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Ensaio crítico para 28.10.04

Ensaio crítico Referente as obras: Arquitetura da Destruição (Architektur des Untergangs) - Peter Cohen O Sonho de um Arquiteto (The Belly of an architect) - Peter Greenaway O Amor pela Arte – Pierre Bourdieu e Alain Darbel

Arquitetura da Destruição (Architektur des Untergangs) - Peter Cohen

O Sonho de um Arquiteto (The Belly of an architect) - Peter Greenaway

O Amor pela Arte – Pierre Bourdieu e Alain Darbel

 

 

Em História da Arte como História da Cidade o historiador e ensaísta Giulio Carlo Argan, no intuito de esclarecer o pensamento da cultura iluminista sobre os conhecimentos e atividades humanas declara: “O humano não é humano por ser racional e realizar, assim, um desígnio providencial, mas é racional porque é humano, sendo a racionalidade a disciplina que o homem deu intencionalmente à sua ação e seu pensamento e que realiza de tantas maneiras diversas nos diversos processos de pensamento e da ação.”1 De fato, a intencionalidade racional produz, um de seus mais significativos frutos, o poder de posicionamento crítico. Eis, portanto, o ponto central a que me dediquei a observar nas obras propostas para esse ensaio. A princípio, é possível observar a importância da questão suscitada pelo pensamento iluminista, exposta no início desse texto, com o longa  O Sonho de Um Arquiteto ou em inglês (e cujo significado é mais elucidativo ao filme) The Belly of an Architect . No enredo, Kracklite é um arquiteto americano fascinado pela revolução da gênese e da essência das formas arquitetônicas do francês Éttiene Boullée, o qual no fim do século XVIII mantinha “notórias relações com o círculo cultural da Enciclopédia, o que confirma ser a arte neoclássica originária da cultura iluminista”2. O Projeto para o Cenotáfio de Newton (c. 1780), desenho de Boullée mais conhecido é também um dos mais frisados visualmente no filme. Trata-se de um edifício em forma de esfera e, segundo Argan, “é intrínseco à esfera como forma fechada e perfeita, universo no universo, pela qual ela se coloca como fulcro em relação a um horizonte circular e infinito, ou melhor, como forma típica da razão e de sua centralidade em relação ao universo infinito”.3 Além disso, como é típico da arquitetura o projeto das formas tendo em vista a execução, a maior parte da obra de Boullée consiste em projetos, que não são fantasias nem utopias, ainda que estudados sem nenhuma possibilidade de realizá-los.

Dessa maneira, Kracklite é o meio pelo qual a questão iluminista referente à capacidade racional do homem, a qual propicia uma ação crítica, manifesta sua presença e relevância no filme. O arquiteto americano personifica a crítica à medida que louva, assim como fez Boullée, a sua capacidade de projetar. Kracklite louva sua capacidade racional de posicionamento, sua “fertilidade”, sua barriga de arquiteto. Isso é o que o mundo à sua volta não compreende: como dar relevância a um personagem (Boullée) por meio de tão grande mostra, sendo que este quase não tem projetos executados, e por isso tão pouco conhecido? Ao final, a exposição é realizada sem a direção de Kracklite e, logo, sem o devido valor que seria aferido pela presença do espírito crítico. Afastado da mostra, Kracklite se mata – já que fora descartado. Entretanto, o seria inevitavelmente morto, mesmo sem o suicídio: pois morreria por seu câncer estomacal. Associo esse tumor aos rumos preocupantes que capacidade crítica do homem está sendo destinada. Não há lugar, senão na arte, onde se possa exercitar mais plenamente o posicionamento crítico, o entendimento, a contestação. E mesmo a arte, está sendo submetida a uma pressão para adquirir propósitos comerciais, pois só assim pode ser reificada pela instância pública. É o que se observa cada vez mais, con o fenômeno da Arte-espetáculo, no qual os museus públicos ficam cada vez mais amigos do mercado.

Em O Amor pela Arte, Pierre Bourdieu e Alain Darbel dedicam-se a analisar a freqüência e a qualidade das visitas de determinadas populações (no caso, todas européias) aos museus de arte. Esta questão está intríncecamente ligada com as questões levantadas pelo filme O sonho de um Arquiteto, já que se trata de avaliar a capacidade e as condições dessas populações de reagir perante a obra de arte.

Ao longo do livro, Bourdieu e Darbel estão em constante posição de ataque perante a afirmação mitificadora da existência dos “eleitos”, possuidores de um dom que os conduzem naturalmente à percepção do objeto de arte.4 Para tanto, designam o capital cultural nacional como indicador mais eficiente para se determinar a atitude de uma população em relação à prática cultural, competência artística e as atitudes críticas em relação às obras culturais. O capital cultural nacional “seria avaliado pelo grau de desenvolvimento do sistema de ensino (e pela antiguidade desse desenvolvimento), assim como pela importância do capital artístico que, por sua vez, depende da antiguidade e da vitalidade das tradições artísticas (cujos índices seriam encontrados na existência de escolas de pintura, de coleções particulares, etc)”.5

É correto afirmar que “a obra de arte considerada enquanto bem simbólico não existe como tal a não ser para quem detenha os meios de apropriar-se dela, ou seja, decifrá-la”.6 Entretanto, é demasiado determinista afirmar que “ quem não recebeu da  família ou da Escola  os instrumentos, que somente a familiaridade pode proporcionar, está condenado a uma percepção da obra de arte que toma de empréstimo  suas categorias à experiência cotidiana e termina no simples reconhecimento do objeto representado: com efeito, o espectador desarmado não pode ver outra coisa senão as significações primárias que não caracterizam em nada o estilo da obra de arte, além de estar condenado a recorrer, na melhor das hipóteses, a ‘conceitos demonstrativos`...”7 Afinal, apesar de não ser tão comum um indivíduo que nunca ou muito pouco gozou de estímulos familiares na transmissão da cultura artística vir a se interessar seriamente por obter um conhecimento mais aprofundado sobre arte pelo simples estímulo escolar superficial ou mesmo pela mídia, esta não é uma hipótese tão absurda. E o contrário também é bem real. Afinal, como explicar a enorme comoção das massas instruídas, cultas e com enorme bagagem cultural a favor dos movimentos de arte promovidos pelos nacional socialistas, em detrimento da produção mais significativa daquele momento, tranqüilamente renegada, e taxada de arte degenerada? Entremos, pois, nas considerações sobre o documentário Arquitetura da Destruição. No caso alemão, o nazismo teve êxito inicial por um encadeamento favorável de acontecimentos e ações. Como se sabe a Alemanha enfrentou severas crises econômicas no período entre-guerras, o que gerou uma abertura maior a novas alternativas de conduta. Essa disposição somada a propaganda incisiva promovida pelo partido nazista, resultou em uma alienação consentida.  Sim, a baixa na capacidade crítica foi consentida por se tratar de uma população instruída e de sólida bagagem cultural. Entretanto, de fato, o que é mais importante ressaltar aqui é a manipulação da arte pelo III Reich, a fim de perceber o poder da percepção visual par a formação de opinião.

Em 1935 com a mostra O Milagre da Vida, promovida a mando de Hittler, a população alemã deixa-se conduzir pela retórica contida na maneira de se expor as obras bolcheviques – bolchevismo cultural visto como algo fomentado pelos judeus. O ato de colocar lado a lado obras expressionistas e fotografias de aleijados ou anômalos, sugere fatalmente um desejo de repulsa aos olhos do observador não somente com relação a obra exposta mas também por uma associação lógica, pelo criador da obra, o povo judeu. Com o impacto dessas imagens o discurso de Hittler pôde ganhar força. A arte degenerada exposta sistematicamente só podia partir de um povo inferior, capaz de contaminar os sãos. A única solução para a não contaminação e para o progresso é a completa dizimação das raças impuras. Eis a paradoxal arquitetura da destruição: faz-se necessário a destruição para que o novo se construa.

Na tríade ideal baseada na Antiguidade proposta pelo governo nazista está Esparta como modelo de raça pura, cheia de vigor juvenil, Roma Antiga como República forte e Atenas, como modelo de arte, da perfeição: o modelo para o gosto oficial; a cena idílica, cheia de beleza higiênica servindo como pano de fundo para esconder as atrocidades da guerra.

 

NOTAS:

 

1. ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte como História da Cidade. São Paulo: Ed. Martins Fontes (trad. Luigi Cabra), 4ª. ed.,1998, p.198

2. ______________. História da Arte como História da Cidade. São Paulo: Ed. Martins Fontes (trad. Luigi Cabra), 4ª. ed.,1998, p.198

3. ______________. Arte Moderna. São Paulo: Cia das Letras (trad. D. Bottmann e F. Carotti), 6ª. ed.,1999 , p.38

4.:“É que, à semelhança de qualquer amor, o amor pela arte sente pugna em reconhecer suas origens e, relativamente às condições e condicionamentos comuns, prefere, feitas as contas, os acasos singulares, que se deixam sempre interpretar como predestinação.” - BOURDIEU, Pierre; DARBEL, Alain. O Amor pela Arte. São Paulo: EDUSP/ZOUK ( trad. G.J.F. Teixeira), 1ª. ed., 2003, P. 163

5. BOURDIEU, Pierre; DARBEL, Alain. O Amor pela Arte. São Paulo: EDUSP/ZOUK ( trad. G.J.F. Teixeira), 1ª. ed., 2003, P. 66

6. BOURDIEU, Pierre; DARBEL, Alain. O Amor pela Arte. São Paulo: EDUSP/ZOUK ( trad. G.J.F. Teixeira), 1ª. ed., 2003, P. 71

7. BOURDIEU, Pierre; DARBEL, Alain. O Amor pela Arte. São Paulo: EDUSP/ZOUK ( trad. G.J.F. Teixeira), 1ª. ed., 2003, P. 79