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Fotografia moderna e historiografia brasileira: divergência e convergência.

Comunicações: dia 08 de agosto, 18h. Coordenação: Paula Braga; Auditório 1.

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DOCUMENTAÇÃO
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Comunicações
Considerações finais


Ricardo Mendes
 

Resumo

O estatuto da fotografia como representação contemporânea: um dos aspectos possíveis para tal reflexão é apontar como parte dos “autores” da historiografia brasileira estabelecida a partir da década de 1970 definiu um olhar, um recorte, fechado sobre o contexto de análise focado numa concepção de fotografia tradicional, pouco afeito às interfaces com o campo das artes plásticas e da cultura visual de forma geral, que não fossem aquelas dadas por seus valores. E, mais ainda, um olhar pouco atento às dinâmicas profundas da cultura.

 

 

 

Com um certo desassossego

 

Qual o caminho a seguir frente ao eixo proposto – o estatuto da fotografia como representação contemporânea ? A abrangência e as abordagens prováveis parecem acompanhadas de um certo desassossego.

 

A primeira possibilidade seria discutir de forma direta seu estatuto como representação. Minha avaliação inicial é encarar este caminho como um desafio muito amplo, em especial no campo em que atuo como historiador da fotografia, procurando observar estratégias e usos muitos difusos e contrastantes, nos quais o conceito de artístico é tratado de forma amplificada e ambígua.

 

Nesse quadro, lembro que meu foco atual de trabalho tem sido a análise da constituição de uma historiografia brasileira no segmento da fotografia e as ações ideológicas em que ela (a historiografia) toma parte na construção do próprio panorama fotográfico. Um dos aspectos dessa reflexão é apontar como parte dos “autores” da historiografia brasileira estabelecida a partir da década de 1970 definiu um olhar, um recorte, fechado sobre o contexto de análise focado numa concepção de fotografia tradicional, pouco afeito às interfaces com o campo das artes plásticas e da cultura visual de forma geral, que não fossem aquelas dadas por seus valores. E, mais ainda, um olhar pouco atento às dinâmicas profundas da cultura[1].

 

Discutir o estatuto da fotografia como representação contemporânea implicaria ainda em enfrentar um aspecto crucial ausente no debate atual, que é o de uma cisão grave entre duas áreas dessa produção visual. Uma, constituída pela tradição documental que marcou a expansão da fotografia no Brasil nas décadas de 1970 e 1980, e outra, mais próxima ao campo experimental, termo que embora deslocado permite com clareza apontar para as produções situadas no campo das artes plásticas.

 

A ausência continuada de uma análise sobre as dinâmicas em que essas duas categorias de produção visual se desenvolvem parece temerária. Certamente tal debate revelaria tradições e concepções distintas, em especial sobre conceitos como arte, cultura etc, mas enfrentar agora essa seara seria um empreendimento pessoal precário.

 

Uma segunda possibilidade para uma colaboração nesta palestra seria a tentação fácil de recorrer à obra de Vilém Flusser (1920-1991), filósofo checo, radicado por 30 anos no Brasil, autor do ensaio Filosofia da caixa preta editado em 1983 na Alemanha (Für eine Philosophie der FhotograFie, European Photography), que se tornaria uma das referências importantes para o entendimento da imagem técnica na contemporaneidade[2]. No entanto, em Flusser talvez fosse menos significativo nesse momento recorrer àquela obra, mas sim a um conjunto expressivo de sua produção dedicada à análise fenomenológica dos gestos e dos objetos, aspectos complementares no cotidiano humano. Em especial pelo quadro atual em que nunca tantos objetos distintos atuaram como captadores, manipuladores e difusores de imagem. Em tal condição nova, a questão da reinstauração da aura parece amplificada, mixada na dúbia fronteira da imagem e seu estatuto representacional.

 

Mas o desassossego inicial permanecia. Assim, decidi manter-me no campo de minha reflexão atual sobre a produção historiográfica brasileira, em especial nas décadas de 1970 e 1980. Resolvi olhar um pouco para trás e destacar o tema da inserção e difusão da Fotografia Moderna no Brasil. Acredito que esse breve relato permita colaborar de forma oblíqua (como inspiração) na compreensão da presença contemporânea da fotografia e a necessidade de pensar intensivamente o campo de produção da crítica e da historiografia como processos de intervenção ideológica.

 

 

Qual fotografia moderna?

 

A ocorrência da fotografia moderna no Brasil a partir da década de 1940 não se realizou de forma programática. Teve como origem diversas ações motivadas em parte por alterações que revelam mudanças de perfil das novas gerações de produtores e agentes ou novas dinâmicas decorrentes da presença de profissionais migrados, e também pela alteração dos pólos de influência progressivamente deslocados da Europa para os Estados Unidos.

 

A concepção de fotografia moderna entre nós é quando muito reativa. Assim uma “nova fotografia” opõe-se a uma “velha fotografia”, esta identificada por traços como a marca pictorialista. Esse aspecto é interessante, pois a historiografia que vai se desenvolver posteriormente praticamente ignora a produção fotopictorialista ocorrida no Brasil com grande força entre 1900 e 1920.

 

O panorama da fotografia moderna assim estabelecido na década de 1940 permitirá a convivência de uma tradição da captação direta em contraste com uma prática menor, mas presente, de intervenção no negativo e nas cópias. Na primeira vertente são usuais as menções recorrentes aos fotógrafos norte-americanos associados a Farm Security Administration entre outros, mas também a Cartier-Bresson e outros profissionais europeus, referências estas estabelecidas progressivamente de forma triangular via EUA.

 

Para a historiografia em emergência na década de 1970 tanto o primeiro aspecto referente à produção pictorialista quanto o segundo sobre essa dualidade de práticas da fotografia moderna após a década de 1940 não foram reconhecidos como temas relevantes.

 

Uma explicação para isso pode estar no fato que tais aspectos rompiam o foco documental ao redor do qual aquela historiografia era construída por uma geração marcada por grande presença de agentes culturais vindos do fotojornalismo e do ensaio social. Então, o pano de fundo para uma geração que procurava a inserção da fotografia no campo cultural, seu reconhecimento como objeto cultural, era a construção de uma identidade nacional. Nessa ação a identificação com os documentaristas do século XIX permitia estabelecer uma grande tradição a que essa geração se filiaria.

 

Uma recuperação da história da fotografia moderna no Brasil começa a ter lugar apenas mais de uma década depois. Paulo Herkenhoff enfocaria em parte o tema em seu artigo para a coletânea Sete ensaios sobre o modernismo, editada pela Funarte em 1983: “Fotografia, o automático e o longo processo de modernização”. Mas seria o livro de Renato Rodrigues e Helouise Costa – A fotografia moderna no Brasil, lançado em 1996 pela Funarte e UFRJ, a primeira abordagem mais expressiva sobre o tema, a partir de um projeto financiado pela Funarte em meados da década de 1980.

 

A redescoberta daquela produção ocorria de forma tardia; um pouco diferente do acontecido em Portugal por exemplo, que retoma o tema progressivamente desde 1977 com a mostra A fotografia na arte moderna portuguesa, realizada no Porto, na qual participa Fernando Lemos (1926), artista português radicado no Brasil desde os anos 50.

 

Em resumo, o contexto de ação da fotografia moderna no Brasil na década de 1950 tinha como fundo a crescente presença (e valorização) do fotojornalismo, que refletia uma produção documental identificada com a geração de uma imagem nacional (com todas as implicações politico-sociais do contexto em que se realizava). Por outro, sua discussão se restringia a círculos de alcance restrito como o Foto Cine Clube Bandeirante, em São Paulo, por exemplo.

 

Nesse aspecto, é relevante mencionar uma crítica possível ao livro de Helouise Costa e Renato Rodrigues, no fato de seus autores identificarem a produção visual de um segmento de participantes daquele fotoclube, com destaque para o conhecido como “Escola Paulista”, com a Fotografia Moderna em si. Talvez seja esse o único ponto falho daquele trabalho, cujas excelentes prospecção e recuperação de fotos dispersas são acompanhadas de uma análise crítica dos principais autores, procedimentos poucos usuais na pesquisa brasileira nesse setor até o início da década de 1990.

 

Além disso, está ausente do trabalho uma observação mais extensiva sobre a recepção daquela produção em circuitos maiores. Note-se por exemplo a pouca resposta obtida (junto aos fotógrafos, bem entendido) pela revista Habitat, editada por Pietro Bardi e Lina Bo, a partir de 1950, no seu esforço pelo reconhecimento da fotografia, tema regular de artigos de Bardi, mas quase sempre com a presença restrita dos seus próprios trabalhos (ou sob sua orientação) e o de raros colaboradores.

 

A elaboração da memória

 

Durante os anos 1960 e 1970 um novo quadro de profissionais e agentes culturais começaram a gestar a fotografia brasileira que hoje conhecemos, como comentado anteriormente. Esse projeto informal, partilhado por uma geração, poderia ser caracterizado por vários aspectos como a reivindicação de novas condições de trabalho, de reconhecimento da autoria, da busca do mercado de arte, da regulamentação profissional.

 

Desse esforço, surgiram tanto iniciativas como galerias especializadas ou movimentos como o da Photo Galeria, no Rio e em São Paulo na década de 1970, bem como ações governamentais únicas como o Núcleo de Fotografia da Funarte e depois, seu desdobramento, o InFoto na década de 1980. É possível dizer que, além das novas condições profissionais, era proposto de forma difusa, mas permanentemente um projeto de reconhecimento da fotografia como objeto de cultura.

 

E esse processo de reconhecimento era marcado por dois aspectos: primeiro o gesto integrativo, procurando aproximar as mais diversas aplicações da fotografia, do fotojornalismo à publicidade, e, segundo, a associação da fotografia como instrumento de elaboração da identidade nacional.

 

Note-se que no primeiro aspecto (o integrativo), apenas a produção fotoclubistica parece estar ausente, praticamente auto-excluída, reflexo de sua perda de status e de centralidade como espaço de debate tão importante na década de 1950. No segundo aspecto, que mais nos interessa agora, a valorização documental e os desejos geracionais em seu gesto engajado de atuar na construção do nacional no período da ditadura parecem ter refletido no próprio projeto de constituição de uma historiografia.

 

Até a década de 1980 será um grande tema a recuperação da produção visual documental do século XIX através das primeiras abordagens panorâmicas e, logo depois, projetos de constituição de repertórios temáticos e autorais. Ficaram ausentes por longo período as análises da fotografia como linguagem e como representação social, apenas retomadas nos últimos dez anos já numa nova condição de pesquisa marcada pela nascente produção acadêmica nesse campo nos segmentos mais diversos.

 

O projeto historiográfico até a década de 1980 parece voltado para um olhar distante dirigido para a construção de um passado remoto e na valorização do épico. Em complementação, a ausência de uma produção historiográfica interessada na fotografia como linguagem e como representação manteve em segundo plano temas expressivos como a inserção da fotografia no campo da cultura (tanto no século XIX como no seguinte). Em verdade, na busca de reconhecimento optou-se por um olhar voltado pela busca de uma “autonomia”, gesto que cortou os poucos laços existentes com a produção visual no sentido mais amplo e, mais ainda com a produção cultural, em especial, o campo da literatura, um dos vetores centrais da produção cultural brasileira até o início do século XX.

 

As relações entre arte e fotografia (ou cultura e fotografia, se preferirem) mesmo num passado recente estiveram sujeitas a essa obstrução ideológica. A presença da fotografia nas Bienais paulistanas, por exemplo, foi sempre colocada de forma restrita pelos próprios fotógrafos, pouco atentos à crescente ocorrência de apropriações da fotografia por artistas plásticos.

 

Uma certa corrente dominante na fotografia brasileira (entenda-se aqui os agentes culturais ativos nas décadas de 1970 e 1980) manteve-se alheia, por exemplo, às novas produções mais experimentais voltadas tanto para a arte conceitual ou a essa peculiar vertente da década de 1970 o fotoobjeto, dividido entre o utilitário e o artístico. Nesse aspecto, a fotografia como outros setores esteve sujeita ao embate causado pela dualidade arte “pura” e arte aplicada, a exemplo do design e da arquitetura, traço que parece identificar várias modalidades importantes da produção cultural contemporânea (seja com novas ou velhas mídias, para lembrar apenas da arquitetura).

 

Ainda assim algumas ocorrências relevantes no campo cultural procuraram fugir a essas dualidades. É o caso das primeiras iniciativas visando a constituição de coleções públicas. Tanto a ocorrida no MAC-USP no início da década de 1970, sem continuidade, como a realizada efetivamente pelo MAM Rio na segunda metade da década de 1980. Essa última, conforme proposta de Pedro Vasquez, tinha lugar no Departamento de Fotografia, Vídeo e Novas Tecnologias, que propunha de forma única até então o entendimento da fotografia num conjunto mais amplo de imagens técnicas, bem como a constituição de uma coleção histórica que abrangesse tanto a vertente documental como a artística.

 

Um último aspecto distintivo do panorama fotográfico das décadas de 1970 e 1980 merece ser destacado e diz respeito às dinâmicas de formação e informação diferenciadas entre os campos de fotografia e de artes visuais. Apenas nas décadas de 1990, os novos produtores e agentes desses dois segmentos puderam ter acesso a uma oferta de ensino e divulgação mais integrada, o que certamente possibitou um desenvolvimento mais adequado, que permitiria ações mais articuladas.

 

A redescoberta do moderno

 

A redescoberta da fotografia moderna no Brasil ocorre assim em nova situação. O trabalho desenvolvido por Helouise Costa e Renato Rodrigues, agora lançado em segunda edição pela Cosac Naify, encontra um contexto de debate e produção artística diferenciada.

 

Certamente parte dessa nova geração de artistas e públicos estabelecerá, a seu modo, sua história em busca de referências, de “diálogos” e oposições a obras de outras gerações. Por parte do segmento historiográfico, e também do curatorial, será necessário “revisitar o passado” e mapear desenvolvimentos ignorados até agora.

 

No que toca à fotografia moderna, por exemplo, é necessário tentar identificar ações que a precedem, gestos que definam alterações de rumo. Em meu texto intitulado Fotografia e modernismo: um breve ensaio sobre idéias fora de lugar, elaborado em 1996 como comentário ao livro A fotografia moderna no Brasil, disponível no site FotoPlus, alguns episódios nessa direção ocorridos no contexto paulistano são avaliados. Entre eles, (1) a produção fotopictorialista que reinvidica pela primeira vez um estatuto artístico da fotografia (desconsiderando-se aqui sua linguagem), (2) os gigantescos panoramas da década de 1910 realizados por Valério Vieira que deslocam a fotografia para o patamar do grande mural, campo até então exclusivo da pintura, e (3) as experiências gráficas realizadas na década de 1930 na revista S. Paulo, que rompem com a noção de autonomia da fotografia, incorporando-a em nova concepção visual do veículo revista.

 

Para finalizar, seria oportuno - como gesto comparativo - lembrar da produção do artista português Fernando Lemos, que migra para o Brasil no início da década de 1950. Após realizar (ainda em Portugal) por um breve período uma obra fotográfica de caráter construtivo, de inspiração surrealista em parte, Lemos logo de início consegue realizar em São Paulo e no Rio de Janeiro exposições desse conjunto. Apesar da boa receptividade naquele contexto, o artista encontra poucas condições para atuar exclusivamente como fotógrafo e desenvolverá sua carreira dividida entre uma produção pictórica de caráter pessoal e uma carreira profissional realizada entre o design gráfico e a publicidade.

 

Apesar da redescoberta de sua obra em Portugal a partir dos anos 70, tal produção fotográfica não será conhecida no Brasil antes de 2000 através de artigos na imprensa e do lançamento do livro Retratos de quem? (Instituto Camões), porém ocorrências de pouca repercussão. Apenas em 2004, a Pinacoteca do Estado, em São Paulo, realizaria a primeira mostra retrospectiva de Lemos meio século após a suas exposições da década de 50. Certamente, um gesto que procura ao mesmo tempo recompor uma trajetória, mas também iniciar uma interlocução em novo contexto.

 

O processo de recuperação de uma vertente moderna da fotografia ocorre em Portugal com precedência em relação ao Brasil. Identifica aparentemente um nome – Lemos – e uma produção pontual (no tempo e no espaço) ao redor da qual passa a articular-se um procedimento construtivo de um conceito historiográfico. Comparar esses processos (não só neste caso, mas em atenção a outros possíveis no contexto latinoamericano), poderia estabelecer uma linha investigativa oportuna para investigar a dinâmica da constituição de determinadas produções artísticas pelas gerações posteriores.

 



[1]     Sobre o tema veja o artigo do autor: Once upon a time: uma história da História da Fotografia brasileira. Anais do Museu Paulista, Museu Paulista-USP, Nova Série, (6/7): 183-205, 1998-1999 (lançado em 01.2004).

[2]      Parte de sua obra foi tema do meu projeto de mestrado Vilém Flusser: uma história dos diabos, apresentado em 2001 na ECA-USP (CBD, Ação Cultural) sob orientação do prof.Dr. Martin Grossman.