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Auto Representação, Cultura Expandida e Comunicação Museográfica

relato por Beto Shwafaty

Palestra de Massimo Canevacci

 

A palestra de Massimo Canevacci deveria tratar inicialmente do lançamento de seu novo livro, porém sua fala assumiu outra direção: refletir sobre o significado atual do trabalho de campo e dos museus antropológicos e etnográficos quando se debruçam sobre nossos entornos mais próximos e não apenas sobre aqueles aparentemente distantes, das aldeias indígenas e rincões inexplorados do país. Organizando sua palestra em torno de três conceitos chaves – e que deram o titulo à sua apresentação: auto-representação, cultura expandida e comunicação museográfica – Canevacci defendeu uma postura dialógica e reflexiva. Sua fala foi, ao mesmo tempo, acessível e inquieta, mas não menos complexa ou questionadora acerca da constituição e disseminação dos diversos fluxos de representações sociais e culturais.

Massimo inicia com a observação de que todo museu, em certa medida, possui um lado necrófilo, e contrapõe tal característica à imagem de ‘Paulinho’: um integrante do povo Borôro que utiliza o vídeo como instrumento de (auto)representação para documentar e representar sua vida e cultura local. O contraponto entre formas de atuação estáticas com outras mais dinâmicas e relacionais permeou diversos momentos da apresentação de Canevacci. Um ponto fundamental em sua fala tocava na necessidade de estabelecer um campo dialógico entre aldeia e metrópole, sendo tal relação de importância para os museus etnográficos, pois neste cenário, tanto as culturas indígenas quanto os ambientes e culturas urbanas contaminam-se através da utilização crescente de meios tecnológicos-comunicacionais que ganham cada vez mais espaço como instrumentos de produção na (e da) vida diária, seja nas aldeias quanto nas metrópoles.

Para Massimo, era importante frisar que a noção de pesquisa dialógica, como ele a vê, não é baseada em uma ‘conversa organizada entre os interlocutores envolvidos’ ou mesmo entre observador e seu objeto de interesse; ou numa ‘fala e escuta’ que almeje encontrar consenso; mas esta consiste em colocar-se ‘num certo estado de tensão e conflito’  que difira de um diálogo propenso à passividade da observação. Canevacci frisa que tal estado de ‘tensão e crise’, ou seja, de colocar-se em crise quando em trabalho de campo (sem esperar um terreno seguro ou pré-determinado) pode gerar ‘conflitos comunicacionais, polifonias dissonantes, tensões sincréticas e fluxos digitais’ que, enquanto práticas ‘dissonantes’ possuem o potencial para abrir novos canais de transformação e de produção de sentido na observação e interpretação de uma realidade específica, afastando-se de concepções pré-estabelecidas influenciadas por diversos conflitos contemporâneos. Este comportamento conflitual pode ser assumido como fator transformador numa potencial geração de novos fluxos cognitivos, interpretações e criações de realidades, tanto para o antropólogo e para o museu quanto para o sujeito contemporâneo, quando este se auto-representa.

 

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Cloud Gate, 2004/2006. Escultura de Anish Kapoor situada no Milueniun Park, em Chicago - EUA.

 

Em uma comparação entre imagens de uma escultura de Anish Kapoor (escultor anglo-indiano) que está na cidade de Chicago com duas imagens da cultura Xavante (de uma oca tradicional e outra onde se realiza o ensino de comunicação digital), Massimo busca criar uma tensão contínua sobre aquilo que é experimentação nos campos da cultura urbana, arte, arquitetura, moda e tecnologia; apontando que também as culturas indígenas atuais estão sob influência destes campos e as praticam, o que resulta em um processo de profundas e rápidas mudanças nos modos como estes povos negociam suas existências e representações. Massimo introduz rapidamente uma reflexão sobre o início da etnografia, debruçando-se sobre alguns aspectos da figura de Malinowski[1], desenvolvendo uma série de observações sobre este início da etnografia, que, em sua visão, constitui-se de modo complicado e contraditório quando observada a partir de dois eixos relativos à própria figura e trabalho de Malinowski: a primeira ligada aos textos de caráter ‘científico e objetivo’ deste pesquisador (ligados, por exemplo, à criação do conceito de funcionalismo); e um outro que trata dos diários de Malinowski publicados posteriormente, e nos quais suas observações apresentavam uma outra esfera de conotações subjetivas (e até depreciativas) em relação aos indivíduos que pesquisava. Esta nova visão sobre o antropólogo revelou contradições entre a ‘personagem’ do pesquisador ‘neutro e distanciado’ e sua subjetividade enquanto indivíduo com opiniões imbuídas também de pré-conceitos e ideologias. A cisão entre um discurso oficial e uma visão preconceituosa causam uma crise na Etnografia, que passa a questionar os preceitos de objetividade e exatidão do trabalho de campo e suas posteriores traduções. Este pareceu-nos um dos casos ilustrativos da afirmação de Canevacci sobre a necessidade de atentar para o comportamento ‘conflitante dialógico’ em contraponto a uma observação mais passiva e distanciada que almeje um estudo unilateral de cunho não conflitante e até consensual.

Massimo também observa que a etnografia é como uma arte de escutar e observar, ponderando sobre a impossibilidade de ser imparcial na pesquisa de campo diante do desafio de interpretar e traduzir aquilo que se coloca à nossa frente. Essa arte deve ser então também reflexiva, não deve restringir-se apenas ao ato de observação externa, mas refletir sobre o próprio ato e, assim, observar e escutar (analisar) a si mesmo (o que ele considera como o ‘lado obscuro’ do trabalho de campo etnográfico: a dimensão subjetiva do etnógrafo). Essa dimensão reflexiva torna-se então o cerne da antropologia contemporânea e, consequentemente, também o é para o museu contemporâneo, enquanto este deve refletir simultaneamente sobre seus conteúdos e sobre suas próprias formas de atuação: ao mesmo tempo em que se exibe algo deve-se também refletir e narrar a maneira como este algo é trazido a público, mediado e apresentado (a criação da exposição). Manifestar esses ‘lados obscuros’ e as ações e formas utilizadas nas construções e representações museológicas torna-se, segundo Canevacci, um dos desafios dos museus etnográficos contemporâneos (e acredito ser esse um desafio que se amplia a todas as tipologias de museus, não só aos etnográficos).

 

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Bronislaw Malinowski durante a sua viagem para as Ilhas Trobriand, na Melanésia, onde elaborou a teoria do funcionalismo.
 

No decorrer da apresentação, Canevacci introduz a noção de composição, na qual identifica que a maneira de construir os dispositivos do museu devem ser mais compositivos[2] que narrativos: uma tentativa de aplicar a noção dialógica, como apresentada por ele, sobre a polifonia das manifestações e linguagens pluralizadas que dão forma à pesquisa. A composição implica numa multiplicidade de linguagens as quais utilizamos para compor um corpo à pesquisa, a fim de sermos capazes de abordar e traduzir os diversos níveis das manifestações culturais presentes nas culturas e ambientes de estudo abordados pelo trabalho de campo, assim como em seu decorrente processamento reflexivo e expositivo. Canevacci pondera ser impossível não utilizar hoje, por exemplo, a cultura digital para enfrentar não somente os desafios do museu, mas de qualquer tipo de pesquisa de campo e suas posteriores traduções. Também frisa que, para os museus, a dimensão tátil parece ser um elemento a ser explorado e introduzido, pois ajudaria o visitante a se aproximar e entender esses sistemas e suas produções (museográficas) a partir de níveis perceptivos, cognitivos e materiais mais diversificados e experimentais.

 

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Monumento Mínimo, ação urbana da artista Néle Azevedo, iniciada em 2001 e realizada em diversas cidades.

 

Em outra sequência, algumas imagens do trabalho da artista Néle Azevedo são utilizadas por Canevacci para estabelecer certas aproximações entre manifestações da arte contemporânea com o campo museográfico da etnografia. O trabalho específico de Azevedo - pequenas figuras humanas feitas em gelo que ao serem instaladas em espaços públicos derretem e reagem de formas diversas - é para Canevacci um elogio à temporalidade e processualidade, assim como uma crítica sobre a monumentalidade da arte. Nesse descongelamento das figuras de Azevedo, Canevacci observa um exemplo de como a arte não deve ser ‘bloqueada e congelada, mas deve se mover e transforma-se, transformando assim o sujeito que a acessa’. Importa o ato de descongelar-se diante de uma obra de arte. Nesse paralelo, Canevacci chama atenção que também o museu etnográfico e antropológico deve descongelar-se, questionando e transformando a sua própria identidade. Essa é uma de suas grandes belezas, afirma: uma produção cultural (de arte) que desafie sua própria identidade tem o poder de mobilizar tanto a sensibilidade, quanto a identidade e a cultura na qual se insere.

Apresentando os casos de Kleber Meritororeu (um Borôro da aldeia Meruri) e o de Divino Tserewaru (um video-documentarista Xavante) Canevacci aborda assuntos relativos a auto representação e a luta por autonomia dos sujeitos pertencentes às culturas ameríndias frente a outra (ocidental) que as procura mediar e senão controlar. Seja utilizando a câmera videográfica[3] ou a comunicação digital, Kleber faz uso destes meios na luta pela autonomia de representar e reconstruir sua identidade a partir de seu próprio universo de referências e cultura. Através destes, ele busca afirmar a autonomia da sua visão de mundo e da cultura Borôro, seja em relação aos missionários salesianos, ao antropólogo, quanto aos fazendeiros e políticos locais (estes últimos, como sabemos, com interesses conflitantes em relação às comunidades indígenas e a posição de suas aldeias, reservas e terras). Canevacci nos mostra imagens diferentes de Kleber, ora pintado para uma cerimonia funerária, ora trabalhando e ensinando, uma flutuação de identidade que para Massimo constituía uma multiplicidade de símbolos e códigos que compõem tanto uma manifestação de beleza quanto um desafio, se considerarmos a concepção quase estática na qual se baseia a concepção de identidade ocidental. Essa flutuação de (e entre) identidades pode ser também entendida sob outro aspecto: uma multiplicidade de identidades que todo sujeito contemporâneo parece hoje buscar. Já Divino Tserewaru é apresentado por Canevacci como um dos mais instigastes antropólogos visuais hoje em campo, citando o caso da reserva Makuxi, referindo-se à ocupação das reservas pelo exército brasileiro (nas fronteiras do Brasil com a Guiana e a Venezuela), caso registrado em documentário produzido em vídeo pelo próprio Divino. Este aspecto de uma luta pela autonomia em representar-se e os problemas de uma realidade imediata, através ou sem a mediação do ‘outro’ (missionário, antropólogo, político etc.) foi uma das linhas chaves exploradas por Canevacci em sua apresentação.

Canevacci questiona também a atual e continuada permanência de missões religiosas dentro das aldeias indígenas. Ele pergunta: ‘Que sistema de direito é esse que permite o estabelecimento de uma missão em uma aldeia e não em uma universidade, por exemplo?’ Seria essa uma herança colonial e uma ausência do estado? Ele reconhece que em muitos casos a ajuda, por exemplo, dos monges salesianos é importante se tivermos em vista os fortes conflitos relativos às disputas e interesses pelas terras e reservas indígenas. Porém, Massimo frisa que o processo de evangelização destes povos continua sendo um episódio complicado, uma vez que contribui para um processo de perda de identidade e consequente aculturação, ou seja, ainda parte de um contínuo e permanente estado de colonização.

Sua pesquisa e contato com estas culturas gera uma crise profunda em sua metodologia de trabalho (baseada entre regimes auto e hetero-representação). Canevacci explica que tal crise leva-o a constatar que o primeiro sujeito que pode interpretar uma cultura deve ser aquele que está inserido nela. E reflete que o antropólogo, por outro lado, quando desenvolve uma hetero-representação (do outro) também tem sua própria subjetividade, sua dimensão racional, emotiva, compositiva, visual e cultural implicadas no seu trabalho e posição.

A relação dialógica no sentido conflitual e de tensão entre regimes de auto e hetero-representação parece ser um dos únicos caminhos produtivos para desestabilizar e transformar esta relação de poder. Massimo frisa que a pesquisa antropológica, seja no museu ou no campo, deve ter como meta fundamental a auto representação, e desenvolve-la afirmando e aceitando o desafio da mudança subjetiva e cultural implícita neste processo. Também é importante notar que a atual rapidez com que a tecnologia e a dimensão digital estão presentes nessas culturas, impacta na velocidade e nos modos de construção da identidade, tornando-se um dos principais agentes e instrumentos destas mudanças.

 

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Jimmie Durham, Auto-retrato, técnica-mista, 1986.

Massimo introduz então o trabalho de Jimmie Durham, artista Cherokee norte americano, cujo trabalho provoca uma ‘desnativização do nativo’. O conceito de ‘nativo’[4] é problematizado pelo trabalho deste artista, que opera em diversos níveis da arte, entre o falso e o verdadeiro, em situações e até encenações de uma representação de sua cultura como os ‘brancos’ esperam que esta seja representada. Ao diluir o estereótipo, ao ironizá-lo representando-se como ou segundo aquele estereótipo, Durham prece operar uma crítica ao reverso, devolvendo os preconceitos aos seus criadores. Para ilustrar tal colocação, uma frase irônica em relação ao comportamento indígenas, do próprio Durham, é apresentada:

“Não se preocupe – Eu sou um bom indígena. Sou do oeste, amo a natureza e tenho uma íntima e especial conexão com o meio - ambiente... Eu posso falar com meus amigos animais, acredite ou não. Eu sou apropriadamente espiritual. (Até fumo o cachimbo)... Eu espero ser autêntico o suficiente”.

Jimmie Durham, Cowboys and ...

O conceito de autenticidade, pureza e origem são conceitos autoritários que a antropologia contemporânea esta agora colocando em crise, pois quem define quem deve ser autêntico? Então, Canevacci nos apresenta uma imagem de outro trabalho de Durham, no qual os pais do artista são apresentados como ‘americanos normais’, o que se pode deduzir pelo tipo de roupas que vestem. Mas, se de fato as roupas não os caracterizam e identificam com a cultura Cherokee, mesmo vestidos como ‘americanos brancos’ eles ainda continuam sendo Cherokees. Perguntado se prefere ser chamado de ‘índio ou nativo’, Canevacci nos conta que Durham responde que nenhuma das duas nomenclaturas lhe interessa, pois até mesmo a palavra Cherokee configura-se como uma invenção ocidental e, assim, carregada de ideologia e passível de ser instrumento de poder ou de opressão.

Nesse sentido, Canevacci afirma que a taxonomia entra em crise, pois nem os Borôro, Cherokees e Xavantes deveriam ser designados sob tais nomenclaturas, mas sim através de autodenominações mais próximas das línguas dessas próprias culturas (que poderiam ser, por exemplo, Ani Yunh Wija, Aurwã Uptabi, e Boe - grafias originadas da sonoridade das palavras destas auto representações apresentadas por Massimo). Esta crise da taxonomia afeta a maneira e os modelos conceituais com os quais se traduz uma cultura diferente. O que Durham afirma também que são problemáticos os conceitos de ‘índio e de tribo’ (esta última de origem romana, sendo um derivado da palavra tribuno). Canveacci pergunta-nos: ‘Qual o significado disso tudo? Será que necessitamos continuar utilizando uma nomenclatura ou definição de matriz positivista e colonial? Será que o conceito de tribo ainda funciona para denominar a cultura Borôro?’ Mesmo que eles mesmos ainda utilizem essa tipologia, incorporada devido há uma longa história de opressão e perda de sua própria identidade cultural (perda esta que inclui a linguagem, os costumes, tradições, crenças e etc.)? E mesmo a palavra índio torna-se problemática quando possui uma matriz histórica, carregada de ideologias e políticas coloniais. Tais observações nos apresentam como, de formas veladas, a própria linguagem é o instrumento primeiro de separação, discriminação e dominação socioculturais com o qual tais populações e minorias ainda têm de lidar e lutar.

Canevacci coloca em questão também a noção de natividade. Esta parece qualificar um sujeito como ‘mais natural que outro’ e, apesar desta parecer designar uma ‘proximidade maior à natureza’ ainda carrega o preconceito (que se insere implicitamente nesta noção) relacionado a outras nomenclaturas, como o ‘primitivo ou selvagem’. Ele então pergunta se utilizar a palavra ‘nativos’ seria apenas uma forma mais educada de referir-se aos povos ameríndios (escondendo então tais preconceitos), frisando que esta observação é necessária, pois ainda podemos encontrar tal denominação em certos museus. Uma possível resolução para iniciar a alteração destas heranças (de uma ‘linguagem colonial’) seria informar o visitante do museu (através de dispositivos informacionais como, por exemplo, textos ou mesmo legendas, mas não somente) que tais conceitos são historicamente determinados por ideologias externas às culturas ali apresentadas; que se constituem como formas de domínio e controle e, enfim, que estes estão longe de serem objetivos ou neutros. De todo modo, Massimo frisa que é necessário colocar em crise e questionar as matrizes históricas e taxonômicas em suas próprias determinações políticas e socioculturais.

Também, certas convenções da cultura de massa são apontadas por Massimo como herdeiras e propagadoras de hábitos discriminatórios. Por exemplo, o cinema norte americano traduz os nomes indígenas (Touro Sentado, Crazy Horse e etc.), e tal tradução constitui-se como uma arbitrariedade que, ao final, reafirma níveis de controle sobre a representação dos povos ameríndios, culminando em uma maior discriminação. Para ilustrar esta observação, Massimo toma como exemplo seu próprio nome: Canevacci, que poderia significar, se traduzido literalmente, dog go there. Ele afirma que ninguém é chamado assim, mas nos casos de nomes indígenas tal método de tradução é aplicado. Esse sistema, que aparenta ser neutro, está imbuído de aparatos ideológicos que reproduzem as opressões e domínios da vida no campo da linguagem e da cultura. Estes determinam que o nome dos ‘nativos’ devem ser traduzidos, constituindo mais uma forma (ou evidência) de controle tanto sobre a identidade quanto sobre a imagem.

Canevacci cita a importância dos conceitos criados pelos antropólogos Margaret Mead e Gregory Bateson: o duplo vínculo; a ecologia da mente (a expansão corpo-mente, uma imanência da mente sem dualismo, uma forma de enfrentar a vida que não se divide entre bem e mal, por exemplo). Também aponta que Bateson, juntamente com Wiener, são responsáveis pela elaboração de muitos dos fundamentos da cibernética. Neste último caso, ao desenvolver um conceito muito próximo à noção de ‘feedback’ (o conceito de schismogenesis[5] como possibilidade de gerar uma cisão dentro de uma cultura através de um ritual), Massimo frisa que a cultura cibernética não está apenas ligada à informática, mas à própria antropologia social e cultural, estando estas dentro da constituição da cultura digital – o que tanto torna pertinente e necessário desenvolver essa herança, como um fato que também justifica, em certa medida, o interesse de Massimo pelas linguagens digitais e novos métodos comunicacionais como meios e instrumentos antropológicos e etnográficos.

Voltando à autoreprentação, Canevacci cita um trecho da obra de Marx a respeito da divisão social do trabalho enquanto uma analise crítica, filosófica e social, na qual o filósofo atesta que ‘nenhuma pessoa pode fazer o mesmo trabalho toda a vida’. Há uma estrutura social que favorece esta situação, e Canevacci transporta tal observação para os nossos dias, à uma situação diversa daquela citada, apontada agora para uma divisão  ‘comunicacional’ do trabalho: um novo regime de forças no qual os poderes se dão através do controle de quem representa e quem é representado. Na ‘tradição da antropologia’ quem representa é o jornalista, o antropólogo, o missionário, o museólogo; e o representado é o outro, o indígena (ou o sujeito que ainda não pertence ao mesmo sistema sociocultural ao qual a hetero-representação se destina). Neste caso, Massimo cita o recente filme brasileiro intitulado ‘Xingu’, mencionando que o filme deveria chamar-se ‘Villas Boas’ pois o que se representa ali não corresponde à subjetividade ou à cultura do Xingu. Não há subjetividade ‘xingoana’, como não há um indivíduo sequer desta cultura como foco do filme ou produzindo-o. Mesmo sendo essa uma produção com ‘boas intenções’, a distinção entre quem representa e quem é representado continua, e reproduz os mesmo padrões de regimes de representação criticados, afirma Massimo.

É necessário desfazer (se) de uma hierarquia e divisão da visão, assumir a autonomia comunicacional do sujeito, válida não somente para as populações indígenas como também para outras culturas – até mesmo aquelas metropolitanas – diz Massimo. Os sujeitos contemporâneos não querem ser representados, querem representar-se. Nesta direção, a apropriação dos meios que criam sentidos e leituras tanto sobre a forma de se comunicar quanto das imagens que emergem dessa construção, produzem uma complexidade composicional que problematiza as forças e poderes delimitadores que pré-determinam os papéis e funções socioculturais. Assim, as possibilidades de novos movimentos de existência comunal para os indivíduos contemporâneos, que possuem uma identidade fluída e múltipla, devem ser aceitas e exploradas como um dos principais focos da antropologia contemporânea.

O conceito de montagem, assim como o de composição, parece ser um ponto importante para o desenvolvimento de uma nova museografia, diz Canevacci. Uma museografia baseada não mais em totalidades, mas sim em fragmentos com os quais o visitante pode interagir e montar (experimentar) novas formas de criação e composição. Em tal esquema, Canevacci prevê que uma fusão de estratégias de arte de vanguarda, arte popular, da cultura de massa e do social networking, entre outros, pode ser um caminho a ser desenvolvido na constituição de, em suas palavras, ‘um museu em constante montagem’. Transitar, mixar, sincretizar... aldeia e metrópole, criar uma relação entre diversas influências que se contaminam constantemente. Este deve ser assumido como um movimento não somente rico culturalmente, mas como uma situação intrínseca e inevitável à situação cultural contemporânea. 

A palestra foi finalizada com a introdução de um último conceito: o de estupor metodológico. Tal conceito é informado inicialmente por uma pintura de Mondigliane (um nu no qual a figura humana representada abre-se tanto com seu olhar quanto com a postura de seu corpo à observação do espectador), e também se relaciona a uma passagem de trocas de cartas entre Walter Benjamin e Adorno. O estupor é assumido por Canevacci como ‘um abrir-se ao desconhecido e ao estranho e deixar que estes atravessem nosso corpo. Ao treinar-se nesse sentido de abertura e incorporação, o sujeito se permite inundar com outras subjetividades que alteram uma primeira identidade. O estupor transforma o observador e esse pode ser um ponto chave no trabalho de campo, ou seja: um corpo aberto à porosidade do estranho e, por ser justamente estranho, nos desperta o desejo de encontrá-lo, de assumi-lo como nosso’. O treinamento de incorporação do estupor como um canal de transformação, diferindo da posição ‘congelada’ da antropologia clássica permite um estado de crise importante, segundo Canevacci, para ao mesmo tempo nos modificar e aos modos pré-estabelecidos com que certos padrões de interpretação e representação cultural são introjetados subjetivamente como norma.

Assim, no campo da antropologia, o antropólogo se modifica no processo de pesquisa através do encontro com ‘a beleza deslocante do estupor’. O papel do museu etnográfico seria também esse: o de promover, através de uma metacomunicação (comunicação sobre si mesmo) uma reflexão em níveis múltiplos sobre sua autoprodução, favorecendo o estupor no contato e encontro com o estranho, para que esse possa ser aceito, assimilado e refletido abertamente. O encontro com ‘o estranho é o mais lindo que podemos ter’, diz Massimo Canevacci, e o museu como situação em constante processo e renovação desse encontro, de deslocamento e descongelamento de nossa subjetividade, deve favorecer esse estupor. Deste modo, o museu precisa favorecer uma atividade autoral, até performática de cada indivíduo, para que este seja envolvido como um agente e ator da história de mundo que está encontrando, para que possa dialogar com representações de realidades (no museu) e não ser um mero ‘fantoche ou boneco como muitos que vemos nos museus de cera, ou de história natural’. Ninguém mais quer permanecer como mero espectador, mas ser um ator e agente de sua própria história.


[1] Bronislaw Malinowsk foi um proeminente antropólogo atuante no inicio do século XX, assumido como um dos principais responsáveis pelo desenvolvimento da disciplina etnográfica e de muitos de seus métodos de pesquisa relativos ao trabalho de campo.

[2] Uma noção similar e com a qual podemos estabelecer um forte contato a esta apresentada por Canevacci refere-se ao ‘Manifesto Composicionista’ de Bruno Latour. Neste, Latour procura repensar as criações de sentidos e realidades a partir de uma transformação da noção moderna de progresso (do movimento de avançar a fim de encontrar novas perspectivas). Ele argumenta que devemos substituir então a prática da crítica pela da composição. Composição não se refere a escrever, mas sim a compor ou construir a partir de atores heterogêneos (neste sentido a idéia e assemblage é também muito utilizada). Neste contexto, a pergunta chave não reside em verificar se algo é ou não construído (muitos ainda insistem em afirmar que, se algo é construído, não é real), mas ao invés, o foco volta-se a uma exploração de como ou se esse ‘algo’ é bem ou mal construído. Ver Latour, Bruno: ‘An Attempt at a Compositionist Manifesto’, http://bruno-latour.fr/sites/default/files/120-NLH-GB.pdf - acessado em 16 de maio de 2012.

[3] Existem algumas ações que fornecem suporte à produção audiovisual nos povos e culturas indígenas do Brasil, como, por exemplo, o projeto Vídeo nas Aldeias. Criado em 1986, o projeto é precursor na área de produção audiovisual indígena no País, e tem como objetivo, desde o seu início, apoiar as lutas dos povos indígenas para fortalecer suas identidades e seus patrimônios territoriais e culturais, utilizando recursos audiovisuais e de uma produção compartilhada. http://www.videonasaldeias.org.br Acessado em 19 de Maio de 2012.

[4] Segundo Canevacci: ‘É nativo quem nasce em um local? É mais nativo quem esta em um contexto há mais tempo? Ou pode ser considerado nativo aquele que chegou antes?

[5] Para maiores detalhes sobre este conceito consultar: ‘Multivíduo conectivo: Gregory Bateson’. Canevacci, Massimo; em: Ciência e Cultura vol.64 no.1 São Paulo jan. 2012 http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252012000100016&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt Acessado em 18 de Maio de 2012.