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PÚBLICO DA ARTE,

por Thais Rivitti

Segunda-feira, a casa de shows "Tropical" na rua Butantã, próxima ao largo da Batata, em São Paulo, apinha-se de gente. Hoje tocarão os grupos Calypso e Calcinha Preta. Para quem nunca ouviu falar, são dois conjuntos musicais; o Calypso toca o ritmo que dá nome à banda, é do Pará e tem como principal atração uma mulher de longos cabelos loiros que troca de roupa em todas as músicas, canta e dança freneticamente. O Calcinha Preta é baiano e toca forró, tendo, entre outros músicos, dois irmãos gêmeos que causam furor nas mocinhas da platéia. Ainda há muita gente dançando quando, às 4 horas da manhã, deixo o local (e as apresentações não haviam acabado: "O povo briga se os grupos tocam menos de duas horas", esclareceu-me uma amiga). Quem era o povo? Na maioria, pessoas de diversos lugares do nordeste do Brasil: pernambucanos, baianos, cearenses. Não perguntei, mas tenho quase certeza de que ninguém ali sabia que na mesma noite abria uma exposição de arte.

Pode-se supor que não muito distante dali, numa galeria qualquer em São Paulo, um artista inaugura sua exposição. Um programa gratuito (em tese, aberto a todos, mas na prática apenas para habitués), com bebida e canapés inclusos. O show custava R$ 10 e cada cerveja não menos que R$ 2. Este artista fictício, vamos supor novamente, já tinha um certo nome, era até bem conhecido. A abertura foi um sucesso. Muita gente? Bom, o pessoal de sempre: galeristas, artistas, críticos, produtores de eventos, jornalistas, assessores de imprensa e mais uns dois ou três transeuntes que resolveram entrar para ver o que estava acontecendo. Inevitável constatar aqui uma incrível coincidência do público com os profissionais de arte. Para além deles, só há os dois ou três tradicionais desavisados.

O que separa os freqüentadores de um e outro programa? Se pensarmos no que os faz sair de casa, acredito que as diferenças não sejam muitas: encontrar amigos, com um pouco de sorte fazer contatos profissionais, estar por dentro do que o pessoal está vendo ou ouvindo, comentar aquilo que foi ver. No entanto, poderíamos dizer que as pessoas da casa de shows foram, grosso modo, atrás de entretenimento, e aquelas da galeria atrás de cultura. A oposição cultura e entretenimento -isso fica nítido aqui- se dá por um julgamento do produto cultural consumido.

Ao aceitarmos a divisão entre entretenimento e cultura, somos forçados a escolher um lado, definindo no mesmo instante também nossos interlocutores e nosso raio de ação. No caso de optarmos pela “cultura”, acreditando que assim nos manteríamos mais distantes das acachapantes leis do mercado que regem o mundo do entretenimento, nos vemos às voltas com a constatação de que todo o público a que temos acesso, no maior alcance possível de nossas ações, esbarra nas pessoas que participam ativamente do mercado da arte. Conseqüentemente, estamos impossibilitados de ampliar o público sem ampliar o mercado. E lá vamos nós pensar em estratégias de vendas.

Creio que neste ponto há duas ressalvas importantes a fazer para que não haja confusão. A primeira é que não acredito ser possível pensar em "público" sem pensar, em alguma medida, em consumo. Não só na arte como em qualquer outro campo.... O que procuro ressaltar aqui é que no universo das artes plásticas o público não é apenas consumidor (de publicações, de reproduções e, em número bem menor, de obras), mas é da própria arte que ele tira seu sustento, o que torna as relações aqui ainda mais circulares e fechadas.

A segunda é que, ao sugerir o fim da dicotomia entre os conceitos de entretenimento e cultura, eu não estou equiparando a qualidade dos produtos oferecidos. Não estou afirmando que o show do Calypso é melhor, pior ou igual à exposição do nosso artista fictício. Na verdade tanto faz, pois o critério que eu proponho para qualificar alguém como público potencial é o da disponibilidade para arte, que pode ocorrer tanto num grupo quanto em outro.

Mas vamos abrir um pouco esta discussão, para não ficarmos tentados a achar que a culpa da elitização do público da arte recai apenas sobre o/a marchand que não faz seu marketing dirigido para os públicos C e D. Aqui me parece importante mencionar, mesmo que sem aprofundar, que este problema do engessamento do público da arte não é um problema novo. Do ponto de vista da História da Arte, o processo de depuração formal da arte moderna contribuiu para o afastamento do público. Quanto mais os artistas elaboravam problemáticas próprias ao seu meio, menos gente se julgava apta a entendê-los. A arte tornava-se aos poucos coisa para iniciados.

No Brasil, o sentimento de incompreensão do público ganhou força pela notória carência de uma atividade crítica sistemática, capaz de atualizar o que estava se passando por meio de textos e intervenções públicas, como pela ausência de instituições fortes capazes de mobilizar a opinião pública pela falta de educação artística consistente nas escolas, entre inúmeros outros fatores.

Por outro lado, hoje parece haver como nunca uma intenção marcada por parte de artistas em interferir no próprio cotidiano, alargando e até rompendo os limites entre vida e arte. Não cabe aqui julgar caso a caso - há inúmeros artistas que tentam, cada um a seu modo, com ou sem sucesso, uma aproximação maior com o público. O que talvez seja mais importante é que eles entendem por público não apenas aquelas pessoas que já freqüentam o circuito da arte. Artistas que pensam seus trabalhos como uma experiência qualitativamente diferente, mas ao alcance de todos aqueles que demonstrem interesse em vivenciá-las. Nesse sentido, faz parte da estratégia discutir coisas como os locais de exposição de seus trabalhos. O investimento em exposições em lugares com seguranças olhando feio, em que se precise tocar a campainha e passar pelo crivo da galerista para poder entrar não facilita a interação. Agora, pensar que apenas a ação de deslocar o trabalho para as ruas (ou no espaço público em geral) é suficiente para mobilizar as pessoas é uma ilusão.

Mais importante que levantar todos os tipos de questões que surgem ao se tentar implodir o restrito mundo das artes é ressaltar que o problema do público, ou melhor, da falta dele, terá que ser enfrentado por todos: artistas e coletivos, críticos, teóricos, professores e mesmo aqui, nesta revista que tenta articular conteúdos do incipiente debate artístico dando-lhes uma maior amplitude. Mas precisamos tomar cuidado ao fazê-lo, pois um passo na direção errada pode fazer com que adentremos o mundo da arte e fiquemos mais distantes de seu público potencial.

 

Thais Rivitti