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“Mais do que os olhos captam” ou “A maior coleção empresarial de arte do mundo descrita pelos seus compradores, mesmo”

Por Gilberto Mariotti

“Estou muito impressionado com a quantidade de pessoas presentes hoje à tarde, sei que há muito trânsito em São Paulo.” Assim Friedhelm Hütte, curador do Deutsche Bank, inicia sua fala, que se deu no próprio espaço expositivo, oferecendo em seguida alguns dados: a coleção conta com 50.000 obras (a maior coleção empresarial do mundo, segundo ele), dentre as quais 3.000 são fotos. A exposição que agora se encontra no Museu de Arte Moderna de São Paulo conta com cerca de 300 fotos, que datam a partir da década de 60, e excursiona também por Bogotá, Lima e Buenos Aires.

A heterodoxia do formato, como definiu Felipe Chaimovich, curador do MAM, propunha a visão e comentários in loco pelo curador alemão das obras expostas, seguidos pelo debate, do qual também participou Eder Chiodetto, também crítico e curador do clube de colecionadores de fotografia do museu.

Hütte inicia pelos trabalhos de Bernd e Hilla Becher, nos quais vê uma conexão com certa tradição fotográfica alemã que serviu em dado momento a propósitos científicos de classificação de aspectos naturais e armazenamento de dados visuais. Ressalta a possibilidade dada pela fotografia de se captar motivos diferentes sem alterar,no entanto, condições formais. Os Becher teriam assimilado este procedimento, ao fotografarem a arquitetura industrial em suas várias formas. Como ele diz, “registrar e comparar”. Segue aportando em outras séries de fotos, como a de Hermann Pitz; que para ele, brinca com a idéia de que a fotografia é uma janela para a realidade. “Na verdade é um objeto dentro da realidade”. “São objetos colocados nas paredes”.

Esta fala dinâmica, como uma visita guiada pelos próprios curadores, parece vir da preocupação de que estas obras sejam vistas em suas dimensões originais, como pinturas, por exemplo. Hütte, ao comentar o trabalho de Andreas Gursky, Bolsa de Cingapura I, salienta esta ascensão da foto ao status de obra, chegando a citar uma iniciativa empresarial alemã de ampliação de grandes formatos, que teria desenvolvido a tecnologia agora muito utilizada pelas novas gerações de fotógrafos. “Hoje em dia é muito in, muito fashion, este tipo de trabalho. Esta técnica é muito hype”. O grande formato então seria uma validação desta condição muito importante em termos mercadológicos. “Antes, colecionadores possuíam livros ou ampliações pequenas, mas agora estas fotos ocupam muitas vezes o espaço expositivo como pinturas”. Também justifica a itinerância da exposição por outros países: “A ampliação do campo de visão com uma nitidez que não é possível aos nossos olhos, feita por Gursky, não pode ser experimentada em catálogos, que nunca terão a nitidez destas cópias”.

Um dos últimos trabalhos mencionados é  “Roundtable”, do artista alemão Martin Liebscher. No processo de trabalhar com o próprio tema da coleção e sua formação, Liebscher retrata a si mesmo inúmeras vezes figurando em uma sala de reuniões do Deutsche Bank em Frankfurt, no papel de proto-executivo; um personagem de terno que age desempenhando tanto funções quotidianas típicas de um escritório, quanto ações dramaticamente exageradas. À primeira vista, uma atitude irônica, produto da projeção de várias personalidades possíveis deste sujeito formador de gosto, assim como formado pelo gosto. Se há alguma crítica, ela não incomoda Hutte; pelo contrário, diverte-se em falar das mudanças feitas pelo artista no espaço original, e introduz seus comentários sobre o trabalho dizendo: “Isto é como voltar para casa”.

Ao público, agora acomodado no chão do salão de entrada da exposição, Chiodetto fornece alguns dados sobre a coleção de fotografia do MAM, comentando também algumas das principais linhas, representativas da produção fotográfica no Brasil, que vêm sendo seguidas em sua incorporação ao acervo do museu: uma delas, a produção que apesar de partir do formato documental, “é permeada por uma subjetividade brutal” (como este meu relato), outra, a tematização da própria representação, através muitas vezes da metalinguagem, e ainda, de uma linha histórica que corresponderia a um “modernismo tardio instalado na década de 50, e que, a partir de então desenvolve originalidade”.

Define sua participação (principalmente no que se refere ao texto escrito para o catálogo) pela demanda de uma aproximação entre as duas produções, alemã e latino americana. Desta cumplicidade com o olhar científico da fotografia, ou de uma certa tradição alemã, descenderia a questão da identidade e alteridade também mencionada no debate. Chiodetto define a produção alemã como sendo ”de uma originalidade única, de uma busca científica pela técnica e precisão que raramente se vê em outra cultura”, onde sempre é mantido um certo distanciamento. Logo após a menção de uma representação por vezes preconceituosa de nossa cultura como algo exótico, dirige pergunta ao curador alemão sobre estas diferenças, definindo a relação dos fotógrafos latinos com a natureza como algo que se dá por uma sensualidade, um certo deleite. Hütte afirma que não há mais natureza real na Alemanha. “Há bosques, mas eles foram postos lá. Nós não temos as florestas que vocês têm”.

A pertinência de uma coleção específica de fotografia num momento em que esta é aceita como parte de um campo de ação para a produção artística foi questionada por Felipe Chaimovich. Chiodetto responde que a fotografia sempre se encontra na linha de tiro das questões contemporâneas ligadas à mudança tecnológica e que as mudanças na fotografia são mais rápidas do que em outras linguagens. “É um belíssimo desafio”, diz.

Ainda sobre as mudanças no campo fotográfico enquanto tecnologia, Chiodetto elogia uma libertação da fotografia de sua função mais difundida anteriormente: a de representação do real. Por conta do maior acesso à tecnologia digital, uma certa desconfiança se instaurou perante o código como portador dos fatos.

A questão dos critérios para aquisição e formação do acervo também esteve presente em várias perguntas. Hütte admite que a compra de obras de artistas jovens se dá por conta de seus preços serem mais acessíveis. Revela que 90% do orçamento para aquisições é gasto com produções de artistas ainda em formação. “Somos uma empresa e temos de ter lucro”. E que boa parte das aquisições é feita em feiras especializadas: “Se aceitasse ver portfólios de artistas, não faria nada além disso”.

Dizer que esta é uma coleção representativa da produção alemã em fotografia a partir do pós-guerra é um justo elogio. No entanto, para além da preservação do patrimônio artístico internacional, função social que a iniciativa privada globalmente tem tomado para si, o evento em si, exposição e debate, se mostra muito representativo de um discurso, hoje hegemônico, que saúda iniciativas colecionistas do capital privado, bem como seus desdobramentos no campo, por assim dizer, cultural.

Se este patrimônio, esta produção artística fundada em tecnologias da imagem não for colecionada e preservada, ela ameaça se perder, junto às questões e conhecimentos que contém. A própria fotografia já carregou o fardo de ter de representar o mundo, a natureza, a sociedade, enfim, a história, sempre relegada a uma função de registro (pretensamente) neutro, como se não se formulasse uma linguagem própria a partir de sua fatura. Ela deveria guardar o mundo, que se transforma ou desaparece, como um arquivo.

Se, como diz Chiodetto, a “blasfêmia” de se considerar a fotografia mera representação do real já não é senso comum, ainda se considera comumente que as razões econômicas que movimentam a esfera da cultura servem apenas como suporte neutro para a percepção estética.

Já há algum tempo que a fotografia é vista como um campo de reflexão possível, e não apenas como técnica de registro de produções anteriores. Contudo, parece-me que o mesmo processo ocorre com a formação de acervos. O discurso os coloca como protetores de algo que, sendo público, são competentes (bem mais que os órgãos públicos, segundo muitos) em guardar.

O que foge à discussão é o caráter constituinte, em termos de produção, que a própria formação do acervo, no caso uma coleção empresarial, desenvolve. É como se fosse possível que a produção não tivesse conexão com a circulação destas obras. Como se, novamente, o arquivo  pudesse ser neutro. Este arquivo que agora ativa a circulação destas obras, edita e produz demandas à produção global a partir de seus critérios estéticos, que ficam claríssimos aliás, e que não se querem questionáveis, justamente por serem de natureza privada. O aparelho fotográfico e seus meios de circulação, como os definiu Flusser, trabalham juntos em suas programações.

Tal também se aplica à fotografia utilizada pelos fotógrafos naturalistas, citados como referência. Teria sido a técnica fotográfica mero apetrecho para a ciência? O olhar fotográfico não produz um conhecer peculiar? Se a ciência partia do princípio de que a investigação da natureza deveria se dar pela observação dos fenômenos naturais, acreditar que a fotografia significava um ponto de vista neutro, donde se avistam tais fenômenos de modo impessoal, forneceu à ciência a autoridade sobre verdades que se revelariam mais tarde altamente questionáveis. Olhar para a natureza, registrá-la,  já era editá-la e transformá-la, assim como ocorre hoje com a própria produção fotográfica.

Assim me parece que os registros dos Becher são reveladores das contradições de um olhar cientificista; acabam justamente por falar, através de um olhar metódico e distanciado, de relações que certo cientificismo sempre tendeu a deixar de lado por temor de que pudessem contradizer os resultados esperados. Apontam para um conhecimento que resiste a ser computado como mero “dado”. Aliás, algo similar ocorre em trabalhos de primeira linha da exposição, como a série de fotos de Richter, que parece retirar da fotografia  poderes dos quais esta não se gaba inutilmente; o olhar totalizante, o ponto de vista privilegiado, naturalizado e naturalizável.

A fotografia que antes era vista como mídia, agora é vista como campo. No entanto é um pensamento fotográfico que parece ter sido transferido e ampliado para a esfera da cultura. E o que aparece como “dado” nas falas que representam a ação cultural nem sempre amplia nossa possibilidade de visão. Alguns bons trabalhos expostos, no entanto, não evitam esta discussão.