cânone. O título da compilação deriva do clássico filme do Buñuel, "o discreto charme da burguesia", mas também do artigo de Cuauhtémoc Medina compilado neste volume. Todos os artigos foram gentilmente cedidos pelos autores, autores definitivos na reflexão sobre as possibilidades da história na arte latino-americana.

- Discreto, ta

Do latim discretus, “separado”. Em matemática, conjunto de elementos distintos, descontínuos ou não conectados.

Julia Buenaventura

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Introdução

As histórias panorâmicas da arte latino-americana moderna e contemporânea podem ser divididas em dois grupos: o primeiro, com seu núcleo na década de 1970, escrito principalmente em língua espanhola e para um público do continente; o segundo, dos anos 1980 e 1990, escrito ou publicado em inglês e para um público anglo-saxão. Além da diferença nas línguas, entre esses dois conjuntos há uma distância enorme, geográfica e histórica. Trata-se de pontos de vista diversos que alteram o objeto de estudo, particularmente no que diz respeito às formas de periodização, aos critérios de seleção de obras e artistas, e às relações estabelecidas entre a produção latino-americana e a europeia e estadunidense.

O primeiro período – década de 1970 – envolve um ambiente político.[1] A constituição do passado abria o caminho para a construção do futuro, pois se conseguíssemos a independência cultural frente à Península Ibérica e à Europa, teríamos as raízes suficientes para construir, no futuro imediato, a independência econômico-política diante dos Estados Unidos. Essa conjuntura foi rica em discussões, pesquisas, viagens e troca de conhecimento entre os autores do continente, e viu seu ponto mais instigante, paradoxalmente, num simpósio realizado nos Estados Unidos: Austin, em 1975.[2] Os críticos de arte latino-americanos se reuniam em Texas para discutir questões de identidade, especificamente debater se existia ou não uma chamada arte latino-americana, assunto que os latino-americanos costumam abordar com alguma desconfiança.

 

Quatro dos principais nomes desse primeiro período são o argentino Damián Bayón, quem, junto com Jorge Romero Brest, fundou a revista Ver y Estimar; Marta Traba, argentina radicada na Colômbia, correspondente da mesma revista (a qual teve duas fases: a inicial, associada à defesa da abstração, e uma segunda envolvida com um programa de independência cultural de América Latina); Juan Acha, peruano radicado no México, marxista, cujo foco estava na elaboração de uma história social das artes do continente; e a brasileira Aracy Amaral, cujo trabalho tem sido fundamental na articulação da história da arte do Brasil no século XX e na construção de pontes com os países hispânicos, algo de que a proposta de uma Bienal de Arte Latino-americana (1978) e a abertura da cátedra “Arte contemporânea na América Latina: do problema de identidade” (1984-1990), na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade de São Paulo dão conta.

 

Essa constelação de críticos-historiadores – Bayón, Traba, Acha e Amaral –, por sua vez, relaciona-se com outros intelectuais da América Latina. De uma parte, prossegue o trabalho dos críticos imediatamente anteriores: o já mencionado Jorge Romero Brest, argentino, fundador de Ver y Estimar e diretor do emblemático Instituto Torcuato Di Tella em Buenos Aires, e Mário Pedrosa, brasileiro que articulou o Museu de Arte Moderna e a Bienal de São Paulo em suas primeiras edições;[3] de outra, trata-se de uma constelação de críticos-historiadores que, nos anos 1970, foi contemporânea do boom da literatura latino-americana. Essa proximidade se deu como uma espécie de contradição, pois se essa explosão trazia um ar de independência cultural para o continente, também o emoldurava nos adjetivos “fantástico” ou “real-maravilhoso”, clichê que seria difícil de romper subsequentemente. Do mesmo modo, esse boom envolvia um reconhecimento do continente por intermédio das letras, e esses intelectuais das artes plásticas estavam lutando justamente para separar as artes do relato, para romper uma subjugação de séculos da imagem à palavra, propondo uma história das artes plásticas autônoma com relação à narração.[4]

 

O primeiro parágrafo do livro Aventura plástica de hispanoamérica, de Bayón, publicado em 1974, dá conta desse caráter de exceção com relação ao boom:

 

Faz uns dez anos, a América Latina está na moda no mundo todo e – mais excepcional ainda – entre nós mesmos. Não vamos nos enganar. Isso se deve a três fatos preponderantes: primeiro, à política – boa ou ruim – de nossos respectivos países; segundo, à música popular; e terceiro, em ordem natural decrescente, ao chamado boom de uma determinada literatura contemporânea.[5]

 

Ente os quatro autores mencionados, os livros que se encarregaram de construir uma visão panorâmica das artes produzidas na América Latina no século XX são: o mencionado Aventura plástica en hispanoamérica (1974) e Historia del arte hispanoamericano [vol. 3, séc. XIX e XX] (1987), de Damián Bayón; de Marta Traba, Dos décadas vulnerables en las artes plásticas latinoamericanas (1977), e uma publicação póstuma intitulada Arte de América Latina 1900-1980 (1994); de Juan Acha, Arte y sociedad en América Latina (1978); e nesse período específico, encontramos uma série de artigos de Aracy Amaral publicados em diferentes meios, os quais vão ser reunidos no livro Arte e meio artístico: entre a feijoada e o x-burguer (1982).

 

Do mesmo modo, entre as coletâneas de autores são fundamentais dois volumes realizados por Bayón: o primeiro, publicado na Cidade de México, em 1974, intitulado América Latina en sus artes; o segundo, publicado em Madrid, em 1985, produto de uma exposição jamais realizada no Museu de Arte Moderna de Nova York, intitulado Arte moderno en América Latina. Por sua vez, é necessário lembrar o segundo volume dos Textos do Trópico de Capricórnio – Circuitos de arte na América Latina e no Brasil, de Aracy Amaral, livro que dá uma ajuda enorme para compreender como foi construída a história da arte no continente, pois, em artigos da época, a autora expõe a trajetória desse empenho, além de apresentar relatos, em primeiríssima mão, sobre Marta Traba, Damián Bayón e Mário Pedrosa.

 

Antes de entrar no segundo segmento das histórias panorâmicas da arte na América Latina no século XX, é preciso mencionar o livro de Leopoldo Castedo, History of Latin American Art and Architecture – From Pre-Columbian Times to the Present, escrito em espanhol, mas publicado pela primeira vez em inglês, em Nova York, em 1969. Nascido na Espanha, Castedo foi um historiador naturalizado chileno e chegou nesse país, de fato, no legendário Winnipeg, navio que Neruda idealizou para resgatar mais de 2000 espanhóis exiliados pela ditadura de Franco. Castedo conheceu profundamente o continente americano e sua pesquisa foi referência para os historiadores da geração mencionada.

 

*

 

O seguinte grupo de histórias panorâmicas pode ser denominado como V Centenário, pois encontra seu eixo, de uma ou outra forma, no aniversário, em 1992, dos 500 anos da chegada de Cristóvão Colombo às Antilhas. Data singular, pois, se de um lado, foi rejeitada pelos hispano-americanos como memória de domínio e opressão, de outro, foi ignorada no Brasil, que teve seu próprio V Centenário – a chegada de Pedro Álvares Cabral – no ano 2000, assunto que passou sem infâmia e sem louvores.

 

Em suma, foi uma festa mais comemorada pelos estranhos do que pelo aniversariante em si, circunstância que nunca acaba por dar certo. Um aniversariante que, além do mais, não tinha muita certeza de ser essa a data de seu nascimento: como um Câncer que se acha Capricórnio, desconfiava de ser um 12 de outubro ou um 22 de abril o começo de sua história. Várias exposições foram feitas com o intuito de definir, caracterizar a arte da América Latina após esses cinco séculos, entre elas Latin American: Art of the Fantastic, de 1987, organizada por Holliday T. Day e Hollister Sturges, em Indianópolis, Estados Unidos, e Art in Latin America. The Modern Era, 1820-1980, organizada por Dawn Ades na Hayward Gallery de Londres, em 1989.

 

No final de década de 1980, a América Latina voltava a estar na moda, mas em uma situação completamente diferente à referida por Bayón em 1974, já não mais “entre nós mesmos”, mas sendo um objeto contemplado e classificado de fora, a partir de outros meridianos, outros paralelos. Um objeto enxergado de tão longe, que se tornou homogêneo, carente de particularidades, cuja diferença com relação ao Velho Mundo – um mundo velho que, na segunda metade do século XX, parecia ter incluído os Estados Unidos em seu mapa – era de ser fantástico, e cuja semelhança com ele, era o papel da cópia. A arte latino-americana era uma cópia fantástica da cultura ocidental. Tudo isso no cenário pós-Guerra Fria, um marco neoliberal que iria condicionar a política econômica do continente.

 

Os principais textos panorâmicos desse V Centenário são: em 1989, o livro de Dawn Ades, produto da referida exposição na Hayward Gallery, com o mesmo título, Art in Latin America. The Modern Era, 1820-1980, publicado em Londres pelo South Bank Center; em 1993, Latin American Art of the 20th Century, de Edward Lucie-Smith, publicado pela editora Thames and Hudson, também de Londres; e, em 2001, de Jacqueline Barnitz, Twentieth-Century art of Latin America, editado pela Universidade de Texas, nos Estados Unidos.

 

Art in Latin America. The Modern Era, 1820-1980 (1989), de Dawn Ades, é um texto de referência, e um dos poucos materiais sobre o tema publicados em inglês, espanhol e português.[6] Todos os capítulos foram escritos por Ades, com exceção de um sobre os artistas viajantes do século XIX, de Stanton L. Catlin – texto excelente –, e outro sobre arte abstrata da Venezuela e o Brasil, de Guy Brett.

 

Desde a introdução, o livro anuncia o interesse de apresentar a arte latino-americana a um público europeu, objetivo esse que parece incidir na sequência de uma periodização feita com antecedência – a do Velho Continente. Dessa forma, o século XIX terá de encontrar seu início na ruptura com escola de David e os neoclássicos, enquanto o século XX deverá ter sua causa primeira no Impressionismo. Esse método – não exclusivo de Ades, mas de vários autores latino-americanos – sempre vai dar em conflitos, pois nunca é cômodo calçar os sapatos do outro. De fato, Ades começa sua história do século XIX procurando quadros de estilo neoclássico sobre a Independência; se David pintou Napoleão, vamos procurar alguém que pintasse Bolívar. Porém, a autora só se depara com retratos ruins – pois era inexistente qualquer neoclassicismo nos países andinos nesse momento –; então, sem encontrar outro caminho, acaba por apresentá-los como documentos históricos e não como obras de arte. A consequência é que, durante páginas e páginas, Ades não entra no problema da arte porque está tratando com documentos históricos, mas também não assume uma abordagem séria da história política, econômica e social porque está discorrendo sobre arte. Assim, a revisão do século XIX e várias passagens do XX, é superficial, chegando a cometer erros, como afirmar que Caracas era o centro da Grã Colômbia, o que implica, sobretudo, uma incompreensão do conflito do projeto de Bolívar logo após a Independência.[7]

 

Sobre o livro de Edward Lucie-Smith, Latin American Art of the 20th Century (1993), não há muito o que dizer. De fato, decidi incluí-lo aqui por se tratar de um texto de grande distribuição, comissionado por uma editora comercial e não universitária, o que o faz abranger um grande público. Lucie-Smith escreve uma história com uma periodização alheia, procurando um referente europeu para cada artista latino-americano, e incorrendo em erros que dão notícias de seu profundo desconhecimento sobre o tema.[8]

 

Finalmente, mencionarei Twentieth-century art of Latin America (2001), de Jacqueline Barnitz, autora que ministrou durante várias décadas aulas sobre arte latino-americana na Universidade de Texas. No que se refere a esse texto, é curioso como a localização geográfica – que, no final das contas, é nosso mesmo ponto de vista – incide na construção da história. Com efeito, os vizinhos do Texas têm uma grande relevância, assunto que Barnitz explica desde a primeira página do livro: “Devido à sua localização no hemisfério norte, México e os países do Caribe estão mais perto dos principais centros de arte norte-americanos e europeus, o que resultou em maior contato com esses centros durante anos”,[9] para continuar a explanar que essa condição foi a causa do famoso mapa de Torres-García que, virado de cabeça para baixo, diz: “Nosso norte é o sul”.

 

Essas linhas de Barnitz deixam o leitor surpreso. Primeiro, porque não é verdade: cidades como Buenos Aires ou São Paulo tinham contato direto com a Europa e Nova York no séculos XIX e XX; segundo, porque parecem desconhecer o modelo de Marta Traba, autora citada e comentada por Barnitz, entre países abertos – Argentina, Uruguai ou Venezuela – e os países fechados – como o eixo andino; e, terceiro, porque a inversão do mapa de Torres-García não apontava a isso, mas justamente para a tomada de autonomia de um norte que estava próximo demais, não afastado.

 

De igual forma, é preciso revisar as seguintes linhas de Barnitz destinadas a explicar a identidade, ou falta de identidade, da arte latino-americana: “Por causa de sua grande história de colonização por espanhóis, britânicos, franceses e norte-americanos, e pela sua proximidade com os Estados Unidos, a América Latina é um sujeito volátil”.[10] Às vezes, pecar por omissão é tão grave quanto pecar por comissão: Barnitz esqueceu os portugueses, sendo que sua história inclui o Brasil. Isso pode acontecer sem má vontade, mas revela muito da construção do livro.

 

Em suma, a brecha que separa as duas tentativas de construção da história da arte latino-americana fica clara após uma revisão bibliográfica realizada nos dias de hoje (2015), mas já era evidente na década de 1990, como afirma Aracy Amaral, no artigo intitulado “História da arte moderna na América Latina” (1996):

 

Existem hoje em dia dois tipos de bibliografia artística sobre América Latina: uma, aquela realizada ao longo das últimas décadas, com dificuldade e esforço tenaz por parte de investigadores independentes e universidades de todo o continente; outra, que está surgindo nos últimos dez ou quinze anos, se muito, por parte de museus e críticos europeus e norte-americanos, sobretudo anglo-saxões [...] uma fonte bibliográfica um tanto perversa para os historiadores de arte dos países deste continente, uma bibliografia sintética, equivocada e com desconhecimento de causa na maior parte dos casos, mesmo para os investigadores estrangeiros interessados nas artes do continente.[11]

 

 

*

 

De qualquer forma, tratou-se de uma segunda onda de historiografia contestada por vários autores latino-americanos, que questionaram o clichê da identidade e, sobretudo, o caráter superficial desses panoramas abrangentes. Daí foram gerados textos ou exposições mais interessados em constituir vínculos entre as produções dos diversos países do continente do que em redigir uma História, com maiúscula, de sua trajetória artística. Gerardo Mosquera organizou o volume Beyond “The Fantastic” (Londres, 1995); Luís Camnitzer propôs “Una genealogía del arte conceptual latino-americano” (1997),[12] e Mari-Carmen Ramírez curou duas exposições, cujos catálogos abrem a possibilidade de compreender os vínculos entre diversos movimentos do século XX nos países da América Latina – estou me referindo a Heterotopias, em 2000, e Inverted Utopias, em 2004.[13] Neste conjunto, é possível incluir o livro Latin American Art in the Twentieth Century (1996), editado por Edward Sullivan, e que reúne um leque de historiadores, críticos e curadores entre os quais se encontram Ivo Mesquita, Gerardo Mosquera e Rina Carvajal. O livro assume a história da arte na América Latina por países, incluindo um novo capítulo: “Arte chicano”, conjunto que, na década seguinte, aparecerá sob o nome de “Arte latino” e que presta contas da comunidade imigrante de origem hispana nos Estados Unidos.

 

Com relação a essa resposta, é preciso assinalar que foi uma reação com textos excelentes, mas redigida em inglês ou publicada fora do continente, de forma que a América Latina voltava a ficar um tanto à margem da construção de sua própria história. Mais ainda, pareceu se dissolver o interesse de propor histórias panorâmicas e abrangentes da arte latino-americana por pesquisadores latino-americanos – assunto que pode ter várias causas: de um lado, o historiador e o crítico passaram a desenvolver o papel do curador, ofício que está desvinculado do âmbito de uma pesquisa mais acadêmica; de outro lado, a ideia de uma América Latina unida deixou de ter uma condição de projeto político-econômico para um momento próximo, o que sem dúvida atingiu o interesse de construir uma história comum, pois o passado só volta ser escrito quando o objetivo é modificar o futuro.

 

*

 

Esta compilação é constituída por um leque de relatos historiográficos e curatoriais sobre como seria possível construir (ou não) uma história da arte na América Latina. O primeiro dos textos é a introdução da VI Bienal de São Paulo, organizada em 1961 por Mário Pedrosa, bienal que se propõe a fazer uma não história de uma não arte, uma arte que escape da “cancha mediterrânea” e o relato de poder que esta envolve. Depois dos artigos de Traba e Bayón, este último várias vezes citado pelos seguintes autores da compilação, encontramos o texto de Frederico Morais, que faz uma recontagem, em primeira pessoa, de tudo o que foi escrito e discutido sobre o tema na sua geração, recontagem que não carece de humor e detalhes apaixonantes. Um texto de Leopoldo Castedo, primeiro historiador da arte do continente, fecha a primeira geração de críticos que se interessaram pelo tema.

 

A segunda geração é aberta com um texto de Ivo Mesquita, o prólogo ao catálogo de Cartografias, no qual fica claro seu caráter de curador mais do que de historiador ou crítico de arte. O texto é uma discussão sobre a possibilidade de se falar de uma arte do continente, e, é preciso dizer, a sua publicação original contém o Glossário incompleto de fontes latino-americanas, escrito por Paulo Herkenhoff em 1992, verdadeira joia que antecede a estruturação da Bienal da Antopofagia, em 1998.

 

Amaral, que é ponte entre ambas gerações, entra com um texto apresentado no Seminário Internacional de Estudos de Arte da América Latina no Instituto de Investigações Estéticas da UNAM, em 1996, artigo que faz uma recontagem compendiada e profunda da história da arte da América Latina no século XX. E aqui é preciso assinalar a capacidade de síntese da autora. Andrea Giunta entra com um artigo apresentado no mesmo simpósio, em que questiona o pertencimento dessa arte à cultura ocidental: “Poderíamos, inclusive, perguntar se tem sentido para nós, como grupo, formular uma história da arte latino-americana, diante das inevitáveis generalizações que a proposta, em si mesma, envolve”.

 

O texto de Luis Camnitzer, justamente publicado na revista da 1ª Bienal do Mercosul, organizada por Frederico Morais, é simplesmente fundamental para compreender a arte conceitual do continente. Propondo-se a articular uma genealogia e não uma história, Camnitzer tem a liberdade de ir do século XIX, com Simón Rodríguez, ao século XX, com Tucumán Arde, sem necessidade de seguir o modelo historiográfico próprio da história como progresso. Gerardo Mosquera, por sua vez, retoma Morais em seu texto, enquanto reflete: “O paradoxo é ainda mais agudo se nos perguntarmos por que o ‘Outro’ é sempre nós, nunca eles”.

 

Já Rita Eder se encarrega de resumir as reuniões de críticos e curadores na década de 1980 e 1990, em cuja ordem do dia estava “a crítica do método historiográfico; a insatisfação com a ideia de arte na América Latina e insistir nela a partir da América Latina”. Pérez-Barreiro faz um panorama completo, minucioso, dessa arte da perspectiva dos Estados Unidos. Valerie Fraser, que trabalhou com Dawn Ades, (autora que não foi possível contatar), entra com um texto sobre a constituição os estudos latino-americanos em Essex, Reino Unido, e como foi constituída sua coleção de arte, assunto de suma importância – primeiro porque Essex tem uma pós-graduação pela que passaram vários dos autores aqui compilados e, segundo, porque uma das histórias da arte mencionadas anteriormente foi construída a partir desse núcleo. Só como um adendo, chama a atenção o modo como Fraser, em seu caráter não latino-americano, não tem o menor problema com esse termo. Cuauhtémoc Medina fala diretamente: “O termo ‘Sul’ resultava claramente carregado de uma politização da geografia: era mais um chamado para transformar a orientação das referências e estudos do que um conceito a ser transmitido enquanto realidade empiricamente verificável”.

 

Finalmente, Mari Carmen Ramírez e Hector Olea, assim como os textos extraídos do catálogo da exposição Inverted Utopias, propõem fazer uma história em constelações para escapar justamente da História, sua hierarquia e seu relato de poder.

 

Assim, estes textos que foram concedidos pelos autores e traduzidos por estudantes e professores de arte da USP e da UFPR, gratuitamente e com entusiasmo marcante, ficam para o leitor em língua portuguesa, como uma contribuição para a discussão e o conhecimento entre nós mesmos, única forma de deixar de ser colônia e liberar nossos destinos.

 



[1] No artigo “História da arte moderna na América Latina (1780-1990)”, publicado em 1996, Aracy Amaral escreve sobre o começo desse primeira etapa: “O verdadeiro início da vontade de abordagem da criação artística na América Latina por especialistas de nosso continente nasce, precisamente, de resolução da Conferência Geral da Unesco em Paris, em 1966, quando se definiu o projeto de estudo das culturas latino-americanas a partir de sua literatura e suas artes”. AMARAL, Aracy. Textos do Trópico de Capricórnio – Circuitos de arte na América Latina e no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 129.

[2] A Universidade de Texas (Center for Latin American Visual Studies) foi e continua sendo um eixo de discussão permanente da arte latino-americana moderna e contemporânea. Disponível em: <http://utexasclavis.org/> (Acesso em: dez. 2014).

[3] De fato, esses dois críticos, Romero Brest e Pedrosa, foram fundamentais na transformação das artes da primeira para a segunda metade do século, no que se refere ao questionamento da figuração e da obra de arte como objeto.

[4] Especificamente Traba e Bayón, que passaram pela Escola de Francastel. Nem tanto assim Acha, que está mais perto de Hauser e sua proposta de uma Historia social da literatura e das artes.

[5] BAYÓN, Damián. Aventura plástica de hispanoamérica. México: FCE, 1974, p. 9 (Tradução da autora).

[6] As capas das três edições do livro de Ades revelam o interesse de cada público receptor e as mudanças do gosto. De fato, parecem três livros distintos. Assim, na edição original de 1989, língua inglesa, a capa é um quadro típico do século XIX, na publicação em espanhol, do mesmo ano, é um Frida Kahlo, e no livro em português, de 1997, é uma obra abstrata de Sérgio Camargo.

[7] O centro da Grã-Colômbia era a capital do antigo Vice-Reino da Nueva Granada, isto é, Santa Fé de Bogotá. Bolívar era de Caracas, e quando estabeleceu seu governo nos Andes foi boicotado. Em resumo, se Caracas tivesse sido o centro da Grã-Colômbia, a história seria completamente diferente. O erro de Ades pode ser corrigido simplesmente apagando a palavra centro; porém, o que não pode ser corrigido é aquilo que essa falha revela, um desconhecimento que vai dar em uma abordagem superficial da história política.

[8] Entre outras inadvertências, Lucie-Smith afirma que a crítica Marta Traba é colombiana, o que supõe tanto não saber sua formação quanto desconhecer sua história, ter vindo da revista Ver y Estimar e o fato de ser expulsa da Colômbia em 1968, o que só foi possível por ser estrangeira. Mas isso pode ser um lapso do autor, uma confusão de fontes; incluir Honduras nos países de língua inglesa e explicar com as seguintes palavras o protagonista do poema de José Hernandez, porém, já excede a categoria de lapso: “Martin Fierro, the Argentinian equivalent of the idealized North American cowboy”.

[9] BARNITZ, Jacqueline. Twentieth-century art of Latin America. Austin: University of Texas Press, 2001, p. 1.

[10] Idem.

[11] AMARAL, Aracy. Textos do Trópico de Capricórnio – Circuitos de arte na América Latina e no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 128-129.

[12] Artigo que, na década seguinte, se converteria em um livro completo, Didáctica de la liberación: Arte conceptualista latinoamericano (2009), texto cuja peculiaridade está fundamentalmente em propor uma periodização própria e construir referenciais latino-americanos como o professor de Bolívar, Simón Rodríguez, cuja obra é tão fundamental quando desconhecida em nosso continente.

[13] Ainda sem se tratar de uma história, é preciso mencionar o projeto, iniciado em 2002, organizado por Mari-Carmen Ramírez: “Documents of 20th-Century Latin American and Latino Art”, do International Center for the Arts of the Americas (Departamento de Arte latino-americana do Museu de Artes, de Houston), projeto que oferece um extenso arquivo de fontes primárias na web para consulta aberta, e que hoje conta com mais de 5.000 textos, assim como o livro intitulado Resisting Categories: Latin American and/or Latino?

Periódico Permanente é a revista digital trimestral do Fórum Permanente. Seus seis primeiros números serão realizados com recursos do Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010, gerido pela Funarte.

 

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