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Relato CICLO V - parte II: Acervos locais - projeção global

por Inês Costa Dias

Na conversa sobre “Acervos locais - projecção global” foram apresentadas várias estratégias de divulgação da arte da América Latina (e da arte internacional), através do trabalho de instituições Latino-Americanas (no Peru, Venezuela, México e Argentina) que têm colecções centradas em autor(es) Latino-Americanos e/ou artistas internacionais que não são oriundos do “continente” Latino-Americano.

O interesse que de imediato me despertaram estas apresentações foi a relação entre a difusão, divulgação e conhecimento interno e externo das colecções e arte Latino-Americanas, e a ideia de nação e cultura Latino-Americana1. De forma geral foi apresentada uma vontade política, por parte das instituições representadas, em  ultrapassar a visão conservadora e estereotipada que se tem da arte Latino-Americana, apresentando a sua diversidade e a existência de periodos de modernidade e contemporaneidade que a colocam par-a-par com a arte desenvolvida nos grandes centros culturais hegemónicos. Esta vontade está intrinsecamente ligada a uma idea de renovação interna e externa das representações imaginadas destas várias nações, assim como da ideia da cultura do continente “Latino-Americano”.

Auxilio-me agora, de modo a contextualizar o ambiente em que se tem vindo a desenvolver um pensamento sobre a arte contemporânea na América Latina, em Gerardo Mosquera, que em 1995 nos apresentou, de forma breve, uma grelha temporal e ideológica da crítica/teoria da arte na América Latina. De acordo com este autor, durante os anos 1960 e 70 assistiu-se a uma grelha utópica que via a arte como parte integrante de politicas sozializantes e simpáticas ao marxismo. Essas teorias, de conotação político-social, opunham-se ao imperialismo e colonialismo euro-americano (e à cultura de massas que lhes está associada), opondo-o a uma idea da América-Latina que a via como revolucionária, social e humanizada. Uma nova fase e grelha de pensamento sobre a cultura Latino-Americana, e sobre a arte aí produzida surge nos anos 80 e é do seguinte modo que Mosquera a apresenta: 

      Contemporary criticism is in line with a new situation that marks a clear break with the processes of the 1960s and their repressive consequences. It accompanies the end of the armed struggle, democratization processes, neo-liberalism, globalization, migrations and the displacement of culture, the collapse of real socialism, expansion of mass culture and communication, North-American multiculturalism, so called new social movements and the calamity of the Cuban Revolution. (...) There has been a shift from the key concepts of 'resistance', 'socialization', 'anti-colonialism' and 'revolution', which marked earlier rhetoric, towards 'articulation', 'negotiation', 'hybridization', 'de-centering', 'margins' and 'appropriation' (...). (Mosquera, 1995: 12) 

Curiosamente os termos de “articulação”, “negociação”, “descentramento”, “margens”, foram termos que estiveram directa, ou indirectamente, presentes nas apresentações feitas na mesa deste encontro. Existe por isso uma relação entre o contexto histórico esquemático apresentado por Mosquera no seu texto, e o momento presente do trabalho desenvolvido pelas instituições/colecções representadas em “Acervos Locais – Projecção Global”.

As estratégias apresentadas por essas instituições tentam, através do diálogo interno e externo com outras instituições, através da articulação de diferentes políticas institucionais para a divulgação, coleccionismo e apresentação da arte, criar rumos diferentes para a arte da América Latina, reorientá-la, “descentrá-la da margem”. E é uma missão comum, a de apresentar a complexidade e diversidade da arte contemporânea produzida no “sub-continente” Latino-Americano, descontruindo dessa forma as visões estagnadas e disseminadas (não baseadas em verdadeiro conhecimento ou observação) que sobre essa produção artística se têm.

Parecem-me paradoxais, ainda que compreensíveis e interessantes, os desejos em criar histórias de arte nacionais, ao mesmo tempo que se tenta provocar uma re-imaginação da ideia da “arte Latino-americana”. Estes são dois movimentos que, parecendo em tensão, são no fundo parte de uma mesma estratégia, em que a releitura da arte ao nível local, e a importância de construção de narrativas históricas internas, é indispensável à propagação, a um nível internacional, de uma outra visibilidade e olhar sobre a arte da América Latina. Existe uma relação inter-causal e motivadora entre o local e o global/internacional, isto querendo dizer que as estratégias locais de visibilização, dinamização e conhecimento da arte moderna e contemporânea, induzem, provocam e produzem consequências na projecção internacional dessa arte; e vice-versa.

Algumas das estratégias institucionais apresentadas nesta conferência podem ser tidas como exemplos desta dinâmica inter-relacional entre o local e o global, entre elas o caso descrito por Juan Carlos Verme (director do Museu de Arte de Lima, MALI), de políticas de intercâmbio entre curadores da periferia e do centro, assim como da apropriação e adequação de modelos e conhecimentos ganhos em instituições internacionais (de que nomeia a Tate Modern, Londres; ou o MOMA, Nova Iorque) em museus ou instituições de arte da América Latina (neste caso a criação de um comité de arte contemporânea no MALI). Este é um exemplo de tentativa de retirar o contexto artístico do Peru do seu isolamento (em geral característico das periferias), através da inserção e adequação de modelos culturais “centrais” ao espaço local. Os frutos resultantes dessa transposição são a promoção do interesse local pela arte contemporânea local e internacional, o despoletar de novos coleccionismos, um maior dinamismo da cena artística e da comunidade de artistas locais.

Ao constituir um comité de arte contemporânea no MALI, Juan Carlos Verme tem como objectivo criar hábitos de aquisição de arte contemporânea local, constituindo um acervo local de arte contemporânea2 que possa ser acessível a todos E dessa forma ir construindo as bases de promoção e constituição de uma nova história de arte local; que passa também pelo exercício curatorial, e pela formação, integração e debate do trabalho curatorial “lúcido” local e internacional – intercâmbio curatorial.

Este é um exemplo, poder-se-á dizer, do global no local. Mas como funcionará o local no global? Será que promove a releitura das artes contemporâneas locais? Ou será que o global/ocidental se serve do local para sublinhar os estereótipos criados sobre a arte periférica, desse modo aprofundando e tornando mais densas as políticas multiculturais (de tolerância, mas não de integração) que são já tradição das democracias ocidentais contemporâneas?

O caso da Fundação e Colecção Jumex (México) pode ser interessante no contexto desta questão, uma vez que entre as suas políticas de programação se encontra o interesse em “importar” exposições de arte contemporânea internacionais, de instituições centrais. Para além desse ser um tipo de intercâmbio entre o local e o global, é um meio para desenvolver o descentramento das narrativas hegemónicas sobre arte contemporânea, através da criação de novas leituras/narrativas sobre a arte contemporânea central/internacional a partir de um local periférico, novas leituras que incluem as histórias de arte locais. Esta é uma ideia que me parecese poder sera apoiada pelo pensamento descrito por Ticio Escobar na seguinte citação (1995), embora aqui o autor se esteja a referir, de forma mais directa, à arte popular,: 

      Deep down, all cultural phenomena are essentially hybrid. The dream of pure cultures is a romantic myth with fascist implications and ancient roots; a myth that obscures the fact that all assimilation is nutrition and that change is essential to ensure the flow of cultural forms, challenge the imagination and prevent automatic repetition. (Escobar, in Mosquera, 1995: 93) 

A importância de processos de “aculturação” é reforçada por Mauro Herlitzka3, que a ela acrescenta o modo como as novas e descentradas leituras da arte contemporânea internacional benefeciam e enriquecem os contextos hegemónicos. Ideia bastante interessante, a meu ver, porque sublinha a descentralização desse trabalho, assim como afirma os movimentos bilaterais de influências entre culturas locais e centrais. Gostaria de acrescentar o valor e papel, já mencionado por Juan Carlos Verme, que este tipo de iniciativas têm para a quebra de isolamento cultural dos espaços “locais”, marginais e subalternos, promovendo a sua “abertura”.

Em relação ao modo como as políticas culturais do Estado e as iniciativas privadas se inter-relacionam nestes contextos nacionais, fico com a ideia de que entre eles existe uma necessária autonomia, dado o não protagonismo (a inexistência de políticas) do Estado nas culturas locais. As instituições de arte privadas, também elas coleccionadoras (quase) exclusivas nestes contextos, apresentam políticas expansionistas e educativas da arte, que não são somente resposta a políticas culturais públicas, mas também formas de colmatar o vazio e a lacuna do Estado em relação a esta área de produção cultural.

Duas das instituições representadas na mesa, a Fundação Cisneros e a Fundação ESPIGA, apresentaram projectos de índole educativa e informativa específicos que me parecem da maior importância; assim como me parecem relacionados com o papel de substituição do Estado, que essas instituições levam a cabo. Os projectos educativos, lado-a-lado com o trabalho de coleccionismo, curadoria, edições, conservação, etc. é de extrema relevância para tornar absorvíveis e legíveis as renovadas narrativas sobre arte contemporânea. O apoio bibliográfico, documental e educativo promove a existência dessas narrativas a par da sua interligação com uma percepção (e sua valorização nas esferas) histórica e popular. Estes passos são também parte da estratégia de desenvolvimento local e de disseminação internacional da cultura e arte Latino-Americana.

Que modelos de interacção serão possíveis entre o Privado e o Estado, que contemplem políticas para a arte contemporânea? Eu imagino que exista, de antemão, um limite ao poder cultural do privado, nem que esse seja de uma índole ética. Se, como apresentado já neste relato, as instituições privadas apresentadas nesta mesa de discussão têm como missão a criação de narrativas históricas sobre a arte local e internacional, onde por sua vez se vão basear as ideias de cultura nacional (no que diz respeito à produção artística contemporânea, pelo menos), não se levanta aqui uma questão ética, sobre a  legitimidade que o sector privado  tem (uma vez que não é eleito) em criar representações da nação? Porque mesmo que o intuito seja o de reavaliar a arte contemporânea e as ideias que sobre essa se têm, complexificando as suas leituras e apresentando a sua diversidade, esse é um trabalho que pode apresentar vários contornos, com diferentes conotações políticas, em relação às quais os diferentes indíviduos e comunidades internas à nação se sentem mais ou menos ligados, mais ou menos participantes e contundentes. 

A relação entre o Estado e a Cultura pode ser debatida com base em modelos tão diferentes como o dos Estados Unidos da América, América Latina e Europa (refiro-me principalmente aos casos de Portugal, França e Espanha). Se no caso dos EUA assistimos a uma quase total privatização dos meios culturais, coexistindo com alguns programas de financiamento público; na América Latina, pelo que percebi, existem vários esquemas de financiamento, mas em geral não existe uma política cultural vigente que promova, financie ou assegure a dinamização das artes nesses países, e logo as instituições criadas são maioritariamente privadas; no caso dos exemplos Europeus atrás listados encontramos uma dependência exagerada entre Estado e Cultura, dependendo as instituições, as comunidades de artistas e o próprio ensino de arte, dos poderes governamentais, do Estado, e da mobilidade/alternância governativa desse poder. Estes três “modelos” de inter-relação entre o Estado e a Cultura, deverão ser analisados tendo em conta os contextos históricos que os determinam. A especificidade dos passados de cada um deles é sem dúvida determinante para a sua presente compreensão, e também para a construção de novos modelos políticos para cultura, que substituam os existentes, adequando-os à dinâmica da contemporaneidade. 

Bibliografia 

MOSQUERA, Gerardo (ed.), Beyond the Fantastic. Contemporary art criticism from Latinamerica, the institute of International Visual Art, London: 1995  

ESCOBAR, Ticio, “Issues in Popular Art”, MOSQUERA, Gerardo (ed.), Beyond the Fantastic. Contemporary art criticism from Latinamerica, the institute of International Visual Art, London: 1995, pp.91-113