Encontro Paulista de Museus: a construção de um legado chamado continuidade

Claudinéli Moreira Ramos Coordenadora da Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico, de 2008 a 2013

Claudinéli Moreira Ramos

2021

Coordenadora da Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico, de 2008 a 2013

Sumário Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de MuseusEncontro Paulista de Museus

 

O Encontro Paulista de Museus foi uma das consequências mais frutíferas do processo de reestruturação vivenciado a partir de 2008 na Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico (UPPM) da então Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo (SEC-SP). Parte decisiva de seu sucesso deve-se ao esforço de inúmeros atores para manter viva, ao longo dos anos, a intenção de garantir a defesa e valorização do patrimônio museológico de São Paulo e do Brasil a partir de políticas públicas de estado.

Em 2007, José Serra assumia o governo paulista, nomeando João Sayad seu secretário da cultura. Começava ali a reorganização administrativa da pasta à luz do Decreto n. 50.941/2006. Esse marco imprimiu a transformação da secretaria, que deixava de ser um órgão tentativamente executor para tornar-se gestor e indutor de políticas culturais. Foram tônicas dessa mudança: a permanência de um número menor e estratégico de ações sob execução direta da administração pública (sobretudo ligadas à preservação do patrimônio histórico); a reconfiguração da política de incentivos organizada sob o Programa de Ação Cultural – PAC, mais tarde renomeado Programa de Ação Cultural – Proac; e a crescente adoção do modelo de parceria com organizações sociais, que, ao cabo desse processo reestruturador, abrangeria todos os equipamentos culturais, todos os grupos artísticos e os principais programas de ação da secretaria.

Outro desdobramento dessa alteração de rumos foi uma profunda revisão do corpo de servidores da pasta, com alteração de praticamente todos os cargos de liderança e a vinda de novos funcionários concursados. O organograma foi modificado e um novo planejamento estratégico foi elaborado em 2007, do qual apenas a missão foi assimilada e tornou-se norteadora das ações em curso:

 

A missão da Secretaria de Estado da Cultura é formular e implementar políticas públicas visando à excelência na preservação do patrimônio cultural, no estímulo à produção artística e na garantia de acesso aos bens culturais para a população do Estado de São Paulo em toda a sua diversidade[1].

 

Esse afã remodelador incluía outras inovações. Assim, para coordenar a área de museus, foi feito um processo seletivo capitaneado por uma agência independente, a IDH Ltda., que durou quatro meses e envolveu testes e entrevistas diversos, e a elaboração de um perfil sociocognitivo-emocional usando indicadores como o MBTI (Myers-Briggs Type Indicator Trust). Assim fui selecionada para coordenar a UPPM, assumindo o cargo em janeiro de 2008.

Com o secretário Sayad e seu adjunto, Ronaldo Bianchi, grande defensor e entusiasta da área museológica, combinei as diretrizes que seriam a base desse trabalho: reorganizar a unidade de maneira a garantir que funcionasse com eficiência e agilidade; trabalhar com planejamento e foco no resultado, contribuindo para a desburocratização de processos e para a eliminação de velhos vícios do serviço público, e fazer o que fosse preciso para a área funcionar melhor no cumprimento de suas finalidades, com ética e respeito ao interesse público.

Iniciei a reestruturação da UPPM por um diagnóstico, uma reforma do espaço físico em que atuava a equipe e a proposição de uma mudança de cultura organizacional, assumindo como balizador conceitual a definição de museu do International Council of Museums – Icom[2] e, como método, a construção participativa da política de museus, ancorada em diálogo, aprendizado conjunto e busca da superação de divergências e conflitos pela construção do melhor consenso possível para mitigar carências e viabilizar melhorias.

Em termos práticos, no primeiro momento isso se traduziu na criação de comitês de trabalho, no estabelecimento de uma agenda de reuniões internas e outra de atividades de capacitação – primeiro dos muitos movimentos de união entre teoria e prática que faríamos – e na organização de vários fóruns de interlocução com as equipes de museus da secretaria, tanto aqueles ainda geridos diretamente quanto os que já estavam sob parceria com OSs. Era preciso compreender a casa e pensar estratégias de diálogo, correção e aprimoramento.

Antigos funcionários que atuavam na UPPM há décadas e jovens concursados que se somaram a essa empreitada foram essenciais para que pudéssemos avançar. Em nome da museóloga Beatriz Correa da Cruz, que meses depois deixou a unidade; de Sildéia Maria Pereira e Cristiane Batista Santana, que atuaram na UPPM com brilhantismo durante muitos anos, e de Luiz Fernando Mizukami, que chegou com os novos concursados e lá continua até hoje, investindo numa carreira exemplar na área museológica, saúdo com gratidão e reconhecimento a todos os que fizeram parte daquele esforço de reflexão e edificação.

O próximo ato foi no sentido de conhecer melhor o setor museal no estado, ali já pensando na reorganização do Sistema Estadual de Museus de SP, o Sisem-SP. Inúmeros frutos nasceram desse processo, que contou inicial e incansavelmente com o talento e a dedicação da museóloga Cecília Machado, primeira diretora do Sistema nessa nova fase. Com ela e a querida museóloga Juliana Monteiro concebemos a ideia de realizar encontros anuais para a discussão de políticas públicas voltadas aos museus paulistas e brasileiros.

Não seria errado dizer que a iniciativa não era nova, seja porque já tinham sido feitos alguns eventos similares em épocas distantes, quando a unidade ainda era denominada Dema, o Departamento de Museus e Arquivo, seja porque o Ministério da Cultura, por meio do Departamento de Museus e, mais tarde, do Instituto Brasileiro de Museus, promovia os Fóruns Nacionais de Museus desde 2004. Aliás, cabe salientar que, apesar de consideráveis diferenças políticas, o Ibram nunca se furtou a participar ativamente do EPM. José Nascimento Jr., Mario Chagas, Eneida Braga, Rose Miranda e Rafaela Gueiros, entre outros representantes ilustres, estiveram conosco e contribuíram para ampliar o debate democrático e qualificado em torno das políticas públicas de museus no país.

Mas também estará certo quem afirmar que a iniciativa era uma tremenda novidade: não se tratava simplesmente de um evento de e para a área de museus, não era apenas uma reunião técnica ou acadêmica e nada tinha de despretensioso. Ao contrário, suas articulações visavam inserir a pauta museal na agenda cultural mais ampla e em debates mais decisivos das políticas públicas de maneira geral. A intenção desde a origem era realizar um encontro para operar transformações.

Nessa direção, convidamos secretários de estado e outras lideranças de setores como educação e direitos das pessoas com deficiência; realizamos encontros de prefeitos e secretários municipais de cultura durante os EPMs e procuramos articular representantes privados diversos, de grandes patrocinadores culturais a fornecedores especializados do setor.

É divertido lembrar o espanto com que alguns colegas reagiam, quando indicávamos as ambições principiantes. A primeira resistência a vencer foi a escolha do local: “Como assim o auditório Simón Bolívar? Ele é imenso... Veja, se tivermos 200 pessoas o evento será um sucesso, mas parecerá que não, porque o público ficará disperso”. Nossa resposta era sempre a mesma: “nada menos de 700 pessoas é um público aceitável para esse encontro”. Havia também quem era contra convidar prefeitos e secretários e quem achava inviável, enfim, querer “tanta coisa” de uma área sem tradição de organização e protagonismo na cultura paulista[3].

O primeiro EPM aconteceu nos dias 17, 18 e 19 de junho de 2009, no auditório Simón Bolívar do Memorial da América Latina, como primeiro de uma série de encontros em que foi possível transformar em realidade muita coisa que era tachada de impossível para o setor dos museus. Foi assim que tivemos, para falar apenas dos cinco primeiros eventos, sempre mais de 700 participantes presenciais, incluindo a presença e o engajamento de inúmeros prefeitos e secretários, valendo salientar que essa aproximação teve como um de seus legados mais duradouros a “cooptação” para a área museológica de Davidson Kaseker, à época secretário de cultura de Itapeva que, depois de anos de dedicada atuação como representante na região do verde sudoeste paulista, aderiu definitivamente ao setor e é diretor do Sisem-SP desde 2013.

Assim, sem que a SEC nunca tivesse se responsabilizado pelos custos de translado e estadia dos participantes, vinham para o EPM pessoas de todos os cantos do território paulista e de diversos outros estados. Gente que sempre trabalhou em museus, gente que começara havia pouco, quadros muito qualificados e outros tantos com grande interesse e poucos recursos de todas as naturezas.

O EPM tornou-se um lócus de grande intercâmbio e aprendizado conjunto, mas, acima de tudo, posicionou-se como ponto de encontro das discussões políticas da área de museus em São Paulo. Quando alguém questionar a capacidade de a área cultural se organizar num estado grande como o nosso, vale observar o trabalho desenvolvido a partir da criação das representações regionais, que conciliam ação local com suporte técnico qualificado, intercâmbio e composição de apoios. Para quem disser que a participação dos trabalhadores do setor não é viável no campo das políticas públicas, vale lembrar que os representantes regionais e parte dos conselheiros de orientação do Sisem-SP são eleitos diretamente nos EPMs e têm seu trabalho articulado a conselheiros de orientação indicados pelas principais entidades representativas do setor no estado, contribuindo para potencializar a diversidade de atores do território e para qualificar demandas, ações e resultados.

O EPM seguiu contrariando quem acreditava que reuniões assim não mobilizariam nem modificariam velhas políticas. As demandas por editais voltados a museus eram históricas na pasta, mas tornaram-se realidade, por meio do Proac Museus, a partir da mobilização realizada nos Encontros Paulistas. Articuladas ao processo de reestruturação da UPPM, as propostas debatidas a cada EPM desdobraram-se em um novo decreto do Sisem-SP, no lançamento de diversas publicações que hoje são bibliografia nos principais cursos de museologia do país e em um legado de obras de infraestrutura, circulação de exposições itinerantes, iniciativas de capacitação e assessorias técnicas por todo o estado, além de um amplo mapeamento museal, que possibilitou verificar in loco 415 museus em 190 municípios paulistas. A Política Estadual de Museus de São Paulo e o Cadastro Estadual de Museus de São Paulo são apenas mais dois exemplos de desdobramentos muito preciosos da evolução das discussões pautadas no EPM, bem como a plataforma www.sisemsp.org.br, possivelmente um dos melhores repositórios referentes a políticas públicas de museus no mundo.

O engajamento das organizações sociais no EPM foi outro fator que concorreu para seu sucesso. A Acam Portinari tornou-se a grande parceira na realização do encontro, sob a liderança esmerada e cuidadosa de Angélica Fabbri e Luiz Antonio Bérgamo, mas é necessário reconhecer que todas as OSs de museus sempre estiveram presentes e atuantes, fortalecendo um dos pressupostos da reorganização da UPPM: que cada museu da SEC-SP fosse um membro ativo do Sisem-SP.

O EPM nasceu para sobreviver a cada uma e a cada um de nós, que estávamos em sua origem. Por isso, desde o começo a ênfase em empoderar os agentes do setor, em criar estratégias de aproximar e manter sua colaboração, em assegurar utilidade aos diversos perfis de pessoas e instituições envolvidas. Por isso também foram buscadas parcerias com organismos museológicos e culturais de relevância nacional e internacional, como o Icom-Brasil, o Conselho Regional de Museologia da 4ª Região, a Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento – Aecid e o British Council, que auxiliaram muito a viabilizar a vinda de renomados expoentes nacionais e internacionais, sendo necessário reconhecer a qualificada e atenciosa mediação feita por Carlos Roberto Brandão, Maria Ignez Mantovani Franco, Ana Sílvia Bloise, Ana Tomé, Lucimara Letelier e Luiz Coradazzi junto a essas instituições.

Na mesma perspectiva, sob a excelente condução de Martin Grossmann e a dedicada atuação de Leonardo Assis, a parceria com o Fórum Permanente, aliado de primeira hora, foi desde sempre decisiva para assegurar o registro, a extroversão e a preservação da memória de cada Encontro Paulista de Museus. Se tais registros constituem sempre um legado valioso, dadas as alternâncias regulares no poder público, sua preservação e disponibilização na conjuntura atual representam um antídoto à negação da importância do setor museal e um manifesto em defesa das políticas públicas de cultura. Vale acrescentar que o Fórum Permanente atuou ainda para evidenciar o interesse nacional e internacional nos EPM, contando sempre com públicos expressivos, duplicando ou até triplicando o alcance do Encontro por meio de transmissões via internet em tempo real.

O esforço pela continuidade funcionou. Os secretários João Sayad, Andrea Matarazzo e Marcelo Araújo – para citar apenas os três titulares da cultura com os quais tive a grata oportunidade de atuar coordenando a área de museus – não deixaram de apoiar e prestigiar o encontro, que teve continuidade e novos desdobramentos sob a gestão de Renata Motta e, depois, de Regina Ponte, dedicadas colegas que assumiram a coordenação da UPPM depois de mim e com as quais tive a satisfação de atuar em parceria, ao assumir a tarefa de implantar e coordenar a então recém-criada Unidade de Monitoramento da SEC-SP.

Atuei ativamente na concepção e coordenação dos quatro primeiros EPMs e na formulação do quinto. Acompanhei com alegria e orgulho o desenvolvimento dos seguintes. Saí da Secretaria da Cultura 11 anos após chegar a uma unidade de museus muito diferente daquela da qual eu me despediria em dezembro de 2018. Muita coisa mudou desde então, a começar pelo nome da secretaria. O EPM também mudou – tornou-se uma edição itinerante em 2019, o EPM Interior, e, forçado pela pandemia de coronavírus, converteu-se em edição virtual em 2020 –, mas não deixou de continuar. O segredo dessa longevidade? A dedicação das servidoras e servidores que atuaram e atuam na UPPM e nos museus da SEC gerenciados em parcerias com organizações sociais de cultura; a dedicação dos representantes regionais e conselheiros do Sisem-SP; a qualidade do trabalho apresentado à área museológica paulista e brasileira; a adesão dessa área, que colabora propondo e participando dessa construção ano a ano, com renovado interesse; e a compreensão das chefias políticas da Secretaria da Cultura quanto à relevância de tudo isso.

Cada um desses fatores contribuiu para que o Encontro Paulista de Museus desse passos importantes rumo ao que nós sonhávamos lá atrás, algo com que sonham tantas trabalhadoras e trabalhadores da cultura: que nossas políticas públicas sobrevivam, floresçam, avancem de políticas de governo para políticas de estado e contribuam para qualificar nossos processos e resultados em favor do interesse público, do desenvolvimento cultural e do bem comum. Há ainda muito por construir e por consolidar, e não são pequenas as ameaças e dificuldades, num país que vê seu setor cultural sob ataques e difamação. Porque tantos perigos existem, também é preciso celebrar cada conquista. Que as pessoas que constroem a área de museus no dia a dia de São Paulo possam tornar o EPM cada vez mais um recurso de diálogo e proposição nos enfrentamentos do percurso e na busca de melhorias para todos. Vida longa e próspera ao Encontro Paulista de Museus.



[1] Com ajustes mínimos, essa missão permaneceu divulgada ao público pelos canais oficiais da SEC-SP, com destaque para o sítio eletrônico www.cultura.sp.gov.br, de 2007 a 2018.

[2] “Um museu é uma instituição permanente e sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, pesquisa, comunica e exibe o patrimônio tangível e intangível da humanidade e seu meio ambiente para os fins de educação, estudo e lazer”. (Icom, 22ª Assembleia Geral, Viena, 24 de agosto de 2007).

[3] Passados 12 anos do 1º EPM, muitas dessas pessoas hoje dizem que tudo o que foi feito e segue adiante “aconteceu” porque a área de museus é mais fácil e mais organizada. Essa é uma imagem de força que se projeta quando uma mudança cultural é assimilada. Hoje a área de museus é bem mais organizada do que há 12 anos. Essa conquista, porém, é uma história que precisa ser bem conhecida, celebrada e defendida, para que não volte o risco de ser necessário começar tudo outra vez.