documenta: exposição para uma época de crises?

Gabriel Zacarias

Editorial Expediente SumárioRecomendações editoriaisDicas para redação dos relatos criticosEdição AtualEdições AnterioresSobre

Periódico Permanente, v. 9, n. 8, 2020.

 

Gabriel Zacarias é professor de História da Arte da Universidade Estadual de Campinas. Foi pesquisador convidado da Universidade de Yale (2020) e bolsista do programa Erasmus Mundus, da União Europeia (2009-2014). Realizou pesquisa sobre a documenta de Kassel com financiamento da Fapesp.

 

 

A ideia de que o findar da Guerra Fria anunciava o tão esperado “fim da história”, com a unificação do globo sob os auspícios de uma única potência, durou pouco. Muito mais disseminada se tornou a percepção de que vivemos em uma época de crise, ou melhor, de crises – as quais se manifestam alternadamente de modo mais agudo em diferentes âmbitos, por vezes como crise ambiental, outras vezes como crise econômica ou política. Que o capitalismo leve cada vez mais ao extremo as contradições que engendra parece fato pouco questionável, sobremodo após a sua fase de quarentena mundial, na qual a unificação econômica do globo acarretou uma crise pandêmica planetária sem precedentes[1]. Mas a sensação de que vivemos em uma época de crise não data de agora, e pode ser entendida como uma característica dos dois primeiros decênios do século XXI. O fim da prometida “pax aeterna” do pós-Guerra Fria se anunciou já no primeiro ano do século, quando os ataques de 11 de setembro de 2001 abriram o caminho para a “Guerra ao Terror” de George W. Bush, que teria por consequência a desestabilização geopolítica do Oriente Médio, levando, no decênio seguinte, à migração massiva de refugiados para a Europa. Ao lado disso, a economia neoliberal demonstraria toda sua fragilidade na crise financeira de 2008, e as insatisfações populares com a ordem vigente se manifestariam tanto através de movimentos sociais de contestação (Occupy Wall Street e similares), quanto por meio do voto populista, bem captado pela extrema-direita em ascensão. O leitor pode estar se perguntando qual relação guarda essa apreciação conjuntural com o suposto objeto dessa publicação: a documenta de Kassel? A resposta é simples. Acredito que a documenta de Kassel, hoje comumente referida como a mais importante exposição de arte contemporânea no mundo, conseguiu assegurar sua preeminência no cenário artístico das mega-exposições globais justamente por ter moldado uma identidade vinculada à percepção do presente como uma época de crise. Essa foi a conclusão a que cheguei após realizar pesquisa financiada pela Fapesp, na qual me debrucei sobre as documentas do século XXI[2]. Parti incialmente de duas premissas: 1) no período da arte global, a necessidade de proferir um discurso sobre o presente (em suas dimensões sociais e políticas, mais do que estéticas) tornou-se componente fundamental de legitimação das mega-exposições; 2) o contexto político no qual se inserem as exposições do século XXI é aquele da Guerra ao Terror e de seus desdobramentos, isto é, do contexto do pós-11 de setembro entendido como fissura na ordem da globalização, tanto em seu plano geopolítico quanto em sua conformação ideológica. Assim, propus estudar as quatro edições da documenta de Kassel que ocorreram entre 2002 e 2017, no intuito de compreender como uma exposição tão central reagiu a essa conjuntura e como trabalhou a necessidade de representar seu momento, tanto na seleção de obras e artistas, quanto nas propostas curatoriais e correlatas produções discursivas. A pesquisa tornou visível algo que não me estava dado de antemão, ao menos não conscientemente, mas que referendou a escolha do objeto como particularmente acertado para o tratamento do problema. A documenta de Kassel se destaca, em relação a outras exposições de porte e formato semelhantes, por ter reconfigurado sua identidade em resposta direta à essa percepção de uma crise difusa. Isso se deu através de um salto sobre sua própria história, que passou a ser recontada a cada exposição, criando o mito de uma exposição nascida de uma época de crise – e por isso, afeita mais do que outras a tratar da contemporaneidade. Nas linhas a seguir apresentarei de modo bastante suscinto como se deu esse movimento.

Quatro edições da documenta de Kassel foram realizadas entre 2002 e 2017 (e uma nova edição deve ocorrer no próximo ano). A primeira delas, a documenta11, marca um ponto de viragem. Prepara-se ainda em meio a abertura do ‘global turn’, momento de certo triunfo do discurso pós-colonial, que ressoa, por vezes com euforia, nas grandes exposições. Dirigida por Okwui Enwezor, foi muito comentada à época, tanto por ter sido a primeira edição encabeçada por um curador negro e não-europeu, quanto por ter sido a primeira a propor um molde descentralizado. Com pretensões políticas e epistemológicas, a exposição foi pensada em 5 “plataformas”: quatro séries de debates sobre temas diversos em quatro continentes diferentes, culminando finalmente na exposição em Kassel (designada como a quinta plataforma)[3]. Foi entre esses dois momentos (o início das plataformas em 2001 e a exposição em Kassel em 2002) que aconteceram os ataques de 11 de setembro, aprofundando a sensação de uma ordem global em crise, e trazendo a possibilidade de novos conflitos militares. O catálogo da exposição responde a esse momento de ruptura, percebido como traumático[4]. Inicia-se por uma colagem de imagens foto-jornalísticas que figuram os protestos antiglobalização (lembremos que 2001 é também o ano do assassinato do ativista Carlo Giuliani nos protestos contra a reunião do G8 em Genova), conflitos na África e no Oriente Médio, e os atentados de 11 de setembro[5]. Destaca-se o liame que une globalidade e crise. Além disso, a colagem de imagens é também sintomática do efeito traumático dos acontecimentos recentes, manifestando dificuldade em dar uma elaboração discursiva ao aparente estado de instabilidade, que pode figurar apenas como justaposição.

Cinco anos depois, a documenta 12, dirigida por Roger Buergel e Ruth Noack, afasta-se parcialmente das pretensões epistemológicas e políticas da documenta11, retomando noções de forma artística e de experiência estética. A ideia de globalidade é reelaborada como “migrações das formas”, e a percepção do presente como instável se anuncia na referência ao pensamento de Giorgio Agamben, teórico do Estado de exceção, particularmente evidente em um dos eixos da exposição, intitulado com o conceito de “vida nua” do filosofo italiano. Menos evidente, mas mais relevante para o problema que queremos salientar, foi a virada operada por seu diretor, Roger Buergel, em direção ao passado da documenta. Encontramos esse movimento explicitado no texto ‘Der Urspung’, ou ‘A origem’, que Buergel escreveu primeiramente para o catálogo da exposição 50 Jahre/years documenta archiv in motion, que ocorreu no Museu Fridericianum em 2005, e que republicou em seguida como texto de abertura da documenta Magazine[6] (publicação criada para a exposição). Ali vemos como Buergel recupera o passado da documenta e sobretudo a experiência expográfica de seu fundador, Arnold Bode, a qual busca ressignificar em proximidade com seus próprios pressupostos. A comumente comentada cenografia ou encenação (Inszenierung) tão características das documentas dirigidas por Bode são apresentadas, de modo bastante anacrônico, como experimentações autorreflexivas da exposição como meio, e intentos de constituir campos de experiência e partilhamento estético. Na verdade, Buergel projeta sobre Bode as concepções que informam sua própria prática curatorial (marcada por noções como as de “partilha do sensível”, de Rancière, ou da “estética relacional”, de Bourriaud). Ao fazê-lo, inaugura um movimento fundamental de apropriação e ressignificação do passado da documenta. A documenta de Bode – e de Haftamnn, como formulador do discurso histórico[7] – fora uma tentativa agressiva de reinserir a arte alemã no cenário da arte moderna, após a fissura do período nazista – e isso no momento em que o triunfo do modernismo norte-americano através do expressionismo abstrato impunha recordar que, como acreditavam seus organizadores, o expressionismo era, antes de tudo, uma invenção alemã. Buergel joga de canto essa dimensão do passado da documenta, reapresentando-o como uma estética relacional avant la lettre e que almejaria reencontrar o partilhamento coletivo após a experiencia desagregadora da guerra.

Essa via será levada ao extremo por Carolyn Christov-Bakargiev na documenta seguinte. A diretora da dOCUMENTA(13) se apropria novamente do momento inaugural da documenta que ganha agora os contornos de um mito fundador. Surgida menos de uma década após o findar da Segunda Guerra, a documenta de Bode teria sido uma exposição criada para curar os traumas da guerra – aí residiria sua verdadeira função. Uma função, ademais, passível de exportação. A curadora leva então parte da exposição para o Afeganistão, território militarmente ocupado após a invasão norte-americana, propalando a potência regenerativa da arte[8]. As comparações com a documenta de Bode no pós-guerra – apenas semelhanças, as diferenças sendo deixadas de lado – são insistentemente reiteradas para legitimar a presença da exposição europeia no território ocupado pelas tropas da OTAN. Esse salto histórico é tanto mais significativo, se considerarmos a ausência patente de historicidade no discurso curatorial, que reclama pressupostos pós-humanistas para minimizar a importância das especificidades contextuais.

Quando chegamos a documenta 14, o mito fundador da documenta como exposição nascida das cinzas da guerra para curar traumas já está plenamente assente. Tanto que seu curador, Adam Szymczyk, afeito a uma postura de crítica institucional, toma por tarefa relembrar o modernismo arraigado de Bode, suas limitações ideológicas, e a função que cumprira a documenta como partícipe das disputas da Guerra Fria. Para tanto, em uma sala da Neue Galerie, expõe uma pintura gestual abstrata de autoria de Bode ao lado de uma parede coberta com reproduções de cartazes do Plano Marshall. Com isso, adota estratégia distinta de seus predecessores. Circunscreve a fundação da documenta no contexto ideológico da Guerra Fria, e reclama uma refundação da exposição no contexto global. Após o fim da Guerra Fria, escreve Szymczyk, a documenta teria assumido a função de “consciência” do mundo da arte contemporânea, “cada edição da documenta refletindo, testemunhando e comentando seu tempo”.[9] Em outras palavras, Szymczyk  desestabiliza o mito fundador e se afasta de sua carga ideológica, mas o faz justamente no intuito de salvaguardar a legitimidade da documenta como comentadora privilegiada de uma época de crises[10].

Contudo, o gesto de Szymczyk não deixa de ser problemático para a instituição. A importância do mito fundador para a legitimação da documenta como “mais importante exposição de arte contemporânea” permanece central. Esse fato é finalmente evidenciado por nova exposição que ocupa agora a Neue Galerie e que receberá os futuros visitantes em Kassel. Intitulada ‘about documenta’ e inaugurada em 2019, a exposição apresenta de maneira bastante convencional a história da exposição, com direito a reconstituições (por vezes embaraçantes) das cenografias passadas. Na última sala da exposição encontramos o mesmo quadro de Bode apresentado na documenta 14, evidentemente sem a companhia dos cartazes do Plano Marshall. Se na documenta de Szymczyk o objetivo era demonstrar as limitações da compreensão que Bode tinha da arte – aquelas de um modernismo teleológico, excludente e eurocêntrico – aqui o objetivo é o oposto: reafirmar o modernismo como língua universal, tentando confundir universalismo e globalismo no intuito de borrar a dimensão crítica da virada global.

 



[1] Questão que abordei na reflexão coletiva com Aumercier, Homs e Jappe, traduzida no Brasil como Capitalismo em quarentena. Notas sobre a crise global (SP: Elefante, col. “CriCri”, 2020).

[2] “Arte em tempos de exceção: a documenta de Kassel na era da Guerra ao Terror”, Projeto FAPESP n. 2017/07832-2.

[3] Plataformas foram realizadas na Áustria, Índia, África do Sul e Caribe, propondo debates sobre temas como democracia, urbanização e pós-colonialismo. Cada plataforma resultou na publicação de um volume de textos.

[4] Okwui Enwezor et al (ed), Documenta11, plataforma 5: exhibition catalogue. Ostfildern-Ruit : Hatje Cantz, 2002.

[5] Para uma reflexão sobre essa parte específica do catálogo, pode-se ler: Antigoni Memou, “‘A Collage of Globalization’ in documenta11’s Exhibition Catalogue”, in: Buurman et al., Situating Global Art: Topologies, Temporalities, Trajectories, Bielefeld: trancript Verlag, 2018.

[6] Roger M. Buergel, „Der Urspung/The Origins“, in: Documenta Magazine nº1-3, 2007. Reader, edited by Georg Schöllhammer, Taschen, 2007, pp.25-39.

[7] A importância de Haftmann na construção do discurso histórico da documenta e da sua definição do cânone foi salientada por Walter Grasskamp em seu texto clássico: “For example, Documenta, or How is Art History produced?”, in: Reesa Greenberg et al, Thinking About Exhibitions, London/New York: Routledge, 1996, pp.48-56. Novas análises sobre o papel de Haftman são apresentadas em uma coletânea recente publicada pela Universidade de Kassel, na qual encontramos também um texto capital de Haftmann, “Europäische Gegenwart – Die Kunst der Nachkriegszeit”. Cf. Großpietsch e Hemken (eds), documenta 1955. Ein wissenschaftliches Lesenbuch, Kassel University Press, 2018.

[8] A documenta atuou sobretudo na cidade de Cabul, onde realizou seminários com intelectuais estrangeiros e ateliês com artistas locais. Uma exposição foi montada no Queen’s Palace, com curadoria de Andrea Viliani e Aman Mojadidi, contando com trabalhos de artistas também expostos em Kassel, como Giuseppe Penone e Francis Alÿs.

[9] Adam Szymczyk, Iterability and Otherness – Learning and Working from Athens in: The documenta 14 Reader, Hatje Cantz: 2017, p.24.

[10] A representação do presente como época de crises é bastante extensa no texto que o curador escreve para o reader da exposição, no qual sustenta a necessidade de tratar da crise europeia e de “aprender com Atenas”, como propõe o título da exposição. Ver Adam Szymczyk, Iterability and Otherness – Learning and Working from Athens, op.cit., p.25.

Periódico Permanente é a revista digital trimestral do Fórum Permanente. Seus seis primeiros números serão realizados com recursos do Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010, gerido pela Funarte.

 

Número 0

Número 1

Número 2

Número 3

Número 4

Número 5

Número 6

Número 7

Número 8

Número 9

PP 09 00CAPA3

Número 10


Edição Especial