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Oficina de curadoria com Chus Martínez: Tão Sério como o Prazer - 11 a 13/08/2005

Um curador é um agente cultural que trabalha para que as artes visuais criem um espaço público de reflexão sobre questões contemporâneas. Como constituir instituições que sejam um espaço para essa prática? Quais as principais questões contemporâneas que esse espaço irá estudar? Por que a arte contemporânea é importante na expansão epistemológica? Como criar um vocabulário para difundir o discurso iniciado em uma exposição? Quais os critérios de seleção de obras em uma exposição?
Um dos fortes ecos do simpósio Padrões aos Pedaços foi o alerta de Teixeira Coelho sobre a necessidade de voltarmos a fazer perguntas. Ainda sob o impacto do simpósio, entre 11 e 13 de agosto cerca de 20 pessoas tiveram o privilégio de conhecer as perguntas que Chus Martínez, curadora da Sala Rekalde (Bilbao-Espanha) , elabora e responde com pitadas de ironia e alta concentração de inteligência. A fala de Chus Martínez é corpórea, obra total, e relatar o que foram esses deliciosos três dias em palavras exigiria no mínimo a sonoridade do castelhano, idioma que, depois dessa oficina, elegi como o melhor veículo para detonar idéias possantes com graça e sutileza. Então, na próxima vez que Chus Martínez estiver no Brasil, não se contente com relatos e brigue por um lugar na platéia.

Quais as questões contemporâneas que mais interessam a curadora de um espaço cultural que tem como vizinho o Guggenheim de Bilbao? A economia de meios, a resultante entre forças de poder e contra-poder, e os discursos da juventude. Esses três assuntos orientam a atuação de Chus Martínez na Sala Rekalde. E vale a pena ressaltar o óbvio: o curador deve saber o que lhe interessa, quais discursos deseja impulsionar, e como estruturar suas exposições para que o resultado não seja um desfile de obras mas sim uma análise das perguntas que certas práticas artísticas suscitam, lembrando que não existe um “curador independente” (hay solamente los comisarios desempleados): a prática curatorial é sempre dependente de instituições e contextos específicos, da rede da cultura, de interrelações.

No caso da Sala Rekalde, parece claro que os três assuntos que guiam as exposições aparecem tanto nos discursos suscitados pelas obras selecionadas quanto nos métodos do trabalho curatorial. Um exemplo sobre “economia de meios”: além de interessar-se por artistas que produzem com poucos recursos, Chus Martínez lança suas próprias estratégias para driblar a dependência de altos orçamentos. Um catálogo pode ser produzido em formato digital, em PDF, e enviado por email para milhares de interessados. A Internet é usada para estabelecer uma “rede de escuta”: avisar grupos específicos sobre eventos, publicações, idéias, que interessam especificamente a essa comunidade, criando assim conglomerados que, gravitando ao redor da instituição retro-alimentam suas ações, tornando-se parceiros além de público. Esses grupos podem ser contactados de forma barata, por exemplo em promoções de SMSs que as companhias telefônicas lançam periodicamente. Cadastra-se então 200 “amigos” que receberão os torpedos lançados pela Sala Rekalde.

A lista de pequenas ações de grande alcance é enorme e vai de contatos nos organismos de representação cultural (consulados) à construção de organizadíssimas listas de emails, em sub-grupos de interesse, evitando assim falar para uma multidão amorfa. Estabelecer uma instituição dentro de uma rede de parcerias que se encarregue de formar uma magnífica biblioteca de arte contemporânea solicitando catálogos aos organizadores de todas as exposições interessantes de que se tem notícia. Visitar todas as exposições de sua cidade, boas e más, para ter certeza do que interessa e do que não interessa, ler tudo o que passar diante de seus olhos, confiar que seu cérebro saberá selecionar o que deve ser absorvido, sem medo de contaminações por publicações medíocres, visitar frequentemente 5 ou 6 galerias e passar horas estudando portfolios dos artistas ali representados. E, como deixado claro por essa lista de ações de simples implementação, não temer a divulgação e compartilhamento de idéias e estratégias que posibilitem a formação de “contra-regras”.

Funcionando a poucos metros do Guggenheim de Bilbao e no país onde a Fundación La Caixa responsabiliza-se por exposições espetaculares de conteúdo nulo, a Sala Rekalde evita uma postura pessimista ou ressentida e parte para a ação refletindo sobre as condições contemporâneas que permitem o surgimento dos Gugguis e Caixas. Por que a classe média visita uma mega-exposição sobre Malevich que nada acrescenta ao pensamento contemporâneo (não estou aqui falando da obra de Malevich, mas de uma exposição que a utiliza para caracterizar a instituição cultural como um espaço de consumo de lazer) e não visita uma exposição de arte contemporânea que discute relações de poder? Como constituir um público para essa última instituição sem simplesmente impor outro modelo e sem compactuar com o modelo existente do museu-lazer? Chus Martínez sugere que se trabalhe com a premissa de que o público não conhece arte contemporânea, que é necessário criar um vocabulário para mediar o encontro do público com obras que co-habitem teorias sobre a contemporaneidade. Trabalhar com o pressuposto de que o público “não gosta” de arte contemporânea geraria a criação de indesejáveis mecanismos de defesa na instituição, ou de compactuação com modelos supostamente apreciados.

Chus Martínez sugere apresentar a arte contemporânea ao público como um “terceiro espaço”, ao lado do espaço do trabalho e do espaço do consumo. A exposição não pode ser oferta, pois não conseguirá competir com o espaço do consumo, tão pouco deve ser “oportunidade” para o artista que está expondo, para não se confundir com o espaço do trabalho. Como terceiro espaço, a exposição justamente deve investigar o tecido contemporâneo, fortalecer as redes de coletivos que se interessam pelos mesmos assuntos que a instituição, e que podem desencadear novos grupos interessados. Ao contrário de ser uma “rede de serviços” ofertando lazer ou pedaços de criatividade artística, a instituição pode atuar como uma rede de escutas, garantindo leitores que se interessam e conhecem o vocabulário dos discursos detonados pelas exposições. No lugar de buscar recordes de público, estabelecer marcos de diferença, que podem ser tão simples quanto o exemplo do Palais de Tokyo, que um dia por semana fica aberto até depois da meia-noite, atraindo um público que circula por Paris nesse horário.

O último dia da oficina foi dedicado a apresentação de obras de alguns artistas que interessam à Sala Rekalde, como Julika Rudelius, que filmou entrevistas com representantes da elite econômica holandesa, revelando um pensamento perigosamente conservador num país de legislação progressista ou Santiago Cirugeda, um “hacker da arquitetura” que analisa os códigos de construçãocivil para achar brechas que permitam, por exemplo, a construção de casas nas árvores de parques, para uso de sem-tetos .

As entrevistas de Covadonga Macias com jovens espanhóis, Iratxe Jaio com ativistas bascos e Vesselina Nikolaeva com a juventude búlgara confirmam a força do estilo documentário, também adotado por Solmaz Shabazi em seus filmes feitos em Teerã.

Nessas escolhas priorizando o documentário, Chus Martínez novamente confirmou o que me pareceu ser uma prática de bons resultados: procurar a mesma estrutura nas obras expostas e nas estratégias de funcionamento da instituição, nesse caso o interesse pelas redes de escuta, por discursos contemporâneos de grupos relacionados aos focos de interesse da Sala Rekalde: poder/contra-poder, economia de meios e juventude.

(por Paula Braga)

Leia também o relato da oficina de curadoria "O Museu Ideal", com Maarten Bertheux (Stedelijk Museum) e Martin Grossmann (Fórum Permanente), e participações de Ivo Mesquita e Felipe Chaimovich