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Por uma experiência educacional radical; entrevista com Ruth Noack sobre a documenta 12

Editorial Expediente SumárioRecomendações editoriaisDicas para redação dos relatos criticosEdição AtualEdições AnterioresSobre

Periódico Permanente, v. 9, n. 8, 2020.

 

Entrevista: Vinicius Spricigo

Revisão: Gilberto Mariotti

 

Curadora internacionalmente renomada, Ruth Noack é principalmente conhecida por sua curadoria da Documenta 12 (2007) junto com Roger M. Buergel. Foi Diretora do Programa de Curadoria em Arte Contemporânea da Royal College of Art e Coordenadora de Pesquisa da UE – projeto MeLa – Museus europeus na era das migrações. Desde 2015, ela é responsável por uma das trajetórias da DAI Roaming Academy (Holanda).

 

De passagem por São Paulo para o seminário Políticas da Mediação: Playgrounds, realizado no Museu de Arte de São Paulo em abril de 2016, Ruth Noack, concedeu à Vinicius Spricigo essa entrevista traduzida pelo editor.

 

 

Você gostaria de participar de uma experiência artística?; 1994-2007, 20 objetos de aço pintado em circulação pela América Latina, África e Europa;

Legenda: Você gostaria de participar de uma experiência artística?; 1994-2007, 20 objetos de aço pintado em circulação pela América Latina, África e Europa; documentação produzida pelos participantes disponível em www.nbp.pro.br; objeto 125 x 80 x 18 cm, estrutura de ferro pintado, grades de ferro, objeto de aço pintado, tapete, colchonetes, almofadas, 8 monitores, 2 DVDs, 4 computadores, 8 câmeras de circuito-fechado, 2 sistemas de circuito-fechado, diagrama, painel com texto; instalação: 2000 x 960 x 240 cm; vista de instalação no Aue-Pavillon, documenta 12, Kassel, 2007; Foto Daniela Mattos

 

Vinicius Spricigo – Sua curadoria para a documenta 12 levanta algumas questões sobre a autonomia do trabalho artístico, ao enfatizar uma experiência estética que ocorre em um contexto histórico-cultural muitas vezes distante daquele em que o trabalho foi produzido. Tucumán Arde, por exemplo, foi apresentado como um trabalho e não como a documentação de um processo artístico. Você colocaria em oposição esses dois tipos de experiência artística? Um no qual o trabalho artístico falar por si próprio e o público dever interagir com ele esteticamente, e outro que reúne trabalhos, documentação histórica e arquivística, produzindo narrativas curatoriais?

 

Ruth Noack – Eu não colocaria ou polarizaria dessa maneira. Há muitos mal-entendidos aqui. Vamos iniciar com Tucumán Arde pois será mais fácil assim. Ele não foi mostrado como um trabalho artístico ou documentação. A questão quando Graciela Carnevale e Matthijs de Bruijne (ativista e artista político holandês) decidiram instalar daquela maneira, em 2007, é se seria possível diferenciar uma prática artística de e uma documentação, porque basicamente a arte contemporânea dissolveu essas diferenças, uma vez que os artistas estão usando documentação como um meio para a arte. Embora existam informações lá, isso não significa que o trabalho está baseado nessa informação ou que eles estejam tentando acessar uma discussão política sobre Tucumán Arde.  Como sabemos o arquivo Tucumán Arde pertence ao MACBA agora e mesmo enfatizando esse aspecto documental esse arquivo é freqüentemente estetizado. Devemos ser precisos a esse respeito. Reivindicar a experiência estética não é reivindicar a autonomia da arte. Mesmo que essa autonomia seja lida nos anos 1950 de maneira muito diferente de como foi lida em 2007, porque o discurso e talvez o inimigo está em outro lugar. Quando nós estamos reivindicando uma experiência estética, fazemos isso de um ponto de vista político radical. Estamos dizendo que é essencial que tudo se torne político, que lidemos com objetos que podem nos permitir compreender que há algo indeterminado no significado, e por isso não somos o seu mestre. Na verdade, isso nos leva de volta ao espectador e não somente ao trabalho artístico. A relação entre o espectador e o trabalho artístico foi um dos temas principais da documenta 12. Nós lidamos com isso de diversas formas. Uma delas foi dizer que devemos levar o meio expositivo a sério, se queremos produzir qualquer tipo de significado por meio da exposição. Levar o meio expositivo a sério significa compreender que as pessoas vão gastar certo tempo enquanto estão olhando para algo. Uma exposição é uma coisa efêmera. Então o que quer que esperemos fazer, deve ser feito nessa efemeridade, nesse momento da observação. Okwui Enwezor na documenta 11 tentou lidar com o fato de que o mundo da arte se tornou muito complexo e multifacetado, e nós não podemos simplesmente excluí-lo na sua totalidade da definição de arte contemporânea. Isso tornou a sua documenta muito discursiva, com essas diversas plataformas das quais somente a última era uma exposição. As demais foram conferências que resultaram em muitas publicações. Nós percebemos que mesmo os especialistas provavelmente não tinham lido tudo o que foi publicado. A documenta é uma exposição que é visitada em sua maioria por um público leigo, e eles nunca vão ler tudo isso, até mesmo porque os catálogos são muito caros. Então temos um problema, pois em teoria temos todo esse conhecimento contextual que é absolutamente essencial, todos nós concordamos, para compreender o que está se passando no mundo, mas na prática não podemos lidar com tudo isso. Então é uma questão de como fazer uma exposição que permita às pessoas compreender qualquer coisa. Nossa escolha foi dizer, em primeiro lugar, nós radicalmente marcamos esse espaço de não entendimento, de não ter conhecimento suficiente. Além disso, se transformarmos tudo em discurso, mesmo assim ainda teremos uma completa falta de conhecimento, então se radicalizamos isso e confrontamos as pessoas com a sua falta de conhecimento talvez nós sejamos capazes de irritá-los e provocá-los a começar a pesquisar por si próprios. Não estamos dizendo que é suficiente somente apresentar o trabalho artístico, estamos dizendo que existe uma lacuna, que não pode ser preenchida pela exposição. Para realmente levar a sério que todos, sejam especialistas ou não, podem chegar bem longe somente olhando. Tinha somente algumas pequenas pistas que nós dávamos às pessoas sobre como fazer isso. Nós tínhamos a migração da forma, por exemplo, e outra coisa que ajudou especialmente o público leigo. Nós pegamos mais de um trabalho de certos artistas e distribuímos por todo espaço expositivo da documenta. Eles apareciam em diferentes espaços e dessa forma quando uma pessoa os via novamente, ela se sentia um pouco especialista pois já tinham visto algo como aquilo em outro lugar e podiam reconhecer isso, e que, ao andar e olhar pela exposição, participavam de sua feitura.

 

Vinicius Spricigo –Nesse sentido a educação estética como um dos motivos escolhidos pela curadoria desempenha um papel importante na documenta 12.

 

Ruth Noack - A educação foi essencial, realmente uma parte importante da exposição. Nós estabelecemos a mediação, que chamamos de educação, logo no início, como algo que não seria somado posteriormente, mas que fazia parte do processo curatorial. Agora nós temos a chamada virada educacional, mas naquela época isso não era assim, foi algo bastante radical. A mediação não iniciava com visitas guiadas, mas conosco indo a Kassel e convidando um número de aproximadamente vinte pessoa, que atuavam e faziam coisas realmente interessantes na cidade, para sentar conosco e formar um comitê local. Esse comitê se reuniu mensalmente por um período de dois anos para discutir os três Leitmotivs da documenta. Isso também serviu ao nosso próprio aprendizado, sobre nós mesmos, e das pessoas sobre nós, os artistas e os conceitos. Essa era uma possibilidade de comum de auto-educação e nós também aprendemos muito sobre Kassel, coisas que não estavam na história oficial. Aprendemos muitas coisas que influenciaram nossas decisões e escolhas, como, por exemplo, onde exibir ou não e como realizar a exposição no interior da cidade. Isso foi um dos primeiros passos, mesmo antes dos educadores serem convidados. Por isso eles disseram que não se consideravam como prestadores de um serviço, mas que a eles foi oferecido um modo de desenvolver os seus próprios programas, e até mesmo para convidar seus próprios públicos. Em alguns casos tinha até mesmo uma verba para quem dissesse que iria trabalho com um grupo de mulheres turcas e gostaria de pagar pelo ônibus para trazê-las. Essas eram escolhas individuais dos educadores. Tínhamos algo que muitas pessoas desconhecem ou nem mesmo imaginam, como setenta ônibus escolares de jovens que vieram durante todo o ano para fazer oficinas semanais, de forma regular, para aprender como serem educadores. Tinham entre treze e 19 anos e realmente passaram por uma espécie de escola e aprenderam não somente sobre trabalhos artísticos mas como controlar suas vozes, como assumir um lugar de fala. A eles eram oferecidas oficinas gratuitas e nos quais eles tinham liberdade para decidir como gostariam de fazer aquilo. Eles realmente acabaram fora de qualquer controle de um adulto dizendo qual seria o resultado alcançado. De certo modo poderíamos dizer que esse foi um processo que permitiu a esses estudantes encontrar sua própria posição, a educar a si próprios.

 

Vinicius Spricigo – Vocês dois se engajaram pessoalmente na relação com o público?

 

Ruth Noack – Sim, e muito. Nós tínhamos visões muito diferentes das e sobre as estratégias de lidar com o público. Ele queria dividir o público em pessoas suficientemente interessadas ou aqueles que odiavam isso, mas eu venho de uma formação de educadora. Eu quero dar acesso às pessoas, então para mim essa era uma questão importante. Uma das coisas que eu fiz foi sentam em frente a um dos museus e qualquer um que quisesse poderia se aproximar de mim com comentários ou questões. Esses encontros se tornaram muito populares. As pessoas tinham pontos de vista tão interessantes, os quais eles realmente queriam discutir. Aquilo também me ajudou a compreender uma certa carência na exposição, coisas que eram incompreensíveis às pessoas, e que nós tentamos solucionar no estágio final da exposição acrescentando alguns textos de parede. Nós também tivemos outras formas de educação e disseminação. O projeto das revistas, que foi conduzido pelo Georg Schöllhammer de forma completamente independente. Também tivemos palestras no horário do almoço que eram gratuitas e foram organizadas por um comitê local, pelas revistas e pelos educadores conjuntamente. Uma mulher foi a todas as palestras, ou seja, assistiu a cem palestras, pois disse que era muito idosa para caminhar pela exposição mas podia participar daquela forma.

 

Vinicius Spricigo – No último dia do seminário você falou sobre educação e a impossibilidade de uma horizontalidade não hierárquica entre curadores, mediadores e público. Na sua experiência com a documenta 12 você diria que estabeleceu uma relação entre essas três esferas na qual cada uma delas tinha a sua autonomia?

 

Ruth Noack – Eu não acho que horizontalidade seja a questão. Artistas, por exemplo, realmente se dedicam a se especializar em algo, que simplesmente não pode ser alcançado por alguém que foi ver uma exposição duas ou três vezes, mesmo que esteja realmente envolvido e leia a respeito. Na verdade, acho que isso seria realmente injusto com os artistas. Eu acho que minimamente deve-se ajudar a público a lidar com o fato de que há algo que se deve se capaz de compreender e que isso não significa que você não tenha parte alguma nisso. Não se trata de controlar, de dar às pessoas o controle sobre tudo ou estar assumir uma hierarquia, porque há diferentes instâncias. Por exemplo, eu sou uma curadora e quero determinar a forma da exposição. Eu não vou permitir ao educador um direito igual na forma com a exposição vai parecer. No entanto, certamente a exposição que eu fizer será informada pela visão do educador. Eu vou levar isso em consideração. Eu não penso em nivelar a hierarquia, eu acho que se trata mais sobre a abertura para se escutar o outro, para realmente levá-lo a sério e assumir as consequências. Não somente ouvir, mas mudar a si mesmo através disso.

 

Vinicius Spricigo – Apesar da virada educacional ser superestimada, mediadores podem organizar exposições ou mesmo a coleção de museus de um ponto de vista da educação do público?

 

Ruth Noack – Um museu é algo diferente de uma exposição. A maior diferença entre eles é que o museu pode trabalhar no longo termo e ele possui um conhecimento e uma história institucional. Por outro lado, em Kassel esse conhecimento institucional não está na exposição, mas no público, o que é algo realmente interessante. É o público que se lembra e conhece pois eles viram várias documentas e podem compará-las. Não existe instituição interessada em manter isso. No que diz respeito aos museus eu acho que é realmente interessante levar os educadores a sério. Isso pode significar organizar o museu de acordo com a público e sua educação. Há muitas pessoas que estão trabalhando com isso e estão interessadas nesses assuntos. Eu acho que muito agentes da arte contemporânea agem como se esses problemas já estivessem resolvidos, mas não estão. Frequentemente as instituições estão fazendo isso de maneira muito superficial e deve-se questionar os motivos pelos quais elas estão interessadas nisso. Elas estão interessadas basicamente porque os comitês financeiros as pedem para prova o impacto que elas têm, ou que estão trabalhando para permitir acesso ao público. Não estão fazendo isso porque estão interessadas nós impactos de mudarem a si mesmas. Victoria Walsh realizou uma pesquisa juntamente com Andrew Dewdney para a Tate e eles descobriram que muitas vezes uma instituição como essa está com demandas completamente conflituosas. Os curadores estão somente lidando com os trabalhos artísticos que são realmente valiosos, por isso devem cuidar deles, enquanto os educadores devem dar acesso, e essas duas demandas, ao menos na Tate, são estruturalmente contraditórias. Se um museu está realmente interessado nisso ele precisa fazer algumas mudanças estruturais. Eu diria que isso não pode ser feito de uma vez, é um processo de longo prazo.


Periódico Permanente é a revista digital trimestral do Fórum Permanente. Seus seis primeiros números serão realizados com recursos do Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010, gerido pela Funarte.

 

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