Arte como Projeto?

Comunicações: dia 08 de agosto, 17:40h. Coordenação: Paula Braga; Auditório 1.

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Comunicações
Considerações finais

Cristiana Mazzucchelli
 

Junho de 2005

 

project (n.) c.1400, "a plan, draft, scheme," from L. projectum "something thrown forth," noun use of neuter of projectus, pp. of projicere "stretch out, throw forth," from pro- "forward" + combining form of jacere (pp. jactus) "to throw" (see jet (v.)). Meaning "scheme, proposal, mental plan" is from 1601. Meaning "group of low-rent apartment buildings" first recorded c.1958, from housing project (1932).

 

O início da década de 90 testemunhou a proliferação de práticas artísticas e culturais que privilegiam os aspectos imateriais do trabalho de arte, ao mesmo tempo em que emergia a figura do curador como aquele/a que cumpre um papel central na economia da arte contemporânea. Hoje, no começo do novo milênio, tais práticas parecem ocupar uma posição central no ‘mainstream’ da arte contemporânea, contando com a sanção de alguns dos mais importantes críticos e instituições culturais em todo o mundo. Algumas características comuns a esse tipo de práticas são a ênfase na relação entre artista e público (arte orientada pelo social), o engajamento imediato do artista com uma audiência determinada (arte como evento), a formação de coletivos artísticos e o uso de métodos ‘não-artísticos’ como um meio de resistência política. Outro fato curioso é o uso corrente do termo ‘projeto’ para designar tanto práticas artísticas como curatoriais. ‘Projeto’, no contexto da arte contemporânea, parece implicar que a prática a que se refere aproxima-se ao menos de uma das características mencionadas acima.

 

Na instância teórica, o que emerge das tentativas esparsas de curadores e críticos de sistematizar essas práticas é a variedade de termos similares que serviriam para definir este aparentemente novo modelo: arte situada (Doherty), arte relacional (Bourriaud), readymade recíprocos (Wright), paradigma do laboratório (Obrist), etc. Contudo, as reivindicações feitas pela noção de um ‘novo modelo para a sociedade em rede’ normalmente replicam idéias e conceitos que vêm circulando no contexto artístico pelo menos desde a década de 60.

 

Os curadores que promovem esse novo modelo – incluindo Maria Lind, Hans Ulrich Obrist, Barbara van der Linden, Hou Hanru e Nicolas Bourriaud – têm adotado este modus operandi de curadoria como uma reação direta ao tipo de arte produzido na década de 90: trabalhos que são abertos, interativos e que resistem à idéia de fechamento, e que normalmente assemelham-se a “trabalhos em construção” (work-in-progress) e não a objetos finalizados. Tais trabalhos parecem derivar de uma leitura errada de teorias pós-estruturalistas: ao invés das interpretações do trabalho de arte serem abertas a uma continua reavaliação, diz-se que o próprio trabalho de arte é que está em fluxo continuo. Há muitos problemas em relação a essa idéia, sendo que um deles é a dificuldade em se discernir um trabalho cuja identidade é arbitrariamente instável. Outro problema é a facilidade com que o “laboratório” se torna vendável como espaço de lazer e entretenimento. Espaços como o Baltic em Gateshead, o Kunstverein em Munique e o Palais de Tokyo em Paris, já usaram de metáforas como “laboratório”, “local de construção” e “fábrica de arte” para se diferenciar de museus atravancados pela burocracia e centrados em seus acervos. Seus espaços dedicados a projetos criam uma aura de criatividade e a idéia de que consistem na vanguarda da produção contemporânea. Pode-se argumentar que, neste contexto, os work-in-progress em forma de projeto e os artistas em residência começam a se combinar com uma “economia da experiência”, a estratégia de marketing que busca substituir bens e serviços por experiências pessoais planejadas e organizadas. Entretanto, o que exatamente se supõe que o visitante tire de tal experiência de criatividade, que é essencialmente uma atividade de estúdio institucionalizada, na maioria das vezes não fica claro.

 

É inegável que grande parte da arte produzida hoje em dia procura engajar-se nas esferas política e social. O quão eficaz ela é ou se podemos chamá-la de arte situada, relacional, etc é uma outra questão.

 

Arte Situada

 

Em 2004, a crítica e curadora britânica Claire Doherty editou o livro From Studio to Situation, cunhando o termo ‘arte situada’ para descrever um modelo contemporâneo de práticas artísticas. A arte situada, de acordo com Doherty, inclui as práticas artísticas em que a ‘situação’ ou o ‘contexto’ são normalmente o ponto de partida. O ‘contexto’, neste caso, é visto como um ímpeto, um obstáculo, uma inspiração ou um objeto de pesquisa  no processo do fazer artístico, seja especificado pelo curador ou comissariado, seja proposto pelo artista.

 

Como nota a autora, quando, em 1971, Buren afirmou que era impossível, por definição, ver um trabalho de arte em seu lugar, a crítica do estúdio como espaço primário de significação, isolado do mundo real, já era uma questão. Contudo, ela defende que a noção de site-specific de 30 anos atrás não é mais suficiente para dar conta das abordagens correntes da arte situada.

 

“Miwon Kwon sugere que hoje, como os artistas e teóricos culturais são informados por uma maior diversidade de disciplinas (incluindo a antropologia, a sociologia, a crítica literária, a psicologia, a história natural e cultural, a arquitetura e o urbanismo, a teoria política e a filosofia), também o nosso entendimento de lugar (site) mudou de uma localização física para um lugar ou uma coisa constituídos por meio de processos sociais, econômicos, culturais e políticos.” Em virtude desta nova noção de site mutável, artistas, curadores e críticos passaram a ficar insatisfeitos com a expressão site specific, criando uma gama de novos termos para descrever trabalhos de arte e projetos que lidam com a complexidade do contexto, entre eles context-specific, site-oriented, site-responsive e socially engaged.

 

Doherty busca, então, englobar todas essas diferentes terminologias dentro do que ela chama de arte situada, cujas principais características são:

 

-          Estar situado é estar deslocado (o lugar como entidade mutável e fragmentada)

-          Utilizar um novo vocabulário que tem como base o social

-          O artista como mediador que se envolve com um determinado grupo de pessoas, um processo de criação ou uma situação

 

Estética relacional

 

O crítico e curador francês Nicolas Bourriaud propõe um modelo semelhante, desta vez enfatizando a maneira como os artistas contemporâneos empregam estratégias e métodos característicos da indústria de serviços e da pós-produção em seus trabalhos. A isto ele dá o nome de estética relacional. “Qual o propósito de se usar as formas do mundo dos negócios, de se tomar relações humanas como modelo? A arte não é meramente um ramo de negócio dedicado a produção de formas; é uma atividade por meio da qual essas formas articulam um projeto. Liam Gillick, por exemplo, mistura abstrações modernistas com cenografia corporativa, reconstituindo os elos invisíveis entre a vanguarda e as transformações da economia global, entre a Sony e a vídeo arte contemporânea. Sua Negotiation Platform não é um pretexto, um objeto que produz a convivência, mas uma ferramenta cognitiva”. Para Bourriaud, este novo tipo de trabalho que emergiu na década de 90, e que inclui objetos a serem manipulados, atores e extras, gerou uma nova problemática; a da coexistência de seres humanos, objetos e formas constituindo um significado específico.

 

Logo, a participação do público é um fator chave no modelo proposto. Bourriaud cita como exemplo o trabalho do artista Rirkit Tiravanija. Partindo da idéia de que o público é, de alguma forma, uma entidade irreal dentro da economia da arte contemporânea, o interlocutor é normalmente trazido para dentro do próprio processo de produção do trabalho, por meio de uma chamada telefônica, um anúncio ou um encontro inesperado. O significado do trabalho emerge do movimento que liga os anúncios colocados pelo artista como também a colaboração entre indivíduos dentro do espaço expositivo. Baseando-se na afirmação de Karl Marx de que “a realidade não é nada menos do que o resultado do que fazemos juntos”, ele chega a conclusão de que a estética relacional integra esta realidade.

 

Bourriaud defende a idéia de que as práticas relacionais não são arte “social” ou “sociológica”. Antes, elas buscam a construção formal de entidades de tempo e espaço que possam eludir a alienação, a divisão do trabalho, a mercantilização do espaço e a coisificação da vida. Para ele, a exposição de arte constitui um interstício que às vezes reproduz e usa as próprias formas de nossa alienação.

 

Os inimigos explicitamente apontados pelos artistas importantes de nosso período são a generalização das relações fornecedor-cliente em todos os níveis da existência humana, do trabalho ao espaço doméstico, incluindo todos os contratos implícitos que determinam nossas vidas privadas. O fracasso do projeto modernista pode ser observado na mercantilização das relações humanas, na pobreza das alternativas políticas e na desvalorização do trabalho como fator no melhoramento da vida cotidiana.

 

O papel da crítica

 

Os exemplos citados são apenas uma pequena amostragem de um discurso que vem se proliferando cada vez mais no cenário da arte contemporânea internacional. No contexto brasileiro, vem-se observando nos últimos anos a proliferação dos chamados coletivos artísticos, que guardam muitas semelhanças com as estratégias de grupos e artistas internacionais.

 

O curioso é que muitos dos defensores da ‘arte situada’ (e seus equivalentes), na prática promovem artistas que se adequam perfeitamente a estrutura burocrática e controlada dos museus, instituições e galerias. Além disso, muitas de suas reivindicações fazem coro ao discurso das grandes corporações globais, que promovem a idéia de mobilidade, conectividade e a valorização da indústria imaterial de serviços em detrimento da indústria pesada. Embora muitos dos trabalhos de arte e dos discursos teóricos que acabam sendo incluídos nesta chave sejam verdadeiramente inovadores, o que ainda está por vir talvez seja uma crítica mais sistemática das práticas artísticas ditas ‘situadas’. Caso venha a ser requisito básico para a entrada de artistas e teóricos nas instituições consideradas de vanguarda, então o campo da arte contemporânea estará nada menos que replicando o modus operandi do capitalismo global.

 

Eu gostaria de fechar com uma observação feita pelo crítico britânico Paul O’Neill na conferência The Wrong Placê: Rethinking Context in Contemporary Art, que aconteceu na University of West England, em fevereiro deste ano:

 

Nos últimos dez ou quinze anos, houve uma mudança significativa da noção de práticas artísticas site-specific ou place-centered  como atividade fenomenológica que estava associada a artistas tais como Richard Serra, para uma abordagem mais efêmera do site-specific como evento, onde o local é fixo embora o seja apenas na duração do trabalho, como, por exemplo, em certos trabalhos de Mark Dion, Martha Rosler, Carey Young e Andrea Fraser. Mas há também uma noção diferente de site, associada com campos discursivos flexíveis de operações globais predominantemente móveis e coordenadas em intertexto e em localizações múltiplas, tais como em Rirkit Tiravanija, Phil Colins ou Emily Jacir. Poderíamos dizer que há um problema com esta noção de prática móvel, já que, embora ela reconheça o local ou espaço como uma constelação aberta, não fixa e permeável à contingências e mudanças, há também, propositadamente, um tipo de incerteza, de ambigüidade e de instabilidade que é colocado como progressivo. Mas será que esse modelo de prática móvel e transitória que produz um significado e uma interpretação em aberto não acaba produzindo uma espécie de prática artística itinerante e nômade, em que tanto a política quanto o local podem ser intercambiáveis e onde a maioria significativa dos artistas e dos curadores que os promovem passam mais tempo no avião do que participando em algum tipo de produção de uma troca potencialmente significativa e duradoura? Será que se trata da síndrome de Easyjet?