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Mesa “Produzir e Fruir Arte”

Relato por Laura da Silva Monteiro Chagas

José Cavalhero iniciou sua fala com duas palavras-chave: incerteza e incômodo. Deixou-as no ar para desenvolver ao longo da apresentação e traçou um breve histórico do Instituto Rodrigo Mendes, pelo qual ficamos sabendo que este foi fundado pelo próprio Rodrigo Mendes em 1994, para partilhar sua experiência em utilizar a arte como um meio de transformação e re-significação e, dessa maneira, vislumbrar uma sociedade mais justa e mais humana. Em 1996, após reflexões e questionamentos sobre inclusão, o instituto deixa de atender apenas pessoas com deficiência e passa a atender todas as pessoas que queiram trabalhar com arte e viver na diversidade, tornando-se um centro de pesquisa. O setor educativo possui vários programas como, por exemplo, o Projeto Plural, que dá formação para professores da rede pública com a atuação de educadores na sala de aula, revendo e questionando constantemente as práticas de ensino, bem como cursos em museus sobre arte e inclusão.

Cavalhero trata mais detalhadamente do Programa Singular, que ele chama de gênese do instituto. Trata-se de ateliês com 12 vagas cada um, onde o ambiente é caracterizado pela mistura. Os educadores promovem o diálogo e a troca de experiências e conhecimento entre os alunos ao mesmo tempo em que os incentivam a desenvolver trabalhos individuais. O respeito pelas diferenças, pelo tempo de cada um e pelas diferentes auto-organizações pauta esse sistema de ensino-aprendizado onde todas as disposições valem tanto para quem freqüenta o ateliê quando para os educadores. O objetivo é lidar com a incerteza, aquela mencionada no início da palestra, e transformá-la em “mobilizadora de experiências” propondo mudanças de olhar, quebras de padrões e ensinando a não pré-julgar. Assim ocorre a inclusão, dando voz a todos e proporcionando o convívio social diversificado.

Neste e em outros projetos, os alunos têm experiências estéticas em diversas situações como em visitas a museus e ateliês, fazendo investigações da linguagem ou explorando recursos de luz e sombra. Cavalhero os chama de “artisteiros”, pois são pessoas que se relacionam com a arte. As trajetórias de cada um são documentadas e é feito um mapeamento tanto do ensino como do aprendizado. Os trabalhos são discutidos nas rodas de apreciação, que ocorrem todos os dias.

Na fala seguinte, a professora Amarílis Ferreira, da Escola para Surdos Rio Branco – mantida pela Fundação de Rotarianos de São Paulo e que atende crianças surdas provenientes de famílias de baixa renda na região de Cotia – relatou a experiência que teve ao acompanhar o programa Aprender para Ensinar, do Museu de Arte Moderna, onde os alunos surdos mergulharam no ambiente do museu, entrando em contato não só com aspectos expositivos como curadoria e montagem, mas também com artistas, com o fazer artístico e ainda discussões sobre arte. O processo trouxe desafios de linguagem por tratar de temas abstratos e de conceitos vastos e profundos. Em conseqüência disso, foram criados novos sinais para referir-se a termos que eram até então inéditos para esses estudantes, como “arte contemporânea”, “panorama” etc. A criação de sinais foi dada exclusivamente aos alunos, que passaram a sentir a necessidade de expressar-se com essa nova terminologia.

Amarílis lembrou que o curso proporcionou a criação de laços entre educadores e alunos. Nas manifestações artísticas, a proposta da arte contemporânea – transgredir – encontrou a dificuldade em estabelecer uma divisória entre o que podia e o que não podia ser feito. Aqui a confiança nos alunos prevaleceu, deixando esse limite a cargo deles, sabendo que não causariam estragos, por exemplo. Por fim, a professora ressaltou a importância de o educador ser também um artista e manter-se produzindo arte e refletindo sobre ela.

Primeiramente, José Valdemar Turna fez uma breve introdução sobre a Casa de Saúde São João de Deus, hospital psiquiátrico de uma ordem religiosa católica que possui casas no mundo inteiro – quatro delas no Brasil – sendo que nem todas são de atendimento psiquiátrico. O hospital em questão é de porte médio, possui 160 leitos e todos os pacientes são homens e maiores de 18 anos. Em seguida, trouxe à tona o preconceito que se têm em relação aos hospitais psiquiátricos e o preconceito, o estigma e o isolamento que cercam a doença mental, à qual se referiu como “um estrangeiro muito perturbador”. Iniciou então a leitura do seu relato sobre o Programa Igual Diferente, realizado há cerca de cinco anos em parceria com o Museu de Arte Moderna, no qual os pacientes trabalham esculturas de argila em grande porte, expostas no Parque da Luz.

A proposta do programa é de resgate, a terapêutica é secundária. Procuram, através dele, reflexos históricos, lembranças, organizações de um cotidiano como preocupação no vestir-se e a revisão dos próprios padrões de educação. O público é diverso – são 12 vagas divididas com outro hospital psiquiátrico – e composto por pessoas que já se supunham excluídas. As professoras são artistas renomadas e trazem outra dimensão aos encontros. José Turna utiliza então a seguinte passagem de Patch Adams para ilustrar os reflexos que se revelam tanto para os pacientes como para os terapeutas e professores:

Cada um que vem à casa é um cliente e também um terapeuta. Cada um precisa de ajuda física ou psicológica e nessa instância são clientes. Mas estes também cuidam dos outros. Isso faz deles terapeutas em sentido amplo. Pois todos, terapeutas e clientes, têm a intenção de contribuir de alguma forma com a vida do outro. Terapeuta é aquele que reconhece como tarefa primordial o cuidar de si e do outro.

São reflexos de si na história, na cidade e na arte. As atividades revelam pessoas participativas, mudam a rotina do hospital, refrescam as idéias trazendo algo de diferente e a percepção de que mesmo aqueles que não têm propensão à arte podem descobrir algo nela. Um participante contou à sua família que no ateliê ele garante seu “eu humano”, um humano útil, pois “já estamos por baixo demais, não é?”. Os trabalhos fazem as famílias entenderem como as pessoas conseguem aprender mesmo em épocas difíceis. Os pacientes vislumbram um futuro diferente do previsto. Quanto à continuidade do trabalho, segundo Turna alguns poucos conseguirão, outros dirão que não pertencem a esse espaço e não retornarão. Um terceiro grupo, que por motivos diversos habitam o hospital, “manterão o projeto como única vertente ativa, diferenciada e realmente importante em suas vidas”. As reações são positivas: um morador sente-se aliviado, quer fazer coisas. Outro, diz que é bom para a auto-estima, sente-se valorizado, promovido.

Ao fim da fala de José Turna seguiram-se primeiramente o depoimento e a pergunta de uma educadora que há cerca de 5 anos desenvolve projetos de ensino de arte em uma instituição de educação informal. Sua questão era se as outras linguagens artísticas também são trabalhadas nas instituições apresentaras. José Cavalheiro respondeu que no Instituto Rodrigo Mendes elas não são trabalhadas nos ateliês, mas estão presentes, através dos livros e músicas que os alunos levam para as discussões. Em seguida uma das professoras do Programa Igual Diferente também deu seu depoimento, contando que procura sempre igualar as inteligências na sala, e despertar o desejo de criar ou de pensar sobre arte, tentando desmistificá-la eliminando o peso que a arte e os museus têm por serem encarados muitas vezes como elitistas e ajudando os alunos a se entenderem como produtores e pensadores de arte.

A fala de José Cavalhero foi bastante longa e ilustrativa. Merece atenção o fato do instituto receber em suas oficinas quem quer que deseje trabalhar com arte, seja uma pessoa com deficiência ou não. Quantas instituições especializadas não poderiam potencializar o movimento de inclusão abrindo suas portas para todas as pessoas poderem freqüentá-la? Pois a inclusão deve ocorrer dos dois lados – tanto nos museus e escolas regulares como nas instituições de atendimento a pessoas com necessidades específicas. Esse convívio com a diversidade em diferentes ambientes só traz benefícios à sociedade.

Já Amarílis foi bastante sucinta na sua fala, que talvez pudesse ter sido um pouco mais profunda. Ainda assim, ela conseguiu transmitir a dimensão do desafio que é tratar um tema tão abrangente que é a arte contemporânea e complementou muito bem os depoimentos dos jovens surdos, os vídeos e a palestra da educadora Joana Zatz sobre o mesmo projeto.

Das três apresentações, talvez a de José Valdemar Turna tenha sido a mais emocionante. Apesar de ter feito uma leitura – prática que costumo reprovar – sua fala prendeu a atenção do começo ao fim. Era um texto difícil, com referências que podem não ter sido compreendidas por todos, tratando um tema bastante delicado – nem mais nem menos que qualquer outro tratado no encontro, porém arrisco dizer que, comumente, o sentimento que se têm do doente mental é diferente daquele alimentado em relação às pessoas com deficiência.

Em todas as situações apresentadas na mesa a relação professor-aluno tradicional foi deixada de lado, dando lugar a uma postura mais aberta e flexível, que assume que todos têm algo a aprender e algo a ensinar, dando assim a prioridade ao diálogo e à convivência. Por fim, é inquestionável o quanto a arte se beneficia da diversidade, o quanto se enriquece com ela, e também do contrário, do potencial transformador que a arte tem na vida das pessoas, mesmo na das que não sentem nenhuma inclinação especial pelo fazer artístico. Tudo que vimos até aqui foram vias de mão dupla, trocas de experiências, vivências e conhecimentos diferentes em uma relação de igualdade de direitos. Assim deve ser o princípio da acessibilidade e da inclusão.