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Relato Crítico: Mesa 3 "Fazendo juntos – Processos participativos" – Sobre a estetização do público pelo museu

Relato Crítico por Nícolas Mangolim

Coordenação: Gilberto Mariotti

10º Encontro Paulista de Museus | 18 a 20 de julho de 2018 | Memorial da América Latina

19/07/2018 | 14h | Auditório Simón Bolívar

Mesa 3  "Fazendo juntos – Processos participativos" com Mariana Esteve Martins (Museu da Imigração), Djalma Pena (Museu dos Esportes de São José dos Campos) e Daniela Alfonsí (Museu do Futebol).

Mediação: Andrea Buoro, diretora executiva do Intermuseus

 

Sobre a estetização do público pelo museu[1]

 

Uma indagação é feita, logo ao início da mesa, sobre como se dão, no caso dos “museus que já nascem institucionalizados”, os caminhos em direção aos ditos processos participativos, em contraste aos museus que surgem já sob a égide desses processos – que, caprichosamente, são na ocasião chamados de “orgânicos”.

De saída, devemos manter em mente que poucos museus brasileiros possuem, em sua história de formação, amplos projetos que convergem em uma instituição vigorosamente prevista.  Argumentar sobre museus que já nascem “institucionalizados”, na grande maioria dos casos, pode significar cair sobre o erro de ignorar a dose de contingente histórico que os processos de formação dos museus guardam.

Vale lembrar, como exemplo, do caso da Pinacoteca do Estado de São Paulo, um dos museus públicos mais antigos da cidade (de arte, o mais antigo), cuja história, do modo como se constituiu, nos exibe persistentes esforços em direção à sua institucionalização – foi primeiro edificada para ser Museu do Estado em 1873; logo se torna o Liceu de Artes e Ofícios, que começava a ministrar as aulas de artes aplicadas em 1874, em um prédio adaptado na Rua São José, concomitantemente e responsivas ao processo de reestruturação do tecido social de São Paulo, que já apresentava latentes anseios por compensar o atraso de sua feição rural, face à vontade cosmopolita do progresso positivista, quando ainda alçava sua rede ferroviária e somente começava a lançá-la à autocompreensão de sua geografia, em um país de forte história colonial e ainda escravocrata; em 1900 é entregue ao Liceu uma sede definitiva, na Praça da Luz, com o prédio incompleto e que nunca viria a se completar de acordo com o projeto inicial do escritório de Ramos de Azevedo, e passa a dividi-lo em 1905 com a recém criada Galeria de Pintura do Estado - Pinacoteca, com acervo composto por 26 telas. A Pinacoteca do Estado de São Paulo vai adquirindo, aos poucos, uma obra cá, outra acolá, e por vezes tem seu acervo disperso, devido à ocupação do prédio pelo exército em momentos de revolução ou por mera ocasião de reforma; reabre em outra sede, para voltar àquela primeira, então ocupando-a sozinha, mas não definitivamente sozinha, até a reforma de 1994, com projeto de Paulo Mendes da Rocha.

Tudo isso para reclamar o fato de que o longo e árduo processo de institucionalização, desse e de tantos outros museus brasileiros, deve carregar consigo a materialidade histórica a ser rebatida muito mais justamente a uma noção de “organicidade”, constituindo-se nas rebarbas de uma, algumas vezes mais forte, noutras menos, memória coletiva urgente de captação do momento presente em espaço assegurado para as coisas da história.

É, dessa forma, aí que devemos reivindicar o espelhamento do espectador no objeto espectável irrompendo em uma relação de cumplicidade, sem com isso pretender que devam se manter apaziguados um em relação ao outro, mas, isto sim, compreender que participam um do outro porque assistem ao mesmo processo histórico de musealização dos objetos no mundo.

Se se tornam orgânicos, nesse sentido, portanto, não o são por preverem uma natureza – que se crê isenta de etiqueta, de convenções postas ao comportamento e ordenação da atenção do espectador – para os espaços que recebem o contato desse espectador com o objeto, como querem aqueles que cedem à aceitação dos processos participativos como a democratização do espaço expositivo.

O grave risco de aceder a isso é o de, quando lhes é demonstrada resistência a seus mecanismos de catarse, ao concederem forma à opinião pública, serem desmentidos em sua utopia de um espaço público com a inscrição de uma suástica num mural do Museu da Imigração, como relatado por Marina Martins, dentre outras manifestações de ódio. Acontece que elaborar esse espaço utópico é também prepará-lo, como ocorre em qualquer espaço público que se pretende igualmente asséptico, para que, como uma tela em branco, se apresente livre para receber quaisquer manifestações simbólicas.

Isso, por certo, transfigura a percepção do próprio espaço como superfície de imagem, mas de maneira que os códigos artificiosos que compõem o entendimento de uma superfície são, aos olhos dos mais desavisados, omitidos, fazendo com que esse campo metafórico, repleto de teatralidade, se passe por experiência.

Perde-se, assim, a dimensão projetiva que se carrega consigo ao adentrar um espaço expositivo, e com isso nos deparamos com um grande público que, ávido por capturar algo da relação do presente com o passado, apressa-se em encontrar a si próprio, ou algo de sua condição no presente, representado musealizado, até se convencer de que de fato vislumbrou o passado se redimir no presente.

Um exemplo disso pode ser a exposição Cartas de chamada de atenção, realizada em 2015 pelo Museu do Imigrante, que consiste na ampliação de cartas que relatam a experiência de imigração de africanos recém-chegados no Brasil. Para além do tom de solução de compromisso, devido à falta de material sobre a recente imigração de africanos para o país, a exposição consiste em um único procedimento: cartas de chamada, redigidas por alguns desses imigrantes que atendiam a aulas de português no Arsenal da Esperança, instituição que divide o terreno da antiga Hospedaria do Brás com o Museu, ampliadas em tamanho muito grande e postas dependurando do teto. Desse modo, as cartas parecem adquirir escala suficiente para que consigam somente apelar ao corpo o tanto necessário para falsear seu alcance público, condicionado pela impressão de monumentalidade, pouco importando se elas, afinal, mantêm na escrita a vaidade das proporções íntimas de uma carta.

Por outro lado, a chamada pública para o recolhimento de cadernos de receitas compreende quase na integralidade a noção de participação que naturalmente haveria de caminhar junto a história constitutiva dessa instituição, de modo que deve operar sendo capaz de conferir cidadania, porque engendra indivíduos e histórias particulares na construção de um acervo dos mais diversos bens culturais. Não podem escapar à lida com essa memória afetiva – mesmo a patrimonialização do esporte deve passar por essa reflexão crítica, de modo que a coletividade que surge da várzea não se resume senão como espaço de sociabilidade que se apressa em se tornar memória afetiva.

 

No caso tanto de um museu do esporte quanto de um da imigração, eles possuem em comum o fato de que, mesmo que por vezes causem estranhamento quanto à vocação de seus espaços expositivos, são museus cuja própria existência se explica em função de disponibilizar uma imagem prestes a se tornar signo de identidade.

Entretanto, ainda se ocupam de indagar se esses lugares podem servir como uma Panaceia.  Como condição de existirem, devem pensar seus próprios objetos de modo a não apartar disso qualquer pensamento sobre a história do próprio museu. E talvez mantenham, por isso, lugar privilegiado para se atinar com estudos sérios sobre figuras de alteridade, de uma cultura periférica, quase sem saída de ser fragmentária.

 



[1] Relato crítico escrito em ocasião da mesa “Fazendo juntos – processos participativos”, composta por Mariana Esteves Martins, coordenadora técnica do Museu da Imigração, Daniela Alfonsí, diretora técnica do Museu do Futebol, Djalma Penha, funcionário do Museu dos Esportes de São José dos Campos e mediada por Andrea Buoro, diretora executiva do Intermuseus.