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Empacotando a biblioteca

relato por Gilberto Mariotti

Relato da sequência de falas: colecionismo privado: Bernardo Paz, Jochen Volz, Gunnar Kvaran e José Olympio Ferreira, com mediação de Ana Letícia Fialho.

 

Leio a palavra “colecionador” no impresso de divulgação da SPArte e me vem à mente o texto de Benjamin em que ele se dispõe a “dar uma idéia do relacionamento do colecionador com seus pertences, sobre a arte de colecionar mais do que sobre a coleção em si”. Hoje pode soar estranho que o termo “arte” apareça no texto ligado ao colecionismo, pois pelo que ouvi das falas que relato aqui, o caráter artístico do ato de colecionar se sobrepôs à própria arte, e os critérios e estratégias do colecionismo dão de graça sua íntima relação com os objetos colecionados, sua influência direta sobre a forma mesma das obras espalhadas pela feira e vistas nas apresentações. Soa estranho por soar anacrônico. Por remeter, com o termo “arte”, a um fazer consciencioso, quase artesanal. Benjamin ainda diz que é arbitrário que trate do assunto a partir da observação das diversas maneiras de adquirir livros, mas o faz falando de si e de sua paixão. Ele diz também: “De todas as formas de obter livros, escrevê-los é considerada a mais louvável”.

Bernardo Paz, criador de Inhotim, terminou sua fala prometendo escrever um livro em que pudesse desenvolver mais longamente suas idéias e experiência. Como relator, deixo aqui alguns apontamentos que podem um dia se integrar ao futuro livro, destinado que está ao sucesso comercial, principalmente se editado seguindo o modelo da fala, como uma coletânea de frases: “Horizonte é uma coisa bonita”; “Beleza é uma coisa fundamental”; “O Brasil é um país privilegiado”; “O primeiro passo para uma criança se sentir bem é se sentir em um lugar bonito”; “Uma noite resolve todos os problemas”; “Arte contemporânea também é obra”.

Apesar do efeito que estas e outras sentenças causavam na platéia cheia de admiração, foi possível também entender algumas especificidades de Inhotim que se devem à experiência pessoal do palestrante. Não é a primeira vez que Bernardo menciona sua relação difícil com o pai, que o ninava cantando o hino à bandeira, a projetar para o filho o futuro de herói nacional. Nem o momento crucial de sua vida em que se depara com um muro, por sobre o qual enxerga uma festa com gente “bonita e alegre”, e de como esse fato passa a lhe servir como metáfora para o apartheid social brasileiro. Do seu gosto por plantas e de como isso originou o projeto indústria limpa, desenvolvido em Inhotim. E sobre as 300 mil “crianças de favela” que lhe dão gosto de ver brincando nos jardins do museu.

“Isto toma conta de mim. Eu vivo para isto e assim vivo para a população deste país”. Enfim, expectativa paterna não é algo de que nos desvencilhemos facilmente.

 

Limites

A fala de Jochen Volz, curador de Inhotim, é complementar a essa de Paz, por colocar de forma mais objetiva uma diretriz curatorial do projeto imbuída de pensamento prático: “é preciso pensar o que não vale a pena fazer em Inhotim porque pode se fazer melhor em outro lugar, e o que só se pode fazer bem em Inhotim”. “Inhotim”, diz ele, “é sempre um destino. Ninguém encontra Inhotim por acaso”.

Outra especificidade da experiência com o projeto seria o privilégio de não lidar com limites tradicionalmente ligados às instituições museológicas. Em Inhotim não há limites de espaço expositivo, não há um tempo de exposição prefixado. Os artistas convidados a pensar trabalhos específicos para lá geralmente têm todas as condições materiais atendidas (características do terreno, tipos de materiais, soluções de construção, produção e montagem dos trabalhos). A subjetividade sem limites.

Fiquei pensando em uma entrevista do artista americano Robert Smithson, cujo trabalho muitas vezes é associado à intervenção na paisagem natural, em que ele coloca a falta de limites como uma ilusão, e da importância de limites e fronteiras, físicos ou não, para a forma do trabalho de arte. 

Ana Letícia Fialho retoma a fala de Paz: “Inhotim fica pra eternidade mas que não fique na mão do governo”. Volz coloca que eles não tem deveres de representatividade. Inhotim funcionaria bem em parceria com o governo sem ser governo. Por toda fala há uma depreciação constante do Estado e uma confusão entre este e coisa pública. Aqui e ali, tanto Volz como Paz reiteravam o pedido de que os presentes passassem a integrar a Associação de Amigos de Inhotim, reforçando a isenção de impostos como principal atrativo. Quando a possibilidade de discussão destes conceitos se mostra num horizonte mais próximo trazida pela mediadora, somos tomados pelo depoimento emocionado de uma visitante de Inhotim, que dizia ter conversado com uma das senhoras responsáveis pela limpeza, e que lhe teria dito: “Tenho orgulho de trabalhar neste banheiro!”

Todos aplaudem entusiasmadamente.

 

No ar

Irônico que a fala de Gunnar Kvaran tenha se dado logo depois. Embora a defesa da iniciativa privada possa dar a impressão de uma fala em concordância com as anteriores, o contraste de certas assertivas indica a necessidade de alguma problematização.

A Noruega é um país que se estrutura como uma social democracia e tornou-se muito rico por ter encontrado petróleo. Possui uma política cultural muito forte e a arte é, em grande parte, apoiada e mantida pelo Estado. Nesse contexto, Kvaran conta que gerou reações de admiração e, ao mesmo tempo, de hostilidade a decisão pela família Astrup de criar uma coleção completamente privada. Na Noruega, uma iniciativa privada não é vista como um favor ao país oferecido por uma elite privilegiada, nem os impostos como dinheiro “perdido”.

A proposta inicial era mostrar uma nova visão da arte contemporânea, pois no país não havia tanto interesse em artistas internacionais. No final dos anos 90 a instituição redefiniu seu foco, concentrando-se em artistas americanos. A não ser por um período muito curto na década de 60, esta arte era muito pouco tratada na Escandinávia.

Kvaran delineia bem as concepções curatoriais que julga fundamentais para o projeto. Ao invés de construir uma história, escolher alguns artistas e colocá-los em primeiro plano. Ao invés de tratá-los em um contexto histórico, como se faz na maioria das coleções, selecionar poucos artistas e tratá-los com profundidade, adquirindo até vinte trabalhos de cada um.

Além de colecionar, uma das funções do museu é também de produzir exposições que criem relações inteligentes através da coleção. Geralmente são produzidas três ao ano: retrospectiva de artistas famosos, novos artistas e artistas noruegueses. Não se trabalha apenas em uma chave de especialização.

A partir de certo ponto, o Astrup Fearnley passou a ter também a possibilidade de comprar exposições inteiras e não apenas trabalhos individuais. Assim, além de pesquisar um grupo de artistas, era possível também pesquisar "períodos" da arte contemporânea. Ademais as exposições produzidas pelo museu não são fixas. São convidados curadores de outros museus importantes que estudam os temas das mostras e propõem mudanças. Assim, enquanto uma exposição viaja pelo mundo, ela vai se modificando e as compras das obras vão sendo feitas.

Kvaran coloca em perspectiva a presença do Estado na vida cultural. A importância dos museus privados estaria na mudança crucial da lógica de criação da história da arte, pois instituições privadas conseguem comprar trabalhos mais novos e muito mais rapidamente do que os estatais. Mas ressalta o caráter social das coleções privadas, que hoje são também dependentes dos mesmos valores das instituições estatais. Os projetos educativos, por exemplo, são importantes para que se produza conhecimento e também ancorar a instituição à sociedade: do contrário, “flutuaria no ar”.

A pergunta principal feita pelo público: “Qual o orçamento anual da coleção?”

Resposta: “Sessenta milhões de dólares.”

 

 

Nem de presente

Jose Olympio quis deixar claro seu incômodo com uma postura no colecionismo por demais especuladora. Disse ficar irritado com gente que se aproxima para perguntar qual o próximo artista a “bombar o mercado”. Arte para ele é o gosto pela obra, por acompanhar a produção. Mesmo porque, se o comprador compra algo de que não gosta só pelo investimento e este não se paga, vai ter que conviver com o fracasso pendurado na parede. O trabalho tem que ser comprado por paixão.

Contudo, conforme a conversa vai andando e tomando ares de informalidade, percebe-se que o pensamento de investidor no mercado financeiro permeia a relação com a produção artística talvez mais do que se quisera admitir no início da fala. Ao contar de como certa vez “fritou um Di para ter um Calder” ou seja, de como vendeu um quadro do pintor brasileiro Di Cavalcante e gastou o mesmo valor adquirindo uma obra do escultor Alexander Calder, Olympio se justifica dizendo que buscava “a maximização do prazer que cada dólar pode comprar”

Da mesma forma, diz no início que se alguém lhe pede conselho para investimentos, ele indica “as free advice” ações da Vale do Rio Doce, Petrobras etc. Mas ao final da fala, ouvimos avaliações de mercado como “Quem comprou ‘old masters’ há vinte anos atrás está levando um ferro violentíssimo” e até ganhamos uma espécie de miniguia com alguns critérios a serem lembrados quando da escolha de artistas a serem colecionados, que reproduzo agora como prestação de serviço a você, leitor do Fórum Permanente e colecionador iniciante.

 

1. É preciso ver se o artista é um cara sério.

2. Repare no tamanho da produção. O artista deve produzir sempre, mas você deve se perguntar; tá “girando a manivela” ou seja, vendendo o mesmo trabalho muitas vezes?

3. Veja a qualidade do galerista que o promove e o orienta. Sim, porque os artistas precisam de boa orientação.

4. Veja qual a inserção deste artista em acervos e coleções privadas.

5. Originalidade histórica é importante.

6. É preciso que ele tenha apelo ao gosto do momento.

 

Como exemplo de artista que reúne todas essas boas qualidades, cita Beatriz Milhazes: “Por isso tinha que valorizar!’

A pergunta sobre o descarte, que já havia sido feita durante a mesa composta de diretores de museus sobre coleções públicas, agora reaparece, vinda da platéia, em versão bem menos branda e problematizadora: “E o que você faz com aquilo de que já não gosta mais?”

Resposta: “É, tem coisas que nem de presente você dá...”

Risada geral.