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„Algo não estava certo“ Uma retrospectiva a partir o ponto de vista do futuro*

NORA STERNFELD

Editorial Expediente SumárioRecomendações editoriaisDicas para redação dos relatos criticosEdição AtualEdições AnterioresSobre

Periódico Permanente, v. 9, n. 8, 2020.

Nora Sternfeld é arte educadora e curadora. Desde janeiro de 2018 é professora documenta na Escola de Arte e Design de Kassel. Como membro da freethought (Londres), uma plataforma para pesquisa, educação e produção, foi uma das diretoras artísticas da Bergen Assembly (2016). Ela publica textos sobre arte contemporânea, exposições, políticas da história, teoria educacional e anti-racismo.

 

„Algo não estava certo“

Uma retrospectiva a partir o ponto de vista do futuro*

*Este texto foi produzido por ocasião da minha apresentação Archiving Feminist Futures – Temporality and Gender in Cultural Analysis na Humboldt Universität em Berlim, em 3 de novembro de 2018. Meu agradecimento a Silvy Chakkalakal, quem me fez o convite.

 

Tradução: Lorena Vicini

Revisão: Isabelle Hölzl

Publicado originalmente em: https://documentastudien.de/media/1/NORA_STERNFELD__Algo_n%C3%A3o_estava_certo_.pdf

Hoje é 3 de novembro de 2031, e muita coisa está acontecendo no nosso pequeno museu ocupado em Viena – os dias passam, somos em cada vez mais pessoas, e seguimos em frente com nosso trabalho. Analisamos materiais, elaboramos teses, cozinhamos, pesquisamos, organizamos, abrimos exposições e as mostramos uns aos outros, lemos e escrevemos, aprendemos novas línguas, escrevemos um blog lido pela audiência internacional, nos organizamos. O museu se tornou um retiro, um lugar onde podemos discutir, pensar e viver.  Aos poucos, nos apossamos dele e o reconstruímos para que se adequasse aos nossos objetivos. Deixamos duas salas em suas configurações originais –  e são elas que usamos para montar as exposições.

 

Já sabemos há algum tempo que não vamos conseguir alcançar muita coisa. Quando queremos motivar uns  aos outros, nos imaginamos como ecos do futuro, ou seja, que depois desse regime, depois do ciclo de mentiras e violências que parece interminável, uma coisa nova vai surgir – falamos de uma nova esquerda, que imaginamos como feminista, mas acima de tudo mais livre, igualitária e solidária do que a esquerda e o futuro eram até então. Imaginamos um futuro diferente, diferente das previsões de futuro que até então conhecíamos, mas, acima de tudo diferente de qualquer tipo de prolongamento deste presente. Isso nos ajuda a sobreviver a este presente. Olhamos para a frente e também para trás, para tentar compreender melhor o que aconteceu. Não porque acreditamos que com isso seja possível não cometer mais nenhum erro, mas sim porque acreditamos que nem sempre temos que cometer os mesmos erros.

 

Gosto de ser a principal responsável pela organização das exposições, principalmente porque as entendemos como um lugar de reunião. Por isso, amanhã, antes da plenária, farei novamente uma visita guiada para mostrar a nova exposição. Ela se baseia no material de 426 dias da década de 2010. Essa pequena exposição arquivária começa em abril de 2017 com a documenta 14, que aconteceu em Kassel e em Atenas, e acaba no início de 2018, com a 10a Bienal de Berlim. Optar pelo período de um ano entre duas grandes exposições nos pareceu um bom recorte curatorial para entabular uma questão que sempre voltávamos a discutir e que, acima de tudo, lançava uma perspectiva sobre o material do final da década de 2010. Tudo parece tão contraditório, e ainda assim ninguém parece ter percebido na época. O partido  nacionalista, conservador e autoritário, a AfD (Alternativa para a Alemanha) aos poucos ficava mais forte, até chegar a governar a Alemanha e hoje – tendo como aliados partidos autoritários por quase toda a Europa – presidir a aliança hegemônica.

O continente africano, para o qual muitos de nós nos mudamos e ainda muitos mais gostaríamos de estar caso tivéssemos passaportes, estava muito presente na cena de arte alemã na década de 2010. Desde então, a África se tornou um  lugar de referência para nós. Imprimimos dos nossos computadores e celulares as fotos e mensagens dos nossxs colegxs da Cidade do Cabo e Joanesburgo, em Bamako e em Dakar, porque xs queríamos por perto, e colaboramos em um blog com muitos de nossxs companheirxs pelo tempo que isso foi possível.

 

Mas estou divagando. De volta aos materiais: perspectivas contra o racismo dos cada vez mais fortes partidos alinhados à direita e o crescente fascismo se sobressaiam dos materiais das exposições, em seus conceitos e retóricas. Escolhemos uma palavra daquele tempo para descrever: pós-político. Os materiais impressos da exposição apresentam uma evidente ambição formal – parecem caros, mas sua forma ao mesmo tempo busca referenciar uma estética barata e simples. Os textos que anunciavam as exposições se colocavam de maneira combativa, e ainda assim seus materiais eram tão marcados pela economia de seu tempo. Em minha visita guiada mostrarei as salas da pequena exibição, começando pela documenta 14...

 

4. Novembro 2031

Queridos e queridas colegas, companheiros e companheiras, é um prazer apresentar a vocês a exposição antes da realização da plenária. No nosso grupo de trabalho, ao longo dos últimos anos tentamos entender o que ocorreu nos anos de transição em que a Europa se tornava cada vez mais fascista. Recebemos de um programador na Alemanha o backup da internet da „Wayback Machine“ entre os anos 2020-2025 e podemos navegar na internet daquele tempo. Temos todos os dados „abertos“ desses anos, incluindo os sites que aqui e hoje, por conta dos acessos regulados, não podemos mais entrar. No entanto, são apenas dados históricos. As mídias sociais já não eram novidade naquele tempo. Hoje elas parecem fora de moda, mas, ao contrário do que as empresas de comunicação daquele tempo prometiam, não se tornaram mais útil desde então – e, de qualquer maneira, com os governos tão focados em controlar – a maior parte do conteúdo das mídias sociais está hoje inacessível. Desta vez, o conceito expositivo foca em instituições artísticas. Escolhemos um ano específico da Alemanha. Pesquisamos em sites de exposições, anúncios, vídeos e discussões. Procuramos entendê-los.  Muito do que vimos parece incrível, compatível com nossos ideais, muito soa radical.  Mas o brilho histórico, no entanto, ainda é difícil de compreender. De alguma forma soa-nos irreal. Talvez, com a análise do material, possamos compreender juntxs.

 

O título da nossa exposição vem de um tempo muito diferente: uma citação do livro surrealista do início do século 20. Ele é tirado da última página do livro Nadja (1928) de André Breton: „Algo estava fora do lugar“. Por que nos decidimos por esse título? A frase é sucinta e ao mesmo tempo sinistra. Deve ter sido assim. Soa também, como se tivesse sido formulada em um tempo em que muito ainda parecia estar em seu lugar. E depois novamente deixou de estar. Esse mesmo sentimento emana do material, e por essa razão o título. Mas agora voltemos aos materiais, assim podemos ver por nós mesmos e pelo menos tentar entender juntos como era.

 

Sala 1: documenta 14

 

Nós nos decidimos por montar a exposição de maneira cronológica. A dimensão tempo/espaço escolhida – na Alemanha, no período entre duas grandes exposições –  e o material coletado sugeriram esse arranjo. Então, como eu já disse, começarei com a documenta 14, que teve seu início com uma conferência de imprensa em 6 de abril de 2017, em Atenas.

 

Justamente no dia 6 de abril ... um dia que até hoje é um dia memorável para nós. Ainda consideramos importante lembrar – mesmo que tantas coisas tenham piorado tanto depois disso. Nós nos apegamos a esse momento de transição, talvez seja obsessivo. Todos os anos, no dia 6 de abril, nos lembramos das ações do grupo que se entitulava  „Nationalsozialistischer Untergrund“ e que mesmo muito antes da virada fascista já era muito bem organizado. 6 de abril de 2006 foi o dia em que Halit Yozgat foi assassinado em um cybercafé em Kassel. Para nós, 6 de abril tornou-se um ponto de referência transnacional – os que se lembram estão espalhados pelo mundo – pois como dia de ações antifascistas  remonta ao tempo em que viajar pela Europa e da Europa para o mundo era um fato dado para os que tinham passaporte europeu. Depois dos assassinatos cometidos pela NSU, sobreviventes e ativistas se organizaram, muitos dos quais nos visitaram quando ainda era fácil para eles viajarem. Um mês após o assassinato, eles organizaram uma manifestação intitulada "Não à décima vítima". Um vídeo desta demonstração foi exibido na documenta 14. Ele é mostrado aqui novamente:

„Não à 10a vítima“ [Kein 10. Opfer], manifestação em Kassel, 2006,

 

[Fig 1] „Não à 10a vítima“ [Kein 10. Opfer], manifestação em Kassel, 2006, extraído do vídeo de Sefa Defterli, http://pad.ma/CTC/editor/00:00:00, 00:05:43.321#embed

 

Ele foi apresentado na documenta em Kassel pelo grupo Sociedade de Amigas e Amigos de Halit, formado pela ocasião da documenta 14 e que também estava presente na abertura em Atenas no dia 6 de abril. O grupo era descrito da seguinte maneira no site da documenta:



A Sociedade de Amigas e Amigos de Halit, que fez parte do Parlamento dos Corpos, o programa público da documenta 14, entende a migração como um processo irreversível e se une na luta contínua por uma sociedade de muitxs. A Sociedade de Amigas e Amigos de Halit reúne vários grupos e iniciativas, como Tribunal para a Dissolução do Complexo NSU, a Iniciativa 6 de Abril, Forensic Architecture e muitxs outrxs ativistas, pesquisadorxs, cientistas, cineastas e artistas. Esta Sociedade forma uma aliança com quem se dedica a uma prática de pesquisa e ativismo antirracista e antifascista entre Kassel e Atenas e além.

 

Ayşe Güleç era uma das ativistas. Ela trabalhou na documenta 14 e é até hoje uma companheira muito importante. Em uma sessão plenária memorável em 2025 – lembro-me de que estávamos todos muito desesperados na época, enquanto ela permanecia tão combativa, calorosa e calma durante todos esses anos – ela sugeriu que escolhessemos 6 de abril como uma data a ser lembrada para que assim, neste tempo absurdo, neste mundo absurdo, tivéssemos os nossos próprios marcos temporais para nos agarrar. Ela sugeriu que em todos os anos no dia 6 de abril narrássemos a história, para não nos esquecermos que as coisas não aconteceram de repente. E para que não nos esqueçamos do que foi, quando não podemos esquecer o que é, no momento em que queremos reunir toda a nossa força, para de forma contrafactual construir um futuro  contra a realidade.

 

Ainda em 2017, haviam-se passado 11 anos e o assassinato de Halit Yozgat não havia sido esclarecido. O aniversário da morte de Halit Yozgat também foi um fato lembrado na conferência de imprensa da documenta 14. A exposição – realizada há 14 anos – foi provavelmente uma das razões para o significado do nosso dia de recordação. A Sociedade de Amigas e Amigos de Halit se juntou a um coletivo de pesquisa de Londres chamado Forensic Architecture. Ayşe Güleç escreveu naquela época sobre a colaboração:

 

Em março de 2017, foi organizada por ativistas uma conferência internacional com o título „O aparato do racismo“ no centro cultural Haus der Kulturen der Welt, em Berlim. Usando um vídeo vazado pela polícia, cenas do assassinato foram reencenadas em uma réplica do lugar do crime em escala de 1:1, com o intuito de investigar a plausabilidade do testemunho de Andreas Temme. Com  o vídeo  usado para a reencenação – gravado no cybercafe de Halit – Temme, ex-funcionário do serviço de inteligência do estado de Hessen pretendia sustentar a sua alegação e comprovar que, ao deixar o café, não havia notado a presença de Halit Yozgat baleado e caído no chão, em outras palavras, que não havia visto e nem ouvido nada do que diz respeito ao assassinato, apesar de sua presença nos fundos do café no momento do assassinato ter sido comprovada. Este vídeo da polícia formou a base para „a investigação da investigação“ ou para a „reencenação da reencenação“ do assassinato. Com a meticulosa investigação forense e a reconstrução do testemunho de Temme pelo Forensic Architecture reencenado no microcosmo da réplica do cybercafé, foi possível levantar argumentos fortes para uma questão que já vinha sendo sinalizada há tempo pelas famílias das vítimas: o papel das instituições do Estado envolvidas na investigação do assassinato. Já há muitos anos, ​​Ismail Yozgat, pai de Halit, apontava no processo do NSU e nos eventos comemorativos anuais as inconsistências no testemunho do empregado do serviço da inteligência.

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Aqui podemos ver o vídeo do Forensic Architecture, que nos anos que se seguiram à documenta 14 foi exibido em inúmeras exposições. [Fig. 2]

 

[Fig. 2] „77sqm_9:26min“. Contra-investigação do testemunho de Andreas Temme em relação ao assassinato de Halit Yozgat em Kassel, 6 de Abril, 2006. Comissionado pelo Tribunal para a Dissolução do Complexo NSU; Haus der Kulturen der Welt (HKW); Iniciativa 6 de Abril; e documenta 14. Disponível online em: www.forensic-architecture.org/

 

A documenta 14 continua sendo importante para nós ainda hoje. Queremos compreender mais daquele contexto em que os coletivos antifascistas se organizaram. Não faz tanto tempo – eu tinha então 10 anos e me lembro das músicas que ouvia, das séries de Netflix, dos primeiros livros, os quais lia com entusiasmo – mas aquele era um outro tempo.

 

Em nossas pesquisas na “Wayback Machine” encontramos uma foto da abertura:

Diretor artístico da documenta 14 Adam Szymczyk cercado pelo seu time.

 

(Fig. 3) Diretor artístico da documenta 14 Adam Szymczyk cercado pelo seu time. Foto: Kaelen Wilson-Goldie, disponível online em: www.artforum.com/diary/kaelen-wilson-goldie-at-the-opening-of-documenta-14-in-athens-67683.

 

Provavelmente era apenas uma foto de divulgação para a imprensa. Decidimos projetar algumas imagens na parede. No decorrer da montagem da exposição, olhamos uns para os outros e nos perguntamos: Que coletivo é este? Que tipo de encenação é esta? Quando nos deparamos com a foto do „time“ como ele se apresenta na coletiva de imprensa, não conseguimos evitar a impressão de uma certa ordenação dos corpos. Todos concordamos: pareciam gerentes daquela época, com seus ternos fora de moda combinados com tênis esportivos, saias e camisas. A foto apresentava a coletividade como hierarquia. Quem está no foco? Um homem e uma mulher parecem ocupar a centralidade da imagem. Sabemos, claro, que tudo é direcionado ao „diretor artístico“ – Adam Szymczyk. Mas como são ordenados os corpos nesse chamado „Parlamento dos Corpos“? Dá a impressão que eles compõem um público, que olham de volta. Tentamos entender essa mudança de perspectiva que foi encenada na coletiva de imprensa. Mas, por fim, enxergamos gerentes – um gerente-líder e seu time – ou então vemos um coral. Um na frente, os outros se juntando a ele. Enquanto nos identificamos com o conteúdo do discurso, a imagem nos é, paradoxalmente, fria e alienante. O que isso significa para a nossa exposição atual? E o que significou para o ano de 2017 e 2018, os quais  a exposição se refere?

 

Na “Wayback Machine” encontramos também um grafite de Atenas

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[Fig 4] Grafite de Atenas

 

Não entendemos totalmente do que se tratava, mas nos pareceu que, de alguma maneira, fazia sentido, reunir essa imagem com a foto da coletiva de imprensa. Deixem-me mostrar o que encontramos ainda:

 

Na mídia alemã, Adam Szymczyk era difamado como polonês, enquanto na mídia grega como alemão. Pensamos aqui que, neste sentido, a Segunda Guerra Mundial deve ter desempenhado um papel para essas percepções. Os tempos perdem sua nitidez... Na sequência, um escândalo financeiro em torno da documenta 14 é alimentado pela mídia e aparentemente o CEO da exposição é forçado a sair. Novas difamações, desta vez com o partido da AfD na primeira fila. No geral, não damos conta de expor todas as contradições, desmembrar os nós, responder às questões que surgem.

 

E assim continuamos: vamos agora nos dirigir às fotos aqui na frente. Trata-se do trabalho exposto na documenta, „O Monumento aos Estranhos e Refugiados“, do artista Olu Oguibe.

 

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[Fig. 5 & 6] Königsplatz durante a documenta 14 em Kassel 2017, Olu Oguibe: „Monumento aos Estranhos e aos Refugiados“ (2017). Crédito: documenta studies/ Nicolas Wefers.

 

Ela consiste em um obelisco de 16,3 metros de altura erigido no meio da Königsplatz com a inscrição: „[Eu] era estrangeiro, e hospedastes-me“, uma citação da Bíblia reproduzida em quatro idiomas (alemão, inglês, árabe e turco). Tanto a citação da Bíblia como a forma do obelisco continham em si uma enorme carga de significados. O artista apropria-se das formas poderosas e as volta contra elas mesmas. Por isso falamos de um para-monumento.

 

Foi com essa obra para a documenta 14 que Olu Oguibe recebeu em 2017 o prêmio Arnold-Bode da cidade de Kassel. No mesmo ano, Thomas Materner, vereador de Kassel pela AfD, descreveu o obelisco naquele comitê de cultura, que se dedicava ao paradeiro do obelisco na Königsplatz, como „arte ideologicamente polarizada e desfigurada“. Ele então anunciou protestos contra a obra. O jornal local de Kassel, o Hessische/Niedersächsische Allgemeine (HNA), parafraseou Materner da seguinte maneira: „A ira dos cidadãos para com o obelisco seria, segundo sua experiência, grande“. Não apenas o uso da palavra „desfigurada“, mas também o discurso sobre a ira dos cidadãos soava como um eco da história da Noite dos Cristais na Alemanha, quando, em 1938, o Ministério da Propaganda do Reich forjou, em uma conferência para a imprensa, um texto sobre „a ira do povo“.A partir dos relatos da época da documenta 14, podemos aferir que o para-monumento de Olu Oguibe tornou-se um ponto de encontro no centro de Kassel.

 

As fotos mostram: a base do obelisco era usada diariamente por jovens e transeuntes. Eles se sentam sobre ele, leem e digitam em seus celulares, e às vezes também conversam um com o outro. Em uma combinação entre a sua forma monumental com sua base acessível, o obelisco na Königsplatz convidava pesssoas ao seu uso, para que se encontrassem diante dele, para que se sentassem sobre ele. Assim, o para-monumento tinha características performativas: representava sua inscrição diariamente, fazia sua ironia vir à tona, enquanto em Kassel, seu paradeiro na Königsplatz era calorosamente debatido.

 

E, por fim, o obelisco não pode ficar lá, foi transferido para a Treppenstraße, um lugar que ficava no meio do caminho entre o Friedricianum e a Kulturbahnhof, uma rota central na presença da documenta em Kassel e que foi vista em muitas representações da documenta 15 realizada em 2022. Um lugar que, no entanto, não é frequentado de uma forma tão heterogênea como a sua localização inicial  e cuja seleção aparentava ser mais oportuna.

 

Por fim, nesta sala, mostramos um ato de vandalismo – na verdade, de um grupo que até hoje se autodenomina de „Identitários“. Muito provavelmente, a foto data do início do ano de 2018.

 

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[Fig. 7] Adesivo „Kein Fuβbreit den Antideutschen“ („Não dê espaço para os anti-alemães“) colado em cima da obra „Die Fremden“ („Os estrangeiros“) de Thomas Schütte, documenta  9 (1992). Crédito: Gila Kolb. [Nota da tradutora para o inglês: „Kein Fuβbreit den Antideutschen“ é uma apropriação do slogan antifascista „Kein Fuβbreit den Fachisten“. „Kein Fuβbreit“ a grosso modo significa „Não dê espaço“.]

 

Teriam sido essas as mesmas pessoas que, mais tarde, ditariam as regras nos corpos diretivos das universidades e museus? Sabemos que em 2018, a arte já havia começado a ser determinada pela direita. Sob o trabalho de Thomas Schütte, „Os estrangeiros“ feito para a documenta 9 em 1992, eles colaram uma etiqueta com o texto „Não dê lugar para os anti-alemães“. É claro que sabemos que isso é uma apropriação por parte da direita de um velho slogan antifascista.

 

Mas vamos avançar, senão não chegaremos nunca ao plenário e eu prometi não falar mais de 45 minutos. Sigamos para as próximas salas.

 

Sala 2: Lutas por representação

 

No dia 25 de janeiro de 2018, a Kestner Gesellschaft de Hanover abriu uma retrospectiva das Guerrila Girls. Na internet, ela foi apresentada da seguinte maneira:

 

Com a exposição "The Art of Behaving Badly" [A Arte de se Comportar Mal], as Guerrilla Girls apresentam na Kestner Gesellschaft uma das posições internacionalmente mais influentes da crítica institucional feminista. Desde 1985, as Guerrilla Girls têm atuado como um grupo anônimo, chamando a atenção para a sub-representação de mulheres e People of Color em galerias, museus e outras instituições de arte. Com cartazes em espaços públicos, vídeos, ações, performances e publicações, as Guerrilla Girls revelam amplos mecanismos de exclusão no mundo da arte, que, até hoje, contribuem para uma paisagem de arte e cultura dominada por homens brancos em todo o mundo. A exposição é a primeira individual institucional na Alemanha. Serão exibidos trabalhos criados entre 1985 e 2017. Além da retrospectiva, as Guerrilla Girls realizarão um novo trabalho especialmente para a Kestner Gesellschaft. Para a abertura da exposição Frida Kahlo e Käthe Kollwitz apresentam uma performance.

 

Vamos atentar para a linguagem do anúncio da apresentação. Acima de tudo, à temporalidade dele. Embora a “Wayback Machine” tenha sido criada apenas em 2020 – dois anos depois da abertura da exposição – o anúncio parece pertencer a um futuro vago, eterno, longínquo. Decidimos trazer este texto para o contexto da exposição por duas razões. Primeiro porque as Guerrila Girls fizeram parte de uma história da arte feminista e também foram de grande importância para a crítica institucional do século passado. Do início dos anos 1980 em diante, elas tornaram-se  emblema de um questionamento urgente sobre as exclusões institucionais e o sexismo no contexto dos museus. E logicamente essa abordagem nos interessa muito, mesmo quando sabemos que pensar sobre o feminismo depois do Retrocesso seja algo muito diferente. Mas de qualquer modo não queremos nos deixar definir por políticas e institucionalizações banais, sexistas e poderosas, que já definem a nossa vida por demais. Acreditamos que elas não devem penetrar em nossos pensamentos, sonhos e na nossa imaginação.

 

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[Fig. 8] Cartaz das Guerrilas Girls por ocasião da abertura da exposição The Art of Behaving Badly [A Arte de se Comportar Mal] na Kestner Gesellschaft. Crédito: Kestner Gesellschaft.

 

Estamos apresentando esse pôster daquela época também por um outro motivo. É parte das perguntas que nos movem, combinadas com nosso incômodo. Pouco antes da virada autoritária, aparentemente houve um boom de representação sobre a posição das mulheres. Por quê? E como isso aconteceu?  Isso foi consequência, parte do problema ou ambos? As intervenções de crítica institucional das Guerrila Girls chamam a atenção para este fato. E não o comemora como um sucesso, mas sim ampliam a perspectiva para pensar a questão dos artists of color. Daí podemos depreender que, sob o ponto de vista desse grupo, esse desenvolvimento é um progresso contínuo, e como todo progresso tardio e em urgência, necessita de expansão. A nossa visão sobre o pôster é retrospectiva, por isso de alguma maneira discutimos em termos diferentes. Com certeza as lutas por representatividade também obtiveram êxito, e nos encontramos aqui, no meio dessa história. Supomos que tenha havido uma convergência das lutas, mas isso apenas é possível graças a nossxs antecessorxs que lutaram pela deslegitimação de uma ideia de contradições principais. Em nossa posição – marginalizada, e embora sem perigo iminente às nossas vidas, porém largamente apartados do nosso poder de agir – tudo o que não fosse uma convergência nos pareceria absurdo. Nossa principal contradição é uma luta contra o fascismo, que buscamos enfrentar com uma imaginação que não se define pela luta contra o dito fascismo.

 

Mas seria possível pensar que essa expansão da representação de alguma maneira já fizesse parte do movimento de Retrocesso, sendo a representação reduzida a uma fachada? Seria possível que as posições formadas em torno das políticas de identidade e que se colocaram como obtendo importantes vitórias na obtenção de inclusão de posições marginalizadas estavam, de fato, integrando a produção dessa fachada?

 

Se dermos uma olhada na internet dos anos 2020, não podemos deixar de sentir que uma representação multiplicada e um público multiplicado, ambos cada vez mais baseados em matemática e algoritmos, não podiam mais ser considerados „público“ ou „representativo“ nos sentidos clássicos das palavras. Em vez disso, pareciam servir para segregar cada vez mais uma só aparentemente existente e invocado “esfera pública”, separando e filtrando em bolhas, que eram deliberadamente mantidas em segredo da esfera pública: ou seja, quem, o quê, onde e por quê poderia saber do intelecto geral cuja publicação nossos predecessores participaram nas mídias sociais. Assim, a multiplicação do público tornou-se a base de seu próprio governo, e possivelmente também de seu esvaziamento.

 

Teriam então as Guerrila Girls, quando partiram de um pressuposto de esfera pública e de sua representação, ainda alguma relação com esse público ao qual estavam demandando, evocando e se endereçando? Ou será que esta esfera pública calculada e fragmentada já estava sendo economizada, privatizada e possivelmente simulada por algoritmos? E terá feito algum sentido essa demanda por uma presença mais forte de People of Color nesse simulacro de „representação“ e „público“?

 

Em 2017, essas demandas foram feitas por artistas e ativistas antirracistas em protestos, em instituições, em painéis de discussões. Falavam de provincialismo e da singeleza do cânone existente e das políticas de recrutamento daquele tempo. Isto demandava também uma naquele tempo importante instituição financiadora: a Kulturstiftung des Bundes (KSB, Fundação Alemã Nacional pelo Fomento à Cultura), que buscou contrariar a absurda homogeneidade dos indubitavelmente reacionários museus e instituições com a criação de novos programas de fomento – ou, como não dizemos mais hoje em dia, com a „implementação“ de medidas que visavam à diversificação. Na nossa exposição figura uma interface que permite a qualquer um navegar pelos programas daquele período. Buscamos decifrar o texto. Que tempos eram aqueles, quando existiam discursos poderosos que não eram dirigidos contra nós? O que significava? O que tornava aquilo possível? E em que medida, apesar da proximidade dessas ideias aos nossos sonhos e a clara posição contrária ao pensamento identitário, já eram parte do que posteriormente pode ser “implementado”  por eles mesmos – e  acabou transformando os museus em máquinas de propaganda experimentais, globalmente conectadas, neonacionalizadas?

 

Um dos projetos fomentados pela KSB em 2018 foi a exposição Hello World na Hamburger Bahnhof, em Berlin. O título soa esquisito, mas ainda assim familiar. Ainda conseguimos nos comunicar com o mundo, com nossxs amigxs e parceirxs. Nem sempre é fácil. Mas persistimos, construímos redes, estamos em contato com programadorxs e conhecemos pessoas em países livres que organizam e apoiam essa comunicação. E assim Hello World de alguma maneira fala com a gente, mas ainda assim soa estranho. Quem disse isso naquela época? E para quem? Exibimos aqui o vídeo de comunicação da exposição, para entendermos melhor. Fica claro: a exibição buscava tematizar as exclusões inconscientes (mas nem por isso menos violentas) da história colonial da Alemanha, e a coleção era examinada por meio de suas lacunas. Parece um pouco falso, mais outro vídeo promocional daquela época, pensamos aqui com nossos botões.

 

Outro projeto importante que recebeu o fomento da KSB foi a Bienal de Berlim, ainda em 2018. Ela tinha um título lindo, em referência a uma música que sempre gostamos de escutar, nos lembrando de nossas avós: „We don´t need another heroe“ [Não precisamos de outro herói], de Tina Turner.

 

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[Fig 9] Comunicação visual da 10a Bienal de Berlim de Arte Contemporânea, 2018, conceito e arte gráfica elaborado por Maziyar Pahlevan.

[Fig 10] Time curatorial da 10a Bienal de Berlim. Crédito: Anthea Schaap.

 

Tudo o que conseguimos encontrar sobre a exposição pela “Wayback Machine” nos interessa. Certamente isso tem a ver com o fato de que muitas posições vêm da África do Sul, onde todos gostaríamos de estar. Parece um lugar do futuro, um santuário que alguns de nós já alcançaram um lugar de onde parte muito da nossa comunicação. Na exposição também não faltaram People of Color. Infelizmente faltava-lhe força performativa, já que, como sabemos, a AfD ganhou força no período que se seguiu, e hoje os Identitários governam a arte.

 

O que acreditamos entender quando revistamos este material: houve lutadores e lutadoras importantes no campo da arte, que eram tudo menos ingênuxs, que ocuparam e utilizaram os espaços que haviam disponíveis. Lutaram contra instituições (como o Humboldt Forum em Berlim, um moderno reduto dos Identitários) ou as modificaram através de políticas públicas ou de dentro. Ao fazê-lo, desafiaram tanto o cânone e o discurso existente como se adaptavam à situação. Ganhavam espaço discursivo, criavam empregos e perdiam posições.

 

O material nos mostra como era possível mudar instituições, mas também o quanto as estruturas neoliberais pós-democráticas já haviam mudado os discursos e as subjetividades. O campo da arte parecia ser um campo de batalha para temas que nos moldam hoje, mas muitas batalhas já pareciam perdidas. Os sinais já estavam lá. A vontade também.

 

Mas tudo sempre esteve tão alinhado que precisou seguir o trilho. Na era da pós-política, o trem é encarrilhado de maneira não democrática. No início, ele se locomove com uma publicidade democrática, que foi grafitada em seu lado exterior. Hoje os trens se parecem com o que de fato são. Se não cruzarem uma fronteira e ainda encontrarmos dinheiro em algum lugar, podemos seguir com eles. Mas eles prometem não chegar a um lugar onde seria melhor. A exposição dificilmente poderia terminar mais triste, é uma história do momento presente que vivemos. Mas depois deste presente, haverá um futuro. Nosso futuro.

 

Seguimos para o plenário agora.


Periódico Permanente é a revista digital trimestral do Fórum Permanente. Seus seis primeiros números serão realizados com recursos do Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010, gerido pela Funarte.

 

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