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Por exemplo, documenta, ou, como a história da arte é produzida?

WALTER GRASSKAMP

Editorial Expediente SumárioRecomendações editoriaisDicas para redação dos relatos criticosEdição AtualEdições AnterioresSobre

Periódico Permanente, v. 9, n. 8, 2020.

 

 

Walter Grasskamp é crítico de arte e professor de História da Arte na Academia de Belas Artes em Munique. Em 2012, publicou um volume com fotos de Hans Haacke da documenta 2 (1959) e, em 2014, o livro 'André Malraux e o Museu Imaginário' pela editora C.H. Beck.

 

TraduçãoVinicius Spricigo

Revisão: Tiago Machado

 

O artigo aqui traduzido foi publicado originalmente como ‘Modell documenta oder wie wird Kunstgeschichte gemacht?’ em 1982. Ele foi escrito como introdução para o volume 49 da revista Kunstforum International, intitulado pelo autor como ‘Mythos documenta. Ein Bilderbuch zur Kunstgeschichte’ (‘O mito da documenta. Um livro ilustrado de história da arte’). A tradução para o português foi feita a partir da versão revisada e alterada publicada em inglês 1996 na coletânea ‘Thinking About Exhibitions’. O texto foi a primeira vez que o autor tratou da história da documenta, tema ao qual retornou em diversas outras publicações, dentre as quais eu destacaria um artigo no qual Grasskamp relata um pouco da sua história pessoal na pesquisa realizada no arquivo da documenta em Kassel, bem como a descoberta de um novo tópico de pesquisa acadêmica e de imagens posteriormente atribuídas ao artista alemão Hans Haacke: ‘To Be Continued: Periodic Exhibitions (documenta, for example)’ Tate papers 12/ 2009, Landmark Exhibitions issue; disponível em: https://www.tate.org.uk/research/publications/tate-papers/12/to-be-continued-periodic-exhibitions-documenta-for-example.

 

Legendas: Fig. 1. O Museu Fridericianum durante a primeira documenta in 1955. Fotografia Günther Becker, cortesia do documenta archive.

 

Fig. 2. Escadaria com trabalho de Wilhelm Lehmbruck e Oskar Schlemmer. Fotografia Günther Becker, cortesia do documenta archive.

 

Em 1978, Wulf Herzogenrath reconstruiu uma exposição para a Associação Artística de Colônia, que o seu predecessor Toni Feldenkirchen tinha organizado 30 anos antes no centro de exposições de Colônia. O propósito da exposição de 1949 (Pintores e Escultores Alemães Contemporâneos) tinha sido redefinir, após a iconoloclastia dos nazistas, o que seria válido como arte contemporânea na jovem República Federal. O plano original de repetir tal exposição panorâmica a cada quatro anos a partir de 1949 jamais saiu do papel. Tivesse uma segunda exposição de arte alemã ou até mesmo internacional sido organizada em 1953,  provavelmente a documenta de Kassel nunca teria existido. Essa oportunidade perdida pode ser uma razão para que a exposição tenha sido repetida 30 anos mais tarde, mas certamente não a única. Também não foi rever as escolhas feitas. Teria sido inútil também ceder ao jogo preferido dos críticos de descobrir quais artistas tinhas sido super- ou sub-representados. Isso é em todo caso uma questão irrelevante pois é o narrador (ou escritor) quem vence o debate todas as vezes, e isso seria ainda mais chato nesse caso, devido ao lugar histórico privilegiado.

A repetição da exposição foi antes de mais nada uma mudança de perspectiva, para apresentar uma alternativa ao ponto de vista historiográfico e artístico usual que, via de regra, após 30 anos está preocupado apenas com poucos trabalhos consagrados e esquece o contexto artístico, do qual ele isola esses trabalhos. Quanta pinturas e esculturas esquecidas existem para cada pintura que faz uma carreira por si própria nas reproduções coloridas dos trabalhos convencionais de história da arte? Desde quando essas escolhas (com as quais os historiadores da arte separam o joio do trigo) começaram a ser tomadas como certas? Com que frequência esses poucos trabalhos permanecem sem serem desafiados meramente porque os outros trabalhos foram simplesmente negligenciados, esquecidos ou mesmo desperdiçados pelos seus herdeiros? A arte é a perseverança dos sobreviventes era um dos lemas do Grupo Dada de Colônia, Stupid, que Wulf Herzogenrath gostava de citar. A repetição da exposição de trinta anos de idade foi um exemplo nada ortodoxo desse lema: as dificuldades que surgem em tentativas de se apropriar desses trabalhos feitos por alguns artistas que escaparam  pela peneira da história da arte, são as provas da importância dos viúvos e dos herdeiros no processo de consagração de um artista.

Certamente a historiografia, incluindo a historiografia da arte, somente se torna possível se alguns poucos eventos são selecionados do caos e disseminados. A escrita da história finge se orientar pelo valor dos acontecimentos, tal como percebido pelos seus contemporâneos, mas ela utiliza seus próprios critérios de validação. Assim como a historiografia em geral também prefere as capitais às província, os tempos de guerra à paz, o desenvolvimento técnico à cultura do comércio especializado, também a história da arte tem prioridades que ajudam a reduzir o cenário, um produto de processos artísticos e eventos, em um excerto histórico e artístico. Essas prioridades são as pré-condições tácitas das obras convencionais da história da arte, mas elas já são definidas com antecedência. Artistas participam do seu surgimento e propagação, tanto quanto galeristas; seus agente incluem colecionadores, curadores e administradores de espólios. A matéria prima da qual essas prioridades são extraídas e então atualizadas são discussões casuais, recomendações, exposições ambiciosamente montadas, rumores, julgamento de especialistas, catálogos, leilões, júris e comissões. A exposição documenta de Kassel é um exemplo da gênese e propagação de tais prioridades.

 

Teoria da Conspiração

 

Quem argumenta dessa maneira é igualmente suspeito de proximidade ideológica com uma teoria da conspiração como propagada pelos oponentes da arte moderna para explicar o seu sucesso. Os discípulos dessa teoria popular gostam de atribuir o sucesso da arte contemporânea à uma máfia composta de negociantes espertos, um grupo de profissionais de museus corruptos e colecionadores subservientes, que supostamente conseguiu explorar a avidez do público por novidades a tal ponto que charlatões e incompetentes foram incensados como artistas importantes às custas dos contribuintes. Os propagandistas dessa teoria - não raramente artistas malsucedidos ou artistas que têm outras concepções de arte, mas também diretores de museus e críticos - geralmente espalham polêmicas tão infundadas e inúteis que não é difícil contestá-las. Discuti-las seria mesmo supérfluo se os teóricos da conspiração não soubessem como promover e explorar as reservas de numerosos frequentadores de museus com relação aos trabalhos de arte contemporânea. Mas críticos astutos e barulhentos também gostam de recorrer a elementos típicos de uma teoria da conspiração, de modo que o debate permanece atual.

Os argumentos daqueles que se opõem à teoria da conspiração são igualmente falaciosos. Ao tentar invalidar a teoria conspiratória, eles vão ao outro extremo e tentam minimizar, senão negar totalmente, a influência dos galeristas e outros agentes no sucesso de um trabalho ou escola de arte. Eles agem como se a natureza do trabalho de arte, sua atitude com relação à tradição, ou a competência do artista fossem suficientes para explicar o sucesso da arte, como se todos os outros fatores de sucesso fossem circunstâncias concomitantes, acidentais e irrelevantes. Mas qualquer um que circula por alguns anos nos círculos culturais conhece a transição fluída entre a colegialidade e colaboração, entre favores e perspicácia para os negócios, entre os métodos do cavalheiro e os do vigarista, na qual o mercado de arte queira ou não participa, sejam seus participantes os galeristas, críticos, colecionadores, curadores ou artistas. Aqueles que simplesmente negam esse perigo constante da própria definição independente das suas posições só conseguem levantar suspeitas - no mínimo de que são ingênuos.

Ambas as visões são falsas na medida em que elas querem ser exclusivas. Nenhum trabalho de arte produz seu próprio sucesso, mas pode ser possível julgar suas qualidades sem referências às pessoas que os tornaram bem-sucedidos. Pode-se achar um trabalho de arte bom mesmo se não se aprova os métodos com os quais ele foi colocado em circulação, e inversamente, nem todo artista que imagina que foi privado de seu sucesso por algum personagem obscuro deve ser reabilitado por isso; possivelmente ele realmente era entediante. Por isso a intenção explícita dos organizadores da documenta II (1959) de propagar a arte abstrata como uma ‘linguagem mundial’ foi considerada por muitos críticos somente como um sinal de que artistas realistas, sobretudo aqueles da escola do realismo social, deveriam ser retirados do campo de visão do público pelos agentes da arte capitalista da Alemanha Ocidental do pós-guerra. Se isso era uma estratégia, ela foi bem-sucedida: reparações não puderam ser feitas à tradição do realismo social que o Nacional Socialismo tinha erradicado, como foram feitas para a arte abstrata, por exemplo, nos anos 1950 e 1960 na Alemanha Ocidental. Os realistas sociais dispersos teriam sentido que foram desprezados quando a documenta 5 (1972) propagou o Fotorrealismo Americano, e quando a documenta 6 (1977) emprestou o realismo social da Alemanha Oriental. Os realistas socialistas foram sem dúvida os mártires da documenta de Kassel, mas mesmo os mártires podem estar errados.

Se a documenta deve ser vista como um exemplo de como a história da arte é produzida, não é tanto porque ela forneceu combustível para a teoria da conspiração - especialmente onde o nepotismo das galerias estava envolvido, uma questão que não poderia ser varrida para baixo do tapete com negações oficiais. Sabe-se, há muito, que galeristas estão profundamente envolvidos sempre que a história da arte é produzida; essa constatação é antiga e mesmo isso não é necessariamente algo ruim. Essa questão só se torna crucial sob a pressão da opinião pública, de acordo com a qual os galeristas não devem se intrometer com a história da arte, onde suas atividades são disfarçadas ou negadas, para que sua contribuição para a história da arte não seja descoberta e portanto não possa ser criticada. Ou dito de outro modo, dez galeristas astuciosos são mais benéficos para a história da arte do que um Comissário do Povo para a Arte; é menos embaraçoso ser enganado por um blefador do que ser forçado a acreditar nas roupas novas do imperador. Em todo caso, a formulação de Abraham Lincoln sobre política na qual a teoria da conspiração está baseada também é aplicável à história da arte: ‘Você pode enganar todas as pessoas algumas vezes e algumas pessoas o tempo todo, mas não pode enganar todas as pessoas o tempo todo.’

Seleção

 

A documenta é um modelo para a produção da história da arte, porque ela é o empreendimento mais proeminente de uma exposição do pós-guerra que sobreviveu continuamente às suas próprias dificuldades. A intenção inicial de contrabalancear a demanda reprimida pela arte moderna na Alemanha Ocidental, levou, depois de alguns anos, à organização de uma exposição de estatura internacional, que forma substancialmente a consciência geral do que é considerado arte contemporânea. A documenta não desempenha apenas esse papel, ela faz mais do que isso, ela antecipa a produção da história da arte, aliviando as dores da seleção.

Não somente os realistas sociais sofreram com essa seleção; mesmo um Hans Purrmann, que foi representado na primeira documenta (1955) não somente com os seus próprios trabalhos, mas também com um busto de Emy Roeder, não foi convidado para a segunda e a terceira exposição. No outono de 1964, quando a documenta III ainda estava ocorrendo, ele admitiu numa carta: ‘Que a documenta tenha me desconsiderado completamente e não tenha me solicitado um simples desenho tem me ferido todo o verão e tem sido a causa do meu mau humor, mas é preciso continuar a trabalhar, mesmo que eu tenha chegado ao final da minha vida.’ Com essa nota concisa de um idoso de 84 anos sobre a crise causada por não receber um convite para a documenta, o mito da documenta torna-se mais paupável que todos os ataques dos críticos, um mito segundo o qual quem quer que tenha sido escolhido é então aceito no panteão para o qual aqueles que permanecem de fora não conhecem substituto. Esse dilema é aparente nas ações de protesto de Wolf Vostell’s e Jörg Immendorff na ocasião da documenta 4 (1968), bem como nos cartazes com a incrição ‘Flatz não está participando da documenta’, que foram colados nas colunas do Fridericianum na ocasião da documenta 6: alguns dos artistas omitidos se fizeram notar no local, e assim mesmo o protesto reificou o mito do evento. Para a documenta - que, com ironia, tem sido chamada de Olimpíada das Artes devido ao seu ciclo original de quatro anos - um slogan que há muito não podíamos aplicar às Olimpíadas agora se aplica: participação é tudo. O ritual da lista de chamada dos participantes é o precursor da exclusão da história da qual os rejeitados tem motivo de temer, uma vez que eles estão sendo eliminados de uma das etapas preliminares mais importantes. A disseminação das decisões do júri na história da arte cresce com o escândalo que os jurados fazem às vezes sobre suas decisões, e isso certamente nunca foi uma questão de modéstia em Kassel. Os jurados promovem o mito dessa seleção, evitando a impressão de casualidade, subjetividade e voluntariedade, que suas decisões, no entanto, nunca podem negar totalmente, mesmo que muitos motivos convincentes sejam listados. Afinal de contas, ninguém decide o que fazer somente de acordo com a razão; mesmo Immanuel Kant diz-se que teve seus caprichos.

 

Encenação

O inventor da documenta, Arnold Bode, não se contentou em selecionar trabalhos. Sua principal ambição era aperfeiçoar a arquitetura da exposição, a encenação. A grande importância da questão da encenação nas três primeiras documentas não pode ser explicada somente pelo engajamento de Bode, que também projetou a arquitetura de feiras e pavilhões nas exposições mundiais. Além do mais, a documenta foi um dos maiores experimentos de apresentação e organização empreendidos na história dos museus de arte, bastante comparável à apresentação feita por Vivant Denon dos troféus de Napoleão no Louvre. Nenhum museu antes funcionou sob condições favoráveis semelhantes e ao mesmo tempo desafiadoras como o Museum der Hundert Tage (o museu de cem dias), tal como mais tarde a documenta ficou conhecida. Trabalhos para um museu completo podiam ser escolhidos pelos organizadores por capricho e levados à Kassel sem que as pinturas tivessem sido compradas ou confiscadas. Mas o que é especialmente importante é o fato de que eles poderiam se livrar das pinturas depois, sem ter que se sobrecarregar com o fardo das aquisições no longo prazo ou mesmo ter que transportar as peças usadas na exposição para as reservas técnicas. Mas as vantagens de tal situação de escolha pessoal eram tão grandes quanto as pressões do prestígio, que pesavam sobre o museu durante cem dias. Esse foi o desafio que Bode foi capaz de enfrentar.

Sua primeiras instalações, construídas com placas leves e madeira, tijolos, pisos de cimento, barras de aço, cortinas cinza de plástico, que filtravam a luz incidente do dia ou salas acentuadamente escuras, as paredes pintadas de branco, com as quais ele reabilitou a austeridade da vida cultivada que tinha sido perdida com a Bauhaus e enterrada pelos variados papéis de parede da Alemanha dos anos 1950; tudo isso foram contribuições bem sucedidas para o modo como a história da arte é produzida: festas são úteis. Ele estudou deliberadamente museus e exposições com o objetivo de descobrir como a arte é montada, e o desenvolvimento da ‘arte ambiental’ dos anos 1960 deve ter parecido para ele como uma consequência lógica do seu trabalho. Um artista como o Michael Buthe tardio teria estudado com Arnold Bode. As montagens de Bode produziam significado. A instalação no teto das pinturas de Nay na documenta III (1964) foram a conquista final das encenações bodeanas, embora nem sempre alcançadas sem oposição. Ele foi acusado de exagero, e a documenta 4 (1968) foi organizada por Jean Leering. O sucesso acaba sendo uma questão de encenação também para os designers de exposição.

 

Historicização

Mas o sucesso não é somente uma questão de encenação. A encenação e a seleção dos objetos expostos devem ser legitimadas em termos acadêmicos, precisamente porque isso era uma questão para a arte contemporânea para a qual outras estratégias de legitimação não estavam disponíveis. Para as três primeiras documentas, esse papel foi desempenhado por Werner Haftmann, cuja história amplamente lida da Pintura no Século XX foi publicada um ano antes da primeira documenta, em 1954. Futuras gerações dificilmente podem compreender o significado que essa obra de referência teve na Alemanha Ocidental durante os anos 1950. Uwe M. Schneede, atual diretora da Kunstalle de Hamburgo deu um esboço adequado de sua importância:

 

A Pintura no Século XX de Werner Haftmann de 1954 ainda é a única história da arte da modernidade escrita por um único autor. Ela introduziu minha geração à arte contemporânea. O que estava espalhado por aquelas 550 páginas sobre Impressionismo e Fauvismo, Blaue Reiter e Bauhaus, Expressionismo Abstrato e Realismo foi estudado palavra por palavra e apropriado. Irritado pelo outro livro, Arte em Crise: O Centro Perdido de Hans Sedlmayrs, era com Haftmann que se encontrava satisfação. Quando foi possível respirar novamente após a Segunda Guerra Mundial, Werner Haftmann naturalmente se tornou um apologista dos artistas da sua geração. Ele lutou louvavelmente por eles e contra os contínuos sentimentos de ressentimento.

 

Como um propagandista da arte moderna, especialmente a arte abstrata e informal que era atual nos seus dias, Dr. Haftmann era o parceiro ideal do artista e professor Bode, precisamente porque ele fornecia reconhecimento científico. Contra os oponentes da documenta ele usou as palavras sérias e profundas do historiador da arte alemão, um gesto de defesa mas também de intimidação, que não podia deixar de encontrar seu modesto alvo em uma Alemanha Ocidental que ainda temia a ciência.

Haftmann foi para as três primeiras documentas o que poderia, à época da quarta,  ser chamada de um ideólogo chefe. Na ocasião da quarta, no ano turbulento de 1968, Haftmann já tinha se retirado do conselho de guerra de Kassel, bem como Werner Schmalenbach. Eles deixaram o lugar, antes que Pop-Art e o Fotorrealismo pudessem arruinar o conceito no qual especialmente Haftmann tinha investido sua reputação: arte abstrata como linguagem mundial. Um dirigente ideólogo com um certificado de mestre, ele obviamente não queria trocar barco naufragando por outro que tinha acabado de desatracar. Ele sabia como se previnir do afogamento: imediatamente após a terceira documenta, a última pela qual ele foi co-responsável, sua história da arte de 1954 foi publicada em dois volumes expandidos, o segundo tendo sido concebido com um livro de figuras. Enquanto as conquistas de Bode, encenações, evaporavam no dia no qual elas eram desmontadas, Haftmann poderia levar consigo o que provou ser duradouro: seus esboços teóricos e construções historiográficas, o cânone dos trabalhos selecionados e, acima de tudo, mesmo algumas de suas fotografias. As figuras no segundo volume do seu livro notável se sobrepõe com os catálogos das três primeiras documentas e mesmo algumas matrizes de impressão coloridas parecem ter ido com ele, o que significa que não somente despesas foram poupadas mas ajuda mais uma vez a responder a questão de como a história da arte é produzida. Muitos artistas que foram bem-sucedidos na documenta entraram no texto e na seção de figuras-coloridas de uma obra de referência; o que mais eles poderiam querer? É assim que a história da arte é produzida: mais importante do que o original no século XX é a reprodução, a foto. Se está disponível para o historiador da arte, ela pode facilmente canonizar um artista no livro sagrado e especialmente através de figuras coloridas, pois uma imagem vale mais do que mil palavras e uma colorida ainda mais. Atipicamente modesto para alguém da sua área, Haftmann parece ter antecipado tudo isso - ou foi ele um dos primeiros estudantes no pós-guerra da teoria de Walter Benjamin ‘A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica’? Em todo caso, o livro de Haftmann na edição de 1965 marcou uma época: ele historicizou a arte contemporânea, não somente com palavras e figuras coloridas, mas - diferentemente de muitos historiadores da arte - ele não se negou a lidar com os últimos desenvolvimentos da arte. Isso é um mérito seu, mesmo que ele tenha desistido da Pop Art sem reconhecer que ela confirmava, se não as suas predileções na historia da arte, suas formas de propagá-las. Sua renúncia à responsabilidade pela documenta e a saída de Bode produziram um vacum na documenta: duas figuras estelares precisavam ser substituídas simultaneamente para a próxima documenta, embora tenha sido somente uma questão de tempo antes que elas fossem preenchidas, já que, afinal, Kassel significava não apenas a construção da história da arte, mas a construção de carreiras.

Mudando os heróis

As aparências são enganosas. Como deveria acontecer na documenta 5 (1972), após um interregno da quarta, uma missão perigosa foi de fato anunciada, e Harald Szeemann foi o primeiro o primeiro escolhido para cumpri-la. Nenhum dos sucessores de Bode e Haftmann jamais conseguiram converter continuidade em poder, algo que os fundadores sempre foram capazes de utilizar em favor da documenta sempre que sua sobrevivência estava em questão. Quanto mais continuidade a instituição ganhava, mais incerta se tornavam as carreiras dos seus proeminentes e variados colaboradores. Quando Manfred Schneckenburger, o diretor da documenta 6, teve a chance única de também presidir a documenta 8 (1987), isso ocorreu somente porque os candidatos originais, Eddy de Wilde e Harald Szeemann, não conseguiram chegar a um conceito conjunto, algo que o comitê financeiro - do qual Schneckenburger fazia parte - tinha pedido às duas prima donnas. Com poucas excessões (e.g. Bazon Brock, que deu continuidade e expandiu consideravelmente a estratégia de legitimação de Haftmann com sua ‘Escola para Visitantes’ da documenta 4 (1968) até a documenta 6 (1977); Klaus Honnef, que foi responsável  por várias seções da quinta e da sexta documenta; Wulf Herzogenrath, que curou seções das documentas 6 e 8; ninguém retornou ao posto e raramente a carreira de alguém lucrou ao estrelar como curador. Se dirigir uma documenta tornou-se uma chance única com resultados não garantidos, ela tinha que ser transformada em um papel heróico, e portanto uma dramática mudança de heróis ocorreu em Kassel, um prelúdio decisivo para a reavaliação internacional do curador.

Originalmente a documenta ansiava por promover o artista como herói, e isso era tanto mais possível e necessário com os artistas modernos que estavam entre as vítimas da discriminação Nacional Socialista. No catálogo da primeira documenta, a heroicização dos artistas encontra uma expressão peculiar e proeminente na seção de figuras de dezesseis páginas, laconicamente listadas no índice como ‘Fotografias de Artistas’. As figuras dessa seção representam, entre outros, Picasso, Braque, Léger, os Futuristas, e Max Beckmann, seja trabalhando em seus ateliês ou pousando para a câmera. Nenhuma obra de arte nessa documenta pode ser mais sugestiva da maneira como a arte era então recebida do que essa pequena seção de figuras. Uma aura de solenidade e seriedade é o denominador comum desses retratos dos heróis, entre os quais, mesmo uma foto de uma festa no estúdio de Ernst Ludwig Kirchner não podia perturbar, pois a completa alteridade da vida que é representada, mesmo aí, é aparente. O catálogo da documenta II (1959) não inclui uma tal glorificação concentrada de artistas, mas os retratos dos artistas estão espalhados através do catálogo de tal forma que dificilmente têm um efeito menos pomposo; em alguns casos é até aumentado. O catálogo da documenta III (1964) não inclui qualquer fotografia de artistas. É como se um embaraçoso faux pas estivesse sendo corrigido, e as obras sozinhas falassem por si. O mesmo se aplica ao catálogo da documenta 4 (1968). Foi realmente um faux pas incluir as fotos dos artistas, ou foi, sobretudo, um dispositivo mnemônico para garantir ao público que aquilo que poucos anos antes eles deveriam considerar como arte degenerada é, na verdade, o trabalho de pessoas não apenas respeitáveis, mas dignas até de serem honradas? Esse era o tempo em que os cinejornais mostravam nas salas de cinemas os famosos macacos pintores, cujos gestos miseráveis pareciam coincidir em muito com a arte moderna. Os retratos tinham o objetivo de eliminar todas as dúvidas e eram  dispensáveis quando os traumas fascistas começaram a esmorecer nos anos 1960s?

A documenta 5 (1972) resolveu o quebra-cabeças das fotografias perdidas dos artistas. Ao invés de venerar os produtores, atrás de quem os organizadores da primeira e da segunda hora da documenta se retiraram, o triunfo dos novos heróis, os mediadores, foi anunciado. Szeemann estava preparado para isso, como sua primeira façanha, a exposição When the Attitudes become form (1969), já tinha provado que não somente os artistas mas também os mediadores podem ser tornar estrelas do mundo da arte se eles apresentarem os artistas certos na hora certa e no contexto certo. Fascinado pelo modo como os artistas modernos trabalham sem comissões ou reservas, Szeemann descobriu o lado artístico de suas atividades como mediador e as enfatizou - meio historiador da arte, meio visionário - também em seus conceitos teóricos. Sua noção contraditória de Individuelle Mythologien (Mitologias Individuais), o slogan da documenta 5, é possivelmente a melhor senha inventada para conduzir ao domínio fechado da arte moderna. Isso deu à documenta 5 os recursos artísticos e intelectuais necessários para assegurar sua fama como a mais importante documenta depois da primeira.

Incidentalmente, essa noção mudou a estratégia de legitimação de Haftmann, pois ela não historicizava o material artístico, mas o caracterizava ao rotulá-lo. A estratégia de Haftmann tinha de qualquer forma chegado ao fim devido às mudanças rápidas da vanguardas e novas tendência a tornaram obsoleta. Ao nomear a seção central da quinta documenta ‘Mitologias Individuais’, Szeemann havia se apropriado de uma forma diferente de produzir história da arte sem conceitos históricos. Essa forma remove caracteristicamente uma atividade dos artistas, que é em todo caso só ocasionalmente incumbida a eles hoje em dia. Se os nomes ‘Impressionistas’ e ‘Fauvistas’ foram destilados de insultos, ‘Dadaístas’ de uma tentativa de paródia, os ‘Surrealistas’ e ‘Futuristas’, como outros grupos de artistas, condensaram suas intenções programaticamente nos nomes dos seus grupos. Desde os anos 1960s, os mediadores, entre outros, competiram para nomear seus grupos primeiro. Com Mitologias Individuais’, Szeemann lançou um nome comparável aqueles que surgiram com outros mediadores mais cedo ou mais tarde, como por exemplo, Conceptual Art, Earth and Land Art, Arte Povera, e os New Savages, em competição com os artistas que nomearam os movimentos ‘Fluxus’ ou ‘Art & Language’. Quando um público quer recorrer a um programa ou programa substituto para compreender uma obra de arte, ele o faz por meio de tais conceitos, e especialmente através dos mediadores, cujo novo papel heroico é derivado dessas realizações, que eles comprovam com sua compreensão de artistas e obras por um lado, e suas caracterizações adequadas por outro.

Apesar do êxito de Szeemann em revitalizar a instituição da documenta dando-lhe uma contemporaneidade arriscada, ele, por um longo tempo, não recebeu o reconhecimento por suas realizações. Os organizadores oficiais da documenta até mesmo consideraram processá-lo pessoalmente por alguns déficits no orçamento que pareceriam ridiculamente pequenos nos dias de hoje mas que na época poderiam ter arruinado um homem que não tinha outro trabalho. Nem seu sucessor imediato, Manfred Schneckenberger, diretor da documenta 6 e ex-diretor do salão de exposições de Colônia, foi reintegrado no esquema da carreira de mediadores, mas trabalhou como freelancer ainda por muito tempo. Rudi Fuchs foi esperto e não deixou o seu trabalho para fazer a documenta 7 (1982), retornando para seu museu em Eindhoven, depois de um ano de afastamento. Ele percebeu que os tão invejados heróis dos cem dias, poderiam acabar sendo desempregados altamente respeitados nos anos seguintes. Nenhum deles de fato jamais recebeu o reconhecimento oficial que Haftmann adquiriu ao tornar-se diretor da Galeria Nacional de Berlin Ocidental depois que ele deixou a comissão da exposição de Kassel. No entanto, o exemplo dado por Szeemann com When Attitudes Becomes Form, documenta 5 e outras importantes exposições subsequentes, influenciou e transformou o mundo da mediação artística de várias maneiras.


Periódico Permanente é a revista digital trimestral do Fórum Permanente. Seus seis primeiros números serão realizados com recursos do Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010, gerido pela Funarte.

 

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