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O turista acidental: coleções americanas da arte latino-americana [The accidental tourist: American collections of Latin American Art]

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Gabriel Pérez-Barreiro (2013)

Tradução do inglês: Deborah Alice Bruel Gemin

Fonte: ALTSHULER, Bruce. Collecting the New: Museums and Contemporary Art. Princeton: Princeton University Press, 2013, pp 131-146.

 

 

Em 1935 e 1936, Abby Aldrich Rockefeller doou três obras de José Clemente Orozco e Diego Rivera ao Museu de Arte Moderna de Nova York, iniciando um importante, embora esporádico e inconsistente, projeto latino-americano. Desde então, o colecionismo institucional de arte da América Latina tem sido principalmente um subprojeto da agenda política dos Estados Unidos, mais do que um compromisso intelectual com esse assunto e com sua importância histórica ou artística. Essa agenda política foi, durante boa parte do século XX, uma diplomacia hemisférica, sustentada pela política da “boa vizinhança” e pela Guerra Fria. Após o multiculturalismo da década de 1990, essa agenda se transformou numa preocupação com a mudança demográfica interna do país. Nos dois casos, a maneira autocentrada com que os Estados Unidos têm visto a arte da América Latina e sua instrumentalização dentro de uma agenda doméstica formam o pano de fundo a partir do qual a inserção da arte latino-americana nos Estados Unidos deveria ser analisada. Talvez, mais do que qualquer outra região, a América Latina foi sempre percebida como o outro pelos Estados Unidos. Um exemplo recente é o prolongado sucesso do culto a Frida Kahlo, um último episódio de uma história de amor entre Hollywood e seu vizinho ao sul. A oposição binária entre os EUA e o México criada no século XX, na qual o primeiro assumiu a modernidade, o formalismo e o intelecto em contrapartida à atemporalidade, ao realismo e à paixão igualmente adotados pelo segundo, continua a assombrar nossas percepções sobre a América Latina. O resultado é a forma paternalista com que muitas instituições abordam a região, seja como um mundo encantado magnífico de eterno esplendor, seja como um fardo histórico a ser piedosamente abordado. Em ambos os casos, a arte latino-americana é claramente vista como algo diferente das “coisas” da história da arte com as quais os principais museus escrevem e revisam a História da Arte.

Essa politização criou desafios aos museus no que diz respeito às coleções. Em primeiro lugar, devemos reconhecer que as coleções dos museus não se formam no vácuo, mas sim no centro de um conjunto complexo e sofisticado de relações entre marchands, críticos, revistas, casas de leilão, colecionadores, curadores, historiadores de arte, instituições financiadoras e muitos outros. Este conjunto se constitui num amplo consenso do qual artistas, movimentos e estilos garantem sua aquisição e sua apresentação. No caso da arte latino-americana, tal consenso, se existe mesmo, está muito fragmentado. O mercado, com seu núcleo de mestres mexicanos (Diego Rivera, David Alfaro Siqueiros, Rufino Tamayo) e realistas mágicos (Fernando Botero, Armando Morales), tem sido cada vez mais considerado inimigo por curadores que têm tentado investir num modelo mais sofisticado.[1] Em outras áreas de curadoria, as relações entre colecionadores, marchands e museus tendem a ser mais próximas, mas a desconfiança mútua entre colecionadores e curadores tem sido um dos problemas objetivos que impedem a inserção da arte latino-americana nas coleções dos museus.[2]

Esse unilateralismo e uma miopia para este assunto são os motivos de tão poucos projetos de museus serem colaborações genuínas entre instituições dos EUA e da América Latina. Parte disso se deve, é claro, à instabilidade política e econômica da região e ao estado lamentável de alguns museus latino-americanos. Mas, é também um sintoma emblemático da necessidade de os EUA insistentemente “descobrirem” a arte da América Latina.[3] A ideia de que a América Latina tem sua própria história da arte, que se integrou totalmente ao cânone ocidental muito antes dos Estados Unidos, e que ainda é mais rica, está longe de ser compreendida ou reconhecida.

Do “quintal” ao porão

Um número admirável de grandes museus dos EUA possui coleções significativas de arte latino-americana. Talvez seja surpreendente que o MoMA, tantas vezes caracterizado como o queridinho do mainstream dos EUA e como agente da hegemonia europeia/americana nas artes, tenha sido a primeira instituição fora da América Latina a colecionar agressivamente a arte latino-americana. Um catalisador desse interesse foi a família Rockefeller, que fez as primeiras doações de arte latino-americana ao museu nos anos 1930, e que em 1942, criou o “anônimo” Fundo Interamericano. A primeira pessoa designada para utilizar esse fundo foi Lincoln Kirstein, cofundador do American Ballet e Diretor Geral do New York City Ballet, que viajou extensivamente pela América do Sul em 1942, adquirindo em um ritmo tão acelerado que no ano seguinte cerca de duzentas obras da América Latina foram adicionadas à coleção permanente. Kirstein não tinha qualificações para montar uma coleção tão ambiciosa de uma região na qual ele tinha pouco ou nenhum conhecimento especializado. Embora, o objetivo declarado do Fundo era adquirir “obras de interesse ou qualidade, discretamente e sem envolvimento ou compromisso oficial”, Kirstein, nesta viagem, também estava em uma incumbência paralela, reportando missões diplomáticas dos EUA a Nelson Rockefeller, Coordenador de Assuntos Interamericanos do Presidente Roosevelt.[4] Em 1943, o MoMA realizou a exposição Coleção Latino-Americana do Museu de Arte Moderna, cuja maior parte voltou ao acervo logo após o término, e raramente retornou à luz do dia desde então. Vários anos depois, Alfred Barr reconheceu a rapidez com que a coleção foi montada, e seus condicionantes políticos: “Talvez não tenhamos tido grande interesse na América do Sul não fosse pela guerra, pelo estado de emergência, pela necessidade de estabelecer relações mais estreitas com os países ao sul... Sei que nós, aqui no Museu de Arte Moderna, trabalhamos de forma muito precipitada. Logo percebemos que cometemos muitos erros, tanto políticos quanto de gosto”.

Ao olharmos para trás fica claro que o interesse do MoMA, embora prematuro e dedicado, foi absolutamente unilateral. Curatorialmente, o enfoque dessa missão latino-americana foi pouco além do que uma mera viagem de compras. O gosto de Kirstein, tão refinado quanto desinformado naquele momento, foi considerado filtro suficiente e garantia de qualidade. Como Kirstein escreveu em 1943: “Pode ser justo dizer que os Estados Unidos são responsáveis por grande parte da fama da pintura mexicana, na medida em que o patrocínio de nossos museus, dos colecionadores e turistas, e a propaganda fervorosa feita por muitos de nossos críticos e marchands forneceu uma base sólida para esse prestígio”. Essa afirmação reforça a mentalidade de que somente nos EUA essas reputações poderiam ser estabelecidas de forma significativa e que tudo aquilo com algum valor estético seria disponibilizado para o visitante americano. A inclusão dos “turistas” juntos aos museus, colecionadores, críticos e marchands também revela a crença de que toda a arte da região latino-americana estivesse prontamente acessível, renegando as histórias, as instituições e as complexas relações já existentes nesses países. O tom paternalista da observação de Kirstein diz muito sobre as atitudes em relação à América Latina vindas de um “especialista” na área.

Após a exposição de 1943, a América Latina praticamente desapareceu das prioridades do MoMA, se bem que uma recente exposição da coleção do MoMA realizada em El Museo del Barrio, em Nova York, deu a conhecer uma fartura surpreendente para uma coleção latino-americana que nunca foi concebida ou organizada como tal.[5] Não foi até 1992, com o quinto centenário da “descoberta” das Américas, que a América Latina voltou a aparecer como interesse político nas atividades do museu. Desta vez, o Programa Internacional organizou uma grande exposição, chamada Artistas Latino-americanos do Século XX, que viajou pela Europa antes de concluir em Nova York.[6] Mesmo chegando quatro anos depois da enciclopédia Arte na América Latina, da galeria London Hayward, e da exposição Art of the Fantastic: Latin America, 1920-1987, do Museu de Arte de Indianapolis, ambas de 1987, a exposição do MoMA foi o foco de uma reação crítica contra essas exposições generalizantes nas quais a América Latina era apresentada como um todo,[7] se vendo desligada dos desenvolvimentos artísticos de qualquer outro lugar e com uma agenda essencialista. Os debates em torno desta exposição mostraram como o mundo acadêmico e o curatorial estabeleceram outras prioridades e paradigmas resultantes das agendas revisionistas e da ascensão do multiculturalismo.

O MoMA não foi o único museu dos EUA a formar uma coleção significativa de arte latino-americana. Outros museus possuem coleções tão eventuais e com destinos similares, como o Museu Solomon R. Guggenheim, em Nova York, que sob a direção de Thomas Messer reuniu uma coleção significativa na década de 1970. Messer se envolveu com a arte latino-americana através do Centro de Relações Interamericanas (atual Sociedade das Américas) em Nova York. O Centro foi um instituto de política fundado por Rockefeller, que possuía uma galeria de arte no térreo e uma importante revista literária, a Review. A partir dos anos 1960, como consultor especial para as artes, Messer ajudou a montar um programa de exposições de arte histórica e contemporânea da América Latina para a galeria do Centro de Relações Interamericanas. Em 1966, ele também organizou, no Museu Guggenheim, a exposição A década emergente: pintores e pintores latino-americanos nos anos 1960, com arte contemporânea da América Latina. Como Kirstein antes dele, Messer viajou pela América Latina, mas também incluiu artistas latino-americanos que viviam nos EUA e na Europa, como José Antonia Fernández Muro e Jesús Soto. Ele ainda, fez questão de visitar regularmente os estúdios de artistas latino-americanos em Nova York.[8] O catálogo da exposição consiste nas cartas trocadas entre Messer e os críticos de cada um dos países que visitou. O tom de Messer tem sido criticado como arrogante, mas pelo menos ele reconheceu a necessidade de consultar os especialistas locais. O Guggenheim, então, comprou muitos dos trabalhos da exposição, criando um núcleo significativo de arte latino-americana, embora este seja também pouco exibido até mesmo em comparação aos padrões do MoMA.

A Coleção Latino-Americana do Museu de Arte Jack S. Blanton da Universidade do Texas em Austin (antigo Museu Archer M. Huntington) merece uma menção especial. Tal como acontece com tantos outros museus, a coleção se originou com uma série de doações de Barbara Duncan, colecionadora particular. Duncan teve contato com a América Latina enquanto viajava com seu marido John, na década de 1950, quando fez muitas visitas a estúdios e galerias. Desde o início, Barbara Duncan reconheceu a importância de fazer pesquisa para a aquisição, combinando-as. Ao longo de sua vida, ela coletou material sobre os artistas que visitou, manteve correspondência com eles e tentou se manter atualizada com a pesquisa. Entre 1971 e 2002, Barbara Duncan doou mais de trezentas obras para o museu, e seu arquivo constitui uma das fontes mais completas da arte latino-americana no mundo. Em 1989, o Museu Blanton contratou sua primeira curadora de arte latino-americana, Mari Carmen Ramírez, que durante 11 anos foi uma das mais importantes defensoras da arte latino-americana, consolidando a importância da coleção e de seu programa de pesquisa em andamento. Talvez, dentre os museus dos EUA, o Blanton tenha sido o único capaz de realizar um programa contínuo de pesquisa, publicações, exposições e aquisições de arte latino-americana.

Latino-americano e latino

 

No inverno de 1992, Mari Carmen Ramírez publicou Beyond the Fantastic: Framing Identity in US exhibitions of Latin American Art, no qual desconstrói o repentino sucesso das megaexposições latino-americanas do início dos anos 1990, especialmente à luz das mudanças demográficas dos EUA. Ela diz: “A elaboração de uma agenda eficaz para os anos 1990... exige irmos além da denúncia da política neocolonial em curso nesse boom de exposições latino-americanas/latinas e nos centremos mais precisamente nas premissas ideológicas e conceituais que orientaram a organização dessas exposições de arte. No coração desse fenômeno reside a questão de quem é que articula a identidade desses grupos”.[9] A importância do texto de Ramírez ao provocar mudanças nas curadorias e formas de apresentação da arte latino-americana não pode ser subestimada,[10] pois serviu como base para uma nova geração de projetos de curadoria e pesquisa.

Desde a década de 1990, dois vetores em direções opostas definiram o campo da arte latino-americana. Por um lado, a ideia da identidade latino-americana tornou-se uma ferramenta poderosa em um sistema de arte cada vez mais fragmentado e baseado em identidades. Parte disso foi um crescente reconhecimento da presença latina nos Estados Unidos, com sua própria história de luta política e questões de autorrepresentação. Por outro lado, começamos a ver o mainstream da arte contemporânea se diversificar e se mover em direção a uma sensibilidade mais global. Os museus de arte contemporânea começaram a colecionar artistas da América Latina sem necessariamente prestar atenção às suas origens nacionais, e o mundo tradicionalmente hostil das galerias de Nova York começou a incluir de maneira regular artistas da América Latina e de outros lugares. O campo latino-americano está atualmente dividido entre essas visões de mundo,[11] cada uma das quais aspirando a um papel fundamentalmente diferente da arte latino-americana na história da arte e das ideias, afetando, assim, sua maneira de apresentação pelos museus e instituições.

Enquanto a maioria dos projetos latino-americanos de meados do século XX começaram como um tipo ou outro de diplomacia cultural, o impacto dos direitos civis e o surgimento de uma consciência política latina nos EUA mudaram o foco da agenda de internacionalista para uma doméstica. O que prevaleceu nos debates multiculturais nos anos 1980 foi a política identitária. Como os Estados Unidos chegaram a um acordo com sua complexidade racial e étnica de um modo que não vinham fazendo desde os anos 1960, o mundo da arte parecia se fragmentar em numerosos corpos étnicos e étnicos-hifenizados. Muitos críticos dos EUA e da América Latina ressaltaram como essa aparente democratização, em última análise, preservou o direito do mainstream de articular essas identidades e de continuar a apresentar a si mesmo como “além da identidade”.[12] O fato é que a identidade tornou-se uma ferramenta poderosa, e a ascensão da população latina nos EUA a um status majoritário teria um enorme impacto no campo da arte latino-americana e, por extensão, na política de museus.

Embora os termos latino-americano e latino sejam regularmente usados como equivalentes, ou quase-equivalentes, particularmente na linguagem de museus e fundações, seus significados são bem diferentes. Ambos os termos são imperfeitos e imprecisos, mas a América Latina geralmente se refere aos países ao sul do Rio Grande (América do Norte)[13] e os de língua espanhola do Caribe, enquanto “latino” se refere a um residente dos EUA de origem latino-americana.

O aparecimento da arte e cultura latinas tem sido um movimento fundamental de visibilidade e autorrepresentação. Várias instituições foram criadas especificamente como centros de autodefinição e autoafirmação, incluindo o Museo del Barrio em Nova York e a Galería de la Raza em São Francisco.[14] A origem dos direitos civis dessas instituições os coloca decididamente dentro do discurso e da história dos EUA, que é alheia à maioria dos países latino-americanos. Além disso, as discussões em torno das políticas minoritárias são muitas vezes perturbadoras para os latino-americanos, que não se consideram parte de uma minoria e que, em sua maioria, são de classe social mais alta do que os imigrantes que compõem a população latina. Para complicar ainda mais a questão, o relacionamento de muitos latinos com seus estados-nação originais é, na melhor das hipóteses, frágil. Nas palavras de Tomás Ybarra-Frausto: “À medida que essas famílias de imigrantes de língua espanhola se instalam, seus filhos se matriculam em escolas locais, começam a aprender inglês e embarcam na imersão do ‘American way of life’, de maneira que deixam de ser ‘índios’ para serem ‘gringos‘ sem, no entanto, passarem pelo ‘mexicano‘”.[15] Essa observação deveria servir como um sinal de alerta para as equipes dos museus que apresentam a arte mexicana como uma espécie de caridade bem-intencionada para suas comunidades latinas locais, mas com isso correm o risco de provocar duplamente a alienação dessas “comunidades”, já que as proclamações de mexicanidade patrocinadas pelo governo podem soar tão distantes quanto o WASP[16] sonho americano.

Desta forma, embora o reconhecimento de um importante e pouco aceito grupo demográfico tenha se tornado uma prioridade política para as instituições, a arte latino-americana, que é cada vez mais visível no circuito internacional de galerias, bienais e feiras de arte, também se torna uma espécie de recurso útil. George Yudice explica essa dificuldade:

 

Logo, as minorias dos EUA enfrentam o dilema do “se ficar o bicho pega, se correr o bicho come”.[17] Quando as instituições agem de forma “tradicional”, a escolha provável é por um artista latino-americano em detrimento de um chicano ou porto-riquenho [ou seja, um latino residente nos EUA]. E, quando escolhem um latino, normalmente o relegam a uma categoria “marginal”, irrelevante para o mercado de arte. Mas a situação também não é muito fácil para os artistas latino-americanos. Estes também enfrentam o “se ficar o bicho pega, se correr o bicho come”, especialmente aqueles que não têm representação do mercado mainstream. Eles, por um lado, têm a opção de representar o exótico, tradicionalmente procurado e explorado pelas instituições tradicionais, ou, por outro lado, de aderir à exposições alternativas como quase-latinos, o que provavelmente aumentará a ira dos “realmente” latinos.[18]

 

Para museus ansiosos por abraçar o movimento latino-americano/latino, o fato da arte latina fazer parte da história da arte dos EUA parece escapar de cena. Em vez de encorajar seus curadores de arte “americana” a expandir suas definições para além do cânone, os museus chamam a um curador de arte “latino-americana” para fazer uma exposição temporária que satisfaça a cota “minoritária”.[19] Nenhum museu dos EUA tem se engajado seriamente com a arte latina como prioridade de acervo, e as pequenas coleções dos museus culturalmente específicos ou “alternativos” continuam sendo a única opção.

Um desafio central para os artistas latinos continua sendo como negociar sua inserção no mainstream junto aos seus pares latino-americanos e norte-americanos. A dificuldade está em reivindicar um lugar significativo dentro de uma noção ampliada de arte e cultura “americanas”, ao mesmo tempo que manter uma conversa com a América Latina para além das noções reducionistas de “sangue” e “origens”. Os museus ainda tendem a empacotar suas iniciativas artísticas latino-americanas e latinas com uma linguagem estereotipada e cheia de referências alimentares (cor, sabor, espírito, paixão), criando uma aprisionante retórica bem-intencionada que continua a reforçar a separação da arte latino-americana do resto das atividades do museu. Imagine se cada exposição de Gerhard Richter tivesse na abertura um festival alemão de salsichas e cervejas, ou se, as mostras de Robert Rauschenberg fossem organizadas com rodeios texanos e chapéus de caubói.

 

 

ARTISTAS E GALERIAS

 

Curiosamente, dentro do campo de arte latino-americana, foram artistas e galerias comerciais que forneceram uma alternativa poderosa para essa abordagem simplista em termos étnicos e reducionistas. Desde a década de 1990, o circuito de galerias comerciais tem sido responsável pela tão esperada dissolução dessa abordagem essencialista de “arte latino-americana”.

Muitos artistas da América Latina vivem em Nova York desde a década de 1970, e frequentemente têm sido objeto de discriminação ou negligência por parte de galerias e instituições tradicionais. Lá, artistas como César Pasternosto, Luis Camnitzer, José Antonio Fernández Muro e Liliana Porter tiveram negado o acesso ao sistema de galerias ou ao circuito crítico que estava aberto para muitos de seus pares americanos. As oportunidades de exposição disponíveis eram apenas em instituições culturalmente específicas, como o Centro de Relações Interamericanas, o Museo del Barrio e o Museu do Bronx.[20] Muitos desses artistas venderam obras para as coleções de museus como o MoMA ou o Guggenheim, apenas para vê-las relegadas ao armazenamento permanente.

No entanto, nas décadas de 1980 e 1990, o mercado de arte começou a responder de maneira diferente aos artistas contemporâneos da América Latina. Contra o pano de fundo do multiculturalismo e da crescente fragmentação da arte relativos às definições étnicas ou de identidade, cada vez mais artistas da América Latina começaram a trabalhar dentro do mainstream. Foram precisamente os artistas que rejeitaram uma noção simplista de sua própria identidade, que romperam essas barreiras com maior facilidade. Dois artistas em particular merecem menção – Gabriel Orozco e Félix González-Torres. Ambos se recusaram a enquadrar seu trabalho dentro desse circuito identitário, e seus trabalhos eram decepcionantes para quem procurava vestígios de mexicanidade no primeiro ou cubanidade no segundo. Como resultado disso, eles não eram incluídos nas pesquisas nacionais ou regionais que já faziam parte do cenário artístico nessas décadas (Nova Arte de X, Arte Contemporânea de Y). No entanto, esses artistas talvez tenham sido os primeiros artistas latino-americanos a entrar nas principais coleções de arte contemporânea. O impacto dessa mudança, aparentemente pequena, foi enorme uma vez que serviu como um importante modelo para aqueles que se sentiam desconfortáveis com a classificação “latino-americana”, e que queriam ser considerados artistas contemporâneos da mesma forma que seus pares internacionais. Também introduziu a ideia de que colecionadores e curadores de museus poderiam adquirir obras de artistas latino-americanos sem sentir que fossem diferentes das dos outros artistas contemporâneos.

Assim, o sistema de galerias foi o primeiro a abrir suas portas para uma definição mais global de arte, mas isso aconteceu em parte, porque havia um contexto surgindo no qual a identidade nacional ou étnica do artista deixava de ser um passaporte para essa entrada. Isso também não quer dizer que as galerias de Nova York se tornaram as verdadeiras representantes da cena global de arte da noite para o dia. Os artistas ainda tinham que morar em Nova York, falar inglês e estar alinhados com as definições do “contemporâneo” que foram criadas em Nova York, e não em Buenos Aires, Caracas ou São Paulo. A ascensão do circuito bienal neste período acentuou ainda mais a percepção de um estilo “internacional” que era global, mas que só era legível a partir do centro.

 

 

Leilões e o mercado secundário

 

Curiosamente, enquanto o sistema de galerias e o discurso curatorial se globalizavam, o mercado secundário estava se tornando cada vez mais latino-americanista. O chamado boom da arte latino-americana na Sotheby’s e na Christie’s se confirmou nas vendas recordes em 1989 e 1990, e continuou durante a maior parte da década.[21] O principal produto das casas de leilão era precisamente o tipo de arte cada vez mais questionada nos círculos acadêmicos e curatoriais revisionistas: a dos mestres mexicanos e do realismo mágico. Como a categoria latino-americana estava sendo questionada e dissolvida no mercado primário (galerias) e, em certa medida, nos museus de arte contemporânea, o mercado secundário (casas de leilão) reforçava o mesmo cânone de diferença, exotismo e realismo social ao qual o MoMA havia respondido quase 50 anos antes. Na maioria de áreas do colecionismo, os leilões tendem a refletir o que está acontecendo em museus, exposições, revistas e livros; segundo Jean Baudrillard, o museu funciona como o legitimador definitivo para o mundo dos leilões, uma espécie de “reserva federal” que garante valor.[22] O caso latino-americano parece mostrar o contrário, com colecionadores e museus literalmente em mundos diferentes.

Os departamentos de arte latino-americanos da Sotheby’s e da Christie’s ganharam enorme prestígio e poder durante o boom. Embora os diretores desses departamentos sempre tivessem o cuidado de dizer que o mercado era secundário, e que eles estavam apenas respondendo ao que já estava em circulação, o fato é que o mundo da arte latino-americana, disperso e difundido como estava entre muitos países e sem uma forte galeria ou sistema de museus que o sustentasse, não era comparável a qualquer outro.[23] Na ausência de fontes primárias sobre arte latino-americana, os catálogos de leilão tornaram-se um recurso importante para estudantes e acadêmicos, porém de confiabilidade incerta. Essa ambiguidade presente nos leilões latino-americanos, servindo tanto como repositórios tradicionais, mas também como promotores da arte latino-americana, está presente desde o primeiro leilão efetuado pela Sotheby Parke Burnet em 1979. Realizado em colaboração com o Centro de Relações Interamericanas – organização sem fins lucrativos – que de fato levava o crédito pela iniciativa em uma carta reproduzida no catálogo, na qual o presidente do Centro afirma: “Nossa intenção era dupla. Primeiro, achamos que um leilão era uma nova maneira de cumprir nosso objetivo subjacente de aumentar o conhecimento dos EUA sobre a arte da América Latina [...]. Achamos que um leilão seria [...] um meio de levar a arte latino-americana a um novo e mais amplo público. Em segundo lugar, vimos o leilão como um meio de promover nossos esforços contínuos para garantir apoio financeiro a nossos programas e atividades”.[24] Mais uma vez, como nas primeiras visitas de Kirstein à América Latina, o envolvimento do Norte com o Sul é expresso em termos de compras.

À esta altura, o campo da arte contemporânea já começou a diluir a distinção entre a arte latino-americana nos leilões. Certos artistas são vendidos em ambos os departamentos, seja como parte do mainstream da arte contemporânea ou como representante de uma latinidade, sendo estas decisões fundamentadas na análise de onde eles podem alcançar preços mais altos. Segundo Ana Sokoloff, da Christie’s, os colecionadores mais jovens não estão mais interessados nos “mestres” da América Latina, estão à procura de uma maior repercussão internacional de suas coleções.[25]

 

 

Visibilidade e tokenism:[26] o desafio técnico dos museus

 

À medida que o mundo curatorial contemporâneo se torna cada vez mais global, com a consciência da arte latino-americana maior do que nunca, a questão fundamental que os museus enfrentam é onde colocar os trabalhos latino-americanos e latinos. Os diretores de museus que estão cientes da transformação de seu público, mas que não podem ou não querem adotar grandes estratégias para todo o museu, costumam usar a arte latino-americana como uma forma de divulgação. O caso específico da arte latina é onde vemos mais claramente a resistência em ampliar a definição de arte “americana” a fim de incluir artistas latino-americanos e latinos além do mainstream. O uso constante de estereótipos na descrição desses projetos (cores, calor e comida), reforça ainda mais a impressão de que não há nada consistente a se aprender a partir deste engajamento do museu com a diversidade. A frequente delimitação dos textos bilíngues somente às áreas de interesse “latino-americano” igualmente revela a divisão entre o museu como um todo e seu público cada vez mais diversificado.

Um estudo de caso que merece um pouco mais de atenção é justamente com o qual começamos: no Museu de Arte Moderna. Em 1999, o Museu designou o brasileiro Paulo Herkenhoff como curador adjunto no Departamento de Pintura e Escultura.[27] Neste caso, o museu demonstrou seu compromisso mais amplo com a América Latina ao não criar um departamento exclusivo latino-americano e ao não estabelecer uma cota fixa de projetos latino-americanos, evitando as armadilhas do tokenismo ou da conveniência política. A ideia era colocar artistas latino-americanos lado a lado com artistas franceses, alemães ou americanos, à medida que os projetos se desenvolvessem. A criação de um fundo de viagens latino-americanas para os curadores do museu ampliou ainda mais seus horizontes de maneira orgânica e significativa.

As exposições que Herkenhoff curou no museu reuniram artistas de todo o mundo, fornecendo assim um caso raro de um curador latino-americano selecionando e apresentando obras “mainstream”, revertendo o engajamento tipicamente unidirecional dos EUA com a arte latino-americana. No New Museum de Arte Contemporânea de Nova York, um processo semelhante aconteceu quando o cubano Gerardo Mosquera foi contratado como curador adjunto. O papel de Mosquera não é curar exclusivamente artes latino-americanas, mas sim de fornecer uma outra perspectiva dentro do departamento curatorial. Ambas as instituições se afastaram decididamente do sistema de cotas para a arte latino-americana. Em outras palavras, a questão não é quanto, mas onde e como.

Agora, uma das questões centrais para os curadores da arte latino-americana é como evitar a própria instrumentalização. À medida que os museus se tornam cada vez mais conscientes das mudanças demográficas de seus principais públicos, a arte latino-americana ainda corre o risco de ser uma arma de conveniência política. Se o debate é definido apenas em termos de visibilidade ou distribuição de verbas, o risco do tokenismo permanece. Se a categoria da arte latino-americana estiver separada dos outros departamentos curatoriais, ela continuará sendo um projeto minoritário, enquanto a história da arte “real” é articulada nos outros espaços. Onde o processo é orgânico, como nos casos recentes do MoMA, do New Museum de Arte Contemporânea e do Museu de Arte de Miami, a arte latino-americana tem pelo menos a possibilidade de recuperar os contextos e diálogos dos quais tradicionalmente tem sido isolada pelas visões restritas das políticas institucionais.

 

Notas



[1] RAMÍREZ, Mari Carmen. Introduction. In: RAMÍREZ, Mari Carmen; PAPANKOLAS, Theresa (eds.). Collecting Latin American Art for the 21st Century.  Houston: Museum of Fine Arts, 2002. pp 17-19. “Nós temos que abandonar um olhar redutivo e estereotipado da arte latino-americana que se tornou referência do mercado nas duas últimas décadas em vez de apoiar os trabalhos que correspondem às experimentações autênticas dos artistas em toda a região”. Cf. também ADAMS, Beverly. The Challenges of Collecting Latin American Art in the United States: Tae Biane and Bruce Halle Collection. In: RAMÍREZ, Mari Carmen; PAPANKOLAS, Theresa (eds.). Collecting Latin American Art for the 21st Century, op. cit., p. 195: “O desafio para... os colecionadores, no século XXI, é seguir através do abismo que o mercado dos estados Unidos estabeleceu”. Eu, particularmente, devo muito ao artigo de Adams, que fornece um panorama consciente das coleções de arte latino-americana.

[2] Há algumas exceções importantes, notavelmente a coleção Cisneiros, em Caracas e Nova York que estabeleceu uma agenda de fortalecimento institucional e apoio. A qualidade da coleção e do seu corpo técnico tornou-a um catalisador para que museus dos EUA se engajassem na aquisição de arte latino-americana. No campo contemporâneo internacional, a Coleção Jumex na Cidade do México também se tornou um significativo local para a circulação da arte latino-americana no contexto internacional. Nos Estados Unidos a coleção de Diane e Bruce Halle no Arizona é emergente como a maior força na recepção e sofisticação das coleções de arte latino-americanas. Dos museus mais populares de arte contemporânea, o Miami Art Museum e o Walker Art Center em Minneapollis têm constituído coleções importantes de artistas latino-americanos.

[3] Ver por exemplo ATWOOD, Roger. Rediscovering Latin America. In: Artnews, June 2003, pp. 98-101

[4] BARR, Alfred H. Foreword. In: KIRSTEIN, Lincoln. The Latin American Collection of the Museum of Modern Art. New York: Museum of Modern Art, 1943, p. 4. Cf. também JENKINS, Nicholas. (ed.). Introduction. In: By With, To & From: A Lincoln Kirstein Reader. New York: Farrar, Strauss and Gitoux, 1991. p. XVII.

[5] Para uma cronologia do envolvimento do MoMA com a arte da América Latina ver BASILIO, Miriam. Reflecting on a History of Collecting and Exibiting Work by Artists from Latin America. In: BASILIO et al. Latin American and Caribbean Art: MoMA at El Museo. New York: El Museo del Barrio and the Museum of Modern Art, 2004, pp. 52-68.

[6] Esta exposição aconteceu em setembro de 1993 (N.T.)

[7] “Todo” aqui tem o significado de unidade, como se a América Latina pudesse ser apreendida numa totalidade (NdT).

[8] ADAMS, Beverly. The Challenges of Collecting Latin American Art in the United States, op. cit., p. 163.

[9] RAMÍREZ, Mari Carmen. Beyond ‘the Fantastic:’ Framing Identity in US exhibitions of Latin American Art. In: MOSQUERA, Gerardo (ed.). Beyond ‘the Fantastic:’ Contemporary Art Criticism from Latin America. London: Institute of International Visual Arts, 1995, p. 230.

[10] No original está “overestimated” cuja tradução literal seria superestimada, mas pelo contexto, a tradução optou pelo uso do antônimo, subestimada.

[11] Weltanschauungs, no original em alemão. (N.T.)

[12] Sobre este assunto ver Beyond the Fantastic…

[13] Rio Grande é um dos maiores rios da América do Norte que passa pelo Novo México, e que a partir de El Paso serve de fronteira natural entre México e Estados Unidos (NdT).

[14] Para um resumo dos museus latinos nos EUA ver: ZAMORA, Helinda. Identity and Comunity: a look at Four Latino Museums. In: Museum News, May/June, 2007, pp. 37-41.

[15] YBARRA-FRAUSTO, Tomás. Latin American Culture and The United States in the New Millenium. In: RAMÍREZ, Mari Carmen; PAPANKOLAS, Theresa (eds.). Collecting American Art for the 21st Century, op. cit., p. 39.

[16] WASP é uma abreviação informal para White Anglo-Saxon Protestant – povo protestante branco anglo-saxão (NdT).

[17] A expressão utilizada no original é “damned if you do, damned if you don’t” que refere-se a um dilema, e que em português coloquial podemos traduzir como “se ficar o bicho pega, se correr o bicho come”, e quer significar que não importa as circunstâncias as minorias não estarão bem representadas (NdT).

[18] YUDICE, George. Transnational Cultural Brokening of Art. In: MOSQUERA, Gerardo (ed.). Beyond the Fantastic..., op. cit., p. 212.

[19] Por exemplo, o enorme sucesso do tour nacional da mostra Ultrabaroque do Museu de Arte Contemporânea de San Diego, em 2001, pode ser visto por este prisma. Embora a exposição tenha declarado no próprio título como “arte pós-América Latina” apresentou artistas contemporâneos latino-americanos, muitos dos quais com carreiras internacionais significantes e consolidadas.

[20] Muitos dos artistas latino-americanos residentes em Nova York nos anos 1960 e 1970, eram politicamente ativos e militavam contra a intervenção militar dos EUA na América Latina. Alguns desses artistas organizaram uma coalizão chamada MICLA (Movimento para a Independência Cultural da América Latina), que boicotou o Rockefeller Center for Inter-American Relations nos anos 1960, reivindicando que o programa cultural atendia ao domínio militar e econômico. Novamente esta agenda política internacional(ista) foi diferente (apesar de relacionado) da preocupação com os direitos civis da comunidade porto-riquenha nos EUA. Sou grato a Luis Camnitzer pelas informações sobre o MICLA e pelo acesso ao seu texto não publicado “The Museo Latinoamericano and MICLA”, 2000.

[21] Nos seis meses entre novembro de 1989 e maio de 2000*, a venda total da América Latina quase triplicou, de aproximadamente U$500.000 para U$1.500.000. Em maio de 1995 três pinturas foram vendidas por mais de U$3.000.000 cada [*provavelmente é de novembro de 1989 a maio de 1990. (NdT)].

[22] BAUDRILLARD, Jean. For a Critique of the Political Economy of the Sign. St. Louis: Telos Press, 1981.

[23] De acordo com August Uribe, ex-chefe do departamento de pinturas latino-americanas na Sothesby’s, “o papel das casas de leilão não é promover o trabalho dos artistas; este é o trabalho dos museus e das galerias. É injusto com o Mercado, com o artista, com o marchand e com a casa de leilão colocar um artista que nunca esteve numa venda pública e esperar que ele venda em 60 segundos”. August Uribe em uma conversa informal In: Americas Society for the Series Perspectives on the Latin American Art Market. New York. September, 2002.

[24] Modern Latin American Paintings, Drawings and Sculpture. New York: Sotheby Parke Burnet, 1979.

[25] SOKOLOFF, Ana. Perspectives on the American Art Market. Artigo apresentado na Americas Society. Nova York, Junho, 2002.

[26] Tokenism, de acordo com o dicionário Oxford, é a prática de se fazer somente um esforço superficial ou simbólico para parecer inclusivo, principalmente recrutando um pequeno número de membros de grupos sub-representados, a fim de dar a aparência de tratamento igualitário relativo à raça ou sexo (NdT).

[27] Posição equivalente é agora ocupada pelo curador venezuelano Luis Henrique Pérez Oramas no departamento de desenho.

Periódico Permanente é a revista digital trimestral do Fórum Permanente. Seus seis primeiros números serão realizados com recursos do Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010, gerido pela Funarte.

 

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