Você está aqui: Página Inicial / Rede / Revista Número / numero Cinco / A ORDEM É DEMOCRATIZAR

A ORDEM É DEMOCRATIZAR

A ordem é democratizar

por Thaisa Palhares

Acesso é a palavra de ordem do governo federal no que concerne às ações que constituem uma política cultural nacional para artes visuais. Em discurso do Ministro da Cultura Gilberto Gil em maio deste ano, por ocasião do lançamento do “Plano de Democratização da Arte Contemporânea” na Fundação Bienal de São Paulo, esboçou-se o que parece ser o programa governamental definitivo neste âmbito. O documento diagnostica um “crescente distanciamento” do “povo pobre” daquilo que “oficialmente se classifica como arte”[1]. Segundo a posição oficial, na origem desta situação encontram-se dois movimentos: por um lado, a “arte institucionalizada tornou-se privilégio de segmentos mais favorecidos da sociedade, que dominam seus códigos interpretativos e o acesso a galerias, museus, sites e livros”; por outro, a causa está na própria arte contemporânea – ou “a arte que se expõe numa Bienal”, como exemplifica o ministro – que muitas vezes “está distante do dia-a-dia do povo brasileiro”, pois se sustenta “em paradigmas internacionais, sem vínculos com a cultura do país”.

Diante deste panorama, o MinC se coloca o “desafio complexo” de “democratizar o acesso à arte contemporânea”, conclamando todas as instituições culturais públicas e privadas, os gestores da cultura e os artistas brasileiros a fazerem o mesmo. Para superar a difícil tarefa de “democratização”, propõe um conjunto de quatro ações-guia: a) ações educativas que promovam a formação para e pela arte; b) programas direcionados ao segmento jovem, como meio de minimizar a exclusão econômica e social que o atinge; c) ações de cidadania, direcionadas (novamente) ao “acesso dos mais diversos segmentos da sociedade” à “arte institucionalizada” e criando oportunidades a partir do contato com a arte; d) valorização por parte de instituições e artistas “dos códigos brasileiros de expressão artística (...) representando mais efetivamente a nossa cultura e se comunicando de maneira mais direta com a população”.

Ninguém nega que há no Brasil um problema de “acesso às manifestações artísticas legítimas”, como coloca o governo, cuja fruição é ainda restrita a uma parcela pequena da população. Mas a forma como o ministro constrói o panorama da arte contemporânea, indicando um problema a ser resolvido, e o caminho para as soluções, é simplista e desinformada, para dizer o mínimo. Em momento algum tenta entender o por quê do contato com as artes visuais ainda ser um distintivo de classe social entre nós. No fim das contas, o discurso proferido acaba reproduzindo a idéia bastante conservadora do senso comum de que o desinteresse geral pelas artes plásticas deve-se aos artistas e suas obras “incompreensíveis”, ou a uma determinação (diga-se de passagem, nebulosa) de classe social.

Como se pode notar, a resposta ao desafio segue duas frentes gerais. As ações a, b,c trilham o caminho da educação em sentido amplo. Contudo, vale dizer que a discussão sobre a educação e programas de inclusão cultural de segmentos mais amplos da sociedade não é nova e já vem sendo desenvolvida há um bom tempo por serviços educativos de museus (de forma autônoma ou em parcerias) e institutos culturais por todo Brasil. Provavelmente, os setores educativos são os departamentos que tiveram maior crescimento nos últimos anos dentro das instituições e centros culturais. Nas grandes capitais, os museus e afins já implementaram programas de reciclagem de professores, com confecção de material de apoio para uso em sala de aula, cursos livres de história da arte, serviços de monitoria, material de pesquisa para alunos do ensino básico e médio etc. Se não há programas mais abrangentes é por falta de estrutura (espaço e recursos humanos) e dinheiro, mas não por uma falta de reconhecimento do valor e direito à formação, universal e democrática, em artes visuais desde o ensino básico. O ministro parece desconhecer essas experiências, e por isso acredita que apenas com elas poderíamos “democratizar o acesso”.

A segunda frente, mais problemática, pede aos envolvidos com a produção e difusão da arte contemporânea uma maior atenção aos “códigos culturais brasileiros”. Neste sentido, cabe aos artistas a tarefa de, em suas obras ou por meio delas, realizarem um contato mais direto com a cultura brasileira. Em primeiro lugar, salta aos olhos nesta proposta o quanto tal exigência tem de retrógrada e perigosa, ecoando um discurso sobre o caráter popular-nacional como elemento de qualificação da arte brasileira que os historiadores e críticos mais conseqüentes vêm questionando desde meados dos anos 70. Mas supondo que o argumento fosse válido, o que explicaria o desconhecimento ou distanciamento de grande parte da população de grandes artistas cujas obras se nutrem dos tais “códigos brasileiros de expressão” como, por exemplo, Tarsila do Amaral, Alfredo Volpi ou Hélio Oiticica?

O ciclo da democratização

Qualquer pessoa que de alguma forma trabalhe com artes visuais no Brasil, tirando do meio seu sustento financeiro e intelectual, sabe que a questão do “acesso” é muito mais ampla do que a visão do governo faz supor. O documento até considera que esta se desdobra em partes diversas, ao mencionar os variados modos de acesso: econômico, intelectual, de produção e fruição. Mas ao mesmo tempo, como tentativa de simplificar e dar uma resposta imediatista ao problema, afirma que somente os segmentos econômicos menos desfavorecidos da sociedade estão distantes da arte contemporânea, elegendo essas classes como meta de sua ação. Como se artistas e pesquisadores (alguns oriundos de tais classes), vivessem no melhor dos mundos possíveis...

Para dar uma breve idéia da complexidade da situação, vamos imaginar o caso hipotético de um menino, aluno da rede pública e morador da periferia, bem ao gosto do populismo em voga. Em 2004 ele participa do tal “Plano de Democratização da Arte Contemporânea” traçado pela Fundação Bienal de São Paulo, em plena sintonia com o MinC (o que, supõe-se, tem algo a ver com o fato de Brasília arcar com quase 70% do orçamento da mostra). Visita gratuitamente a exposição, participa de palestras e atividades sobre arte contemporânea e ainda desfruta do serviço de monitoria. Encantado, após esse primeiro momento de aproximação à arte, decide se tornar artista ou pesquisador da arte brasileira. Considerando que ele não tenha de trabalhar e ainda esteja na escola, procura cursos livres para começar a se introduzir nas linguagens artísticas. Neste momento, descobre que existe uma enorme escassez na área. São poucos os lugares que oferecem cursos de qualidade, principalmente gratuitos, com embasamento histórico, seja ligado efetivamente à “cultura brasileira” ou internacional, e infra-estrutura para que possa experimentar os diversos meios, como pintura, gravura, fotografia, vídeo, entre outros.

A esperança se volta para o ensino superior. Imaginando que nosso artista consiga passar nas provas (legítimas) de aptidão e conhecimentos específicos, em alguns dos pouquíssimos vestibulares em artes plásticas, não encontrará um quadro mais animador nas faculdades, que em geral sofrem de falta de espaço e material para produção e pesquisa. Sem contar a falta de professores.

Se o futuro artista escolhe o caminho autodidata, a questão da acessibilidade não é melhor. Reconhecendo que o contato direto com as obras é a melhor escola, nosso candidato à artista brasileiro busca formar-se nas salas dos museus. Neste momento, descobre que não há no Brasil, nem no privilegiado eixo Rio-São Paulo, uma instituição que possua um acervo amplo e, com salas significativas, que apresentem um panorama completo dos principais artistas da arte brasileira.

Se em sua trajetória opta por ser historiador ou pesquisador, nosso amigo encontra estas e outras dificuldades, sendo que a mais grave é a inexistência, no Brasil, de um curso de graduação em História da Arte. A esta se somam outros problemas de acesso, como material de pesquisa (mesmo as bibliotecas universitárias são desatualizadas), informação (não há uma publicação mensal especializada em artes visuais no país), obras (são pouquíssimos os artistas brasileiros que tem sua produção catalogada), bolsas, cursos de especialização etc etc etc.

Mesmo assim, sem material ou recursos técnicos para poder experimentar, nosso artista se destaca e é convidado a participar de uma exposição (quem sabe a Bienal!). Então ele descobre que ao ser convidado recebe ajuda para realizar sua obra (gastos com material e mão de obra), mas raramente pagamento direto por ele. Afinal, trata-se de um “gênio”, e seu trabalho não pode ser remunerado como o de qualquer mortal. Assim como seu amigo pesquisador, nosso artista também necessita sobreviver de atividades paralelas, fazendo da arte sua ocupação democrática das “horas vagas”. Sem contar o preconceito que terá de vencer na própria sociedade, que em geral não vê a opção pela carreira artística com bons olhos (a não ser que o fulano desejasse se tornar ator da Rede Globo).

Reinvidicações: velhas conhecidas

Nossa hipótese traz à tona aquilo que quase todo mundo já sabe: o problema de acesso a ser resolvido vai bem além de um problema econômico de classe ou segmento social (o que as ações propostas pelo ministro parecem sugerir): trata-se de uma carência estrutural que dificulta a aproximação de todos (interessados em geral, pesquisadores e artistas) ao universo das artes visuais. É óbvio que se essa não for remediada, a arte brasileira nunca vai alcançar a merecida visibilidade dentro da cultura nacional, e o processo de “democratização” não passará, novamente, de simples massificação.

Para tanto são necessárias ações contundentes, que modifiquem a estrutura como, por exemplo, incentivo a publicações, criação de centros de catalogação e pesquisa e locais propícios de experimentação para artistas, incentivo ao mercado visando sua ampliação, elaboração e gerenciamento de programas de bolsa e residência no Brasil e no exterior, criação de grandes acervos de arte nacional e estrangeira mediante programas de doação, entre outros[2].

É verdade que o governo fez algo neste sentido ao criar o Sistema Brasileiro de Museus[3]. Mas de um ponto de vista mais amplo, parece que nos últimos 15 anos o MinC preferiu abdicar de qualquer política mais ativa no âmbito das artes visuais, mantendo uma política cultural fortemente embasada nas leis de incentivo fiscal à cultura. As parcerias por busca de recursos alternativos ainda não se efetivaram. E conhecendo qual é o grande desafio do governo, é de perguntar para onde iriam caso se efetivassem. O Centro de Artes Visuais da Funarte (CEAV), órgão federal responsável por propor e implementar uma política cultural nacional para artes visuais, que destruído pelo governo Collor, foi abandonado na gestão FHC que abdicou de impostos para consolidar institutos culturais de banqueiros, traz em seu site[4] informações sobre os projetos desenvolvidos nos últimos anos: esses se resumem à organização de exposições de jovens artistas no regime ultrapassado de salões, com edital e comissão julgadora, em algumas cidades brasileiras. Na página há referências a outros planos: de edições, de oficinas· (montagem de exposições, experimentação de linguagens) e da criação de uma rede nacional de artes visuais (com oficinas de arte, crítica e apoio técnico em todo o território nacional). O estatuto desses últimos projetos, no início do segundo semestre de 2004, é: “em planejamento”.

 

Taisa Helena P. Palhares



[1] O documento pode ser acessado: http://bienalsaopaulo.terra.com.br/home3.asp
[2] Conferir resultado da enquete realizada com artistas e teóricos da arte nesta edição.
[3] Comentado em artigo mais adiante.