A memória nos museus: de instrumento de conhecimento a critério ético e ação política
Relato por Erica Ferrari
Coordenação: Gilberto Mariotti
10º Encontro Paulista de Museus | 18 a 20 de julho de 2018 | Memorial da América Latina
18/07/2018 | 10:30h | Auditório Simón Bolívar
Relato crítico da conferência: “O dever de memória, direito ao esquecimento e dever de história no campo dos museus”
Este relato faz parte do livro: Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus
Sumário Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus | Encontro Paulista de Museus |
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O relato a seguir oferece um panorama da ampla explanação realizada pelo professor Ulpiano Bezerra de Meneses em conferência inicial do 10º Encontro Paulista de Museus. Após ser laureado com a Medalha do Mérito Museológico Waldisa Rússio Camargo Guarnieri em reconhecimento à sua trajetória profissional e sua inestimável contribuição à museologia paulista e brasileira em solenidade de abertura do Encontro, o professor Ulpiano agradece, honrado, a homenagem e reconhece sua paixão pelos museus, exercida no trabalho de 65 anos em dedicação a eles, acompanhado da reestruturação das instituições a novos papéis sociais atuais. Em sua conferência aqui relatada, ele escolhe o tema da memória traumática nos museus, dialogando com o foco do Encontro em torno da ideia de gestão e governança.
Parece que nunca se falou tanto em memória como hoje. A proliferação de matérias, notícias e textos que envolvem a memória e, em particular os museus dedicados a ela expõem níveis diversos de qualidade, variando da generalidade ao acréscimo de fatos e ideias realmente novos. Há uma crescente necessidade de abertura das instituições para uma gestão com participação da comunidade, o que alimenta a prática do tratamento da memória traumática no espaço do museu. A própria memória tem passado e presente, tem uma história, cujos extratos coincidem com o funcionamento dela na sociedade. Os primeiros estudos modernos acerca da memória, na virada do século XIX, desenvolveram-se no campo da psicologia e da sociologia. Cuidavam de entender o ser humano na sua faculdade de rememorar como indivíduo. No século XX, a questão foi transferida para as dimensões sociais, e a antropologia, a sociologia e a história assumiram o comando no estudo das ideologias que a memória carrega. Finalmente, a partir das últimas décadas, a abordagem do caráter pragmático da memória tornou-se dominante. De instrumento de conhecimento a critério ético e poderosa arma de ação política, a memória agora é submetida a um crivo multivariado de disciplinas. Nesse quadro é que se situa a memória traumática que aqui nos interessa.
Para falar em memória, pode-se partir do esquecimento, faces do mesmo processo. A memória é um procedimento de esquecimento seletivo, controlado, e a amnésia social ainda é um terreno a ser explorado, especialmente no campo dos museus. Parte-se do senso comum de que lembrar e comemorar são virtudes e esquecer é falha. No entanto, o tema é complexo. Ao verbo esquecer são designados vários processos: o apagamento repressivo, quando o poder sufoca a memória, como nas ditaduras; o esquecimento prescritivo, por pressão da sociedade; o esquecimento, que é constitutivo de formação de uma nova identidade, como ocorre com os imigrantes; a amnésia estrutural, submetida às hierarquias da sociedade; o esquecimento como anulação por saturação; o esquecimento como obsolescência programada típica do sistema capitalista de consumo; o esquecimento como silêncio humilhado proveniente de acontecimentos vergonhosos ou constrangedores. É um cardápio variado que ignorar leva a simplificações deformantes.
Em um segundo momento, pode-se tratar de outro conceito-chave muito famoso: o de memória coletiva. Formulado com sucesso pelo sociólogo francês Maurice Halbwachs no início do século XX, tem sido refutado com certa frequência atualmente. O renomado historiador alemão Reinhart Koselleck, por exemplo, apenas aceita a capacidade individual neurofisiológica como pertinente à memória propriamente dita; no mais, existem apenas metáforas que encobrem os interesses políticos e a instrumentalização ideológica. A memória social coletiva seria um mito político, uma narrativa sobre o passado de uma comunidade composta de eventos altamente eletivos, historicamente acurados e que dispõem da capacidade de mobilizar emoções, gerar e modificar atitudes entre os membros dessa comunidade. No entanto, de fato a motivação político-ideológica implícita ou explícita não torna ilegítimo o compartilhamento de narrativas quando contam com elementos que resistem à crítica histórica e sociológica. Pode-se aceitar a memória coletiva como realidade social, mas sempre devemos submetê-la a procedimentos críticos. As práticas da memória coletiva tornam mais complexa sua análise quando se observam os processos da privatização da memória, que se manifestam de forma aparentemente contraditória nos monumentos e memoriais, por exemplo.
O monumento-memorial é o precursor do museu-memorial. Um exemplo claro de tal situação é o “Monumento dos Veteranos do Vietnã”, em Washington. O objetivo inicial se concentrava na legitimação das aventuras militares norte-americanas na Ásia e no fechamento das feridas da guerra por meio da instalação de uma imagem escultórica heroica figurativa. No entanto, a solução final ficou longe de homologar a intenção inicial, configurando-se como um memorial formado por dois paredões de mármore negro inscritos com o nome de cada um dos 60 mil soldados mortos em combate. A superfície espelhada planejada pela arquiteta Maya Lin faz com o espectador passe a integrar a obra. O espaço se revela como ponto de atração de manifestações subjetivas, de luto, exibindo uma nação não de heróis, mas de vítimas.
A subjetivação do monumento e a privação da memória chegam a assumir uma dimensão performática, como ocorre na obra de Jochen Gerz e Esther Shalev-Gerz, “Monumento contra o fascismo”, de 1986. Monumento destinado a espiar publicamente a culpa do povo alemão, configurava-se como um obelisco de doze metros de altura recoberto de chumbo. Em sua base, havia um orifício subterrâneo de igual extensão. Na superfície do obelisco, os habitantes podiam inscrever mensagem utilizando um cinzel. Conforme a área do monumento se enchia de grafismo, ele era enterrado, até imergir por completo na terra em 1993. Sua verdadeira função era subjetivar os sentimentos que pudesse evocar, e sua eliminação física foi o ápice de seu processo constitutivo, tornando-se invisível assim como a carga subjetiva que a ele se agregou. A memória aqui é tratada pela sua ambiguidade crucial: ao mesmo tempo que a participação do sujeito na construção da memória é um fator de democratização é no nível individual em que ela se dá.
A memória traumática é a herança dos conflitos e da violência que assolaram o século passado e não desapareceram neste. O trauma cultural é uma situação carregada de afeto negativo tida como indelével e ameaçadora dos valores de uma comunidade. Com a memória traumática surgiram novos agentes no cenário memorial, e conceitos foram reformulados, por exemplo, o de memória transgeracional, cujo fato adquire significado conforme atravessa gerações; o de pós-memória, ou a memória de segunda mão, não vivida mas absorvida como própria no âmbito familiar; a de memória ausente, existente mas impedida de circular pelas convenções sociais; a de memória silente, existente no corpo da testemunha, incapaz de proferir palavra, mas que expressa em sua imobilização a escala do ocorrido; a de paisagem mnemônica, inserindo os espaços como sítios de consciência etc.
Nesse quadro se desenvolverá um debate acirrado entre o dever de lembrar e o direito de esquecer. A questão fundamental incide sobre a possibilidade de uma memória justa. O que, quando e como é mais legítimo reabrir as feridas ou dar a volta por cima. Ambos os lados proferem argumentos respeitáveis; no mínimo há um consenso no seguinte: os crimes contra a humanidade não são prescritíveis, não podem ser esquecidos, pois o esquecimento sem justiça afeta não só o presente mas o futuro; o direito à memória não pode sofrer qualquer restrição, incluindo o acesso à documentação e às investigações; o trabalho sobre a memória deve proferir um espaço confessional e de conhecimento; deve-se ceder espaço ao direito à compaixão; há o direito à história e ao conhecimento das raízes dos traumas e de seus efeitos.
Precedido pelos museus de guerra, nos anos 1980 observa-se a proliferação dos museus-memoriais. O Holocausto forneceu paradigmas que podem ser observados nos museus mais importantes da espécie em Berlim, Jerusalém e Washington. O Brasil não registrou uma explosão semelhante a outros países, embora conte com muitos projetos. Um bom exemplo é o “Memorial da Resistência”, em São Paulo, o primeiro do tipo a ser inaugurado em 2009. O desafio da representação do Holocausto nos museus envolvia o atendimento de agendas políticas específicas e demandas locais, seja na celebração de uma democracia ou na tarefa de redenção, ao mesmo tempo que deveria responder a anseios universais de justiça e paz.
A museografia desenvolvida acionou ao extremo o potencial emotivo presente nos museus, e a própria arquitetura se converteu em peça introdutória de cada um deles, abrindo margem para infiltrações ideológicas. Em Washington, por exemplo, uma impressionante pilha de sapatos usados pertencentes às vítimas permite que o abstrato se transforme em concreto. Essas instituições empregam uma das principais qualidades possíveis aos museus, que reside na articulação do cognitivo ao afetivo, o que amplifica a eficácia de sua atuação junto ao público. Afeto e emoção participam do mesmo campo semântico, associado ao movimento. Aguçando a imaginação, a experiência e a empatia, a experiência move os indivíduos, sensibiliza-os. Com essa estratégia, os museus do Holocausto encontraram palavras expositivas para exprimir o inexprimível e fornecer combustível para atitudes e ações transformadoras.
Com isso, pode-se elencar cinco questões cruciais relativas ao tratamento da memória traumática no museu, a serem discorridas na sequência. Primeiramente, há a ideia da função do museu como uma espécie de tribunal. Com a ascensão do historiador ao espaço público, esse profissional começa a ser chamado a partir do final dos anos 1980 como perito e até mesmo como testemunha em processos de crimes contra a humanidade e comissões de inquérito. Isso produz uma ideia de que entre as funções do museu está a de prover vereditos na construção dessa história pública. No entanto, de fato, o museu deve investir no potencial de projetar luz que permita o entendimento e a ampliação do compromisso de edificação da memória, como um espaço de reflexão crítica e formação da consciência histórica. Deve não apenas aprofundar as informações sobre o passado para retraçar nossas heranças presentes, mas precisa adquirir a capacidade de desnaturalizar o passado e, consequentemente, o presente. Os processos históricos não são fatalidades, mas produções coerentes às circunstâncias dos interesses em voga, que se legitimam como se fossem naturais. Um exemplo desse quadro é a dominação da mulher pelo homem ou dos negros pelos brancos. A consciência histórica é o entendimento de nossa responsabilidade como sujeitos da história. A memória histórica no museu precisa ser múltipla, contemplativa das diferentes visões, apresentando um espaço de confronto sem dominação, como contraponto, um lugar de perguntas mais do que de certezas. Em segundo lugar, o museu deve problematizar a história, de modo crítico, como distintor dos componentes que compõem a história, em um reflexo das comunidades como processos em desenvolvimento que não envolve visões maniqueístas. As vítimas não podem ser infantilizadas, pois isso é negar-lhes a força da resistência, de sujeito da história. Todas as figuras em cenas devem ser tratadas como indivíduos e expostos também os estereótipos, o que habilita a identificar os diferentes agentes atuantes no plano dos processos traumáticos. Em terceiro lugar, a responsabilidade do museu não se deve limitar às comunidades de memória, pois o direito à memória é moralmente indiscutível, e o historiador e o museólogo devem ser universalistas. Muitas vezes o trauma da primeira geração é pessoal, a dor é um processo privado. Após a segunda geração, a revelação dos crimes provê status ético e humanitário. Em quarto lugar, o cotidiano sempre precisa estar presente no campo da memória, já que os lugares de sofrimento podem se tornar pontos de peregrinação e sacralização, o que produz uma alteridade da dor. O lugar do sagrado é do outro. O espaço da dor deve manter-se no cotidiano. O heroísmo precisa ser tratado com cautela, valorizado não como qualidade extra-humana, mas como fruto de valores que podem ser dissipados no dia a dia. Em quinto e último lugar, a memória não deve prevalecer sobre a justiça.
Para os crimes contra a humanidade existem três etapas: a justiça, a reparação e a memória. Revelar a verdade já um processo de justiça. O antônimo de esquecimento não seria a justiça em vez da memória? Negamos a justiça a quem não faz parte de nossos afetos; o Brasil foi forjado a partir de uma violência endêmica. Além de denunciar a violência nos fatos do passado, os museus comprometidos com os direitos humanos precisam assumir-se como faróis que iluminam também a violência de hoje, a violência cotidiana em qualquer modalidade e escala. Isso não acarreta que o museu transforme-se em panfleto encenado, em enciclopédia de pequenos verbetes, nem em um mercado de quinquilharias. Essa postura se gera a partir de uma atitude de contextualização de cada caso em seu quadro mais amplo, conectando o passado ao presente. O museu não basta para eliminar a violência, no entanto tem o poder e a capacidade de tornar presente a violência como coisa sensível, concreta, apreendida pelo nosso corpo e nossa mente, que atenta o que pode passar despercebido por nós.