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Novas conexões, novos significados

por Marco Giannotti

O ESTADO DE SÂO PAULO // Caderno 2

Domingo, 23 de Dezembro de 2007

  

O artista alemão Kurt Schwitters, que ganhou mostra na Pinacoteca, buscou uma obra de arte total construída a partir da colagem inusitada de fragmentos

Marco Giannotti

   

Ao fazer um retrospecto do que houve de mais relevante em artes plásticas este ano na cidade a exposição do artista alemão Kurt Schwitters (1887- 1948) na Pinacoteca do Estado foi a que mais me marcou. Sempre tive o sonho de ver a reconstrução da Merzbau (Construção Merz), obra que o artista considera como síntese de seu projeto de vida; é raro poder acompanhar a trajetória de um artista como nesta exposição, que culmina justamente com um fragmento da Merzbau. Talvez não esteja fazendo justiça com a retrospectiva de Volpi no Museu de Arte Moderna de São Paulo, embora considere que seria vital divulgar a obra deste nosso grande artista alhures. Se o mundo está ficando mais globalizado, no entanto, acho que devemos louvar a iniciativa de instituições que buscam um maior intercâmbio com o que acontece lá fora. A última mostra relevante de Schwitters em São Paulo foi na Bienal de São Paulo de 1961. Sua participação naquela Bienal foi decisiva, pois contribuiu para consolidar a carreira de um artista que teve que sair foragido da Alemanha em 1937, durante a exposição da arte degenerada promovida pelos nazistas, da qual fazia parte. Neste sentido, a Bienal desempenhou seu papel histórico de não só sustentar a arte de vanguarda, como também de trazer para o grande público obras desta natureza. Ao ler as considerações que Hélio Oiticica fez em 1962 a respeito deste artista, presentes no catálogo desta exposição, suponho que tenha visto esta Bienal, o que contribuiu em muito para o seu desenvolvimento como artista. Da mesma forma, as mostras promovidas por galeristas americanos, após a 2ª Guerra guerra, foram decisivas para que os jovens artistas pop americanos encontrassem novos parâmetros para a arte depois do Expressionismo Abstrato.

A obra de Schwitters surge eminentemente após a 1ª Guerra Mundial, quando as cidades destruídas se transformam em um campo livre de signos e objetos expostos, uma massa amorfa de imagens desconexas. Entretanto, Schwitters foi capaz de unir o que houve de mais significativo da vanguarda: a colagem do Cubismo Sintético com as experimentações fonéticas do Futurismo, a irreverência Dadaísta com a experiência construtiva do de Stijl. E, no entanto, fez o movimento de um homem só. Escolheu um fragmento da palavra Kommerzbank (Banco do Comércio) para si, o termo Merz.

A utilização da técnica da colagem foi crucial para este artista. A partir de 1918, rompe com a pintura com resquícios naturalistas e parte para um novo mundo onde a visão passa a ser entendida não mais como registro de uma impressão, mas como processo cognoscitivo mediado pela cultura, pela palavra, pela memória. Cores e formas são entendidas como uma operação construtiva que se distancia de um referente visual previamente estabelecido, tornando-se essencialmente uma operação mental que se recria a cada instante. A pesquisa se amplia para o horizonte de novos materiais até então alheios à prática artística: jornais, bilhetes, resíduos de papéis impressos, embalagens etc. O artista passa a agenciar imagens criadas neste mundo, em vez de projetar espaços virtuais. Neste sentido, utilizar uma imagem original ou uma reprodução da mesma imagem é indiferente. O que importa é estabelecer novas conexões entre estas imagens a fim de construir um novo significado. Schwitters antecipa o mundo em que vivemos, onde as imagens podem ser totalmente transformadas pelos comandos de um computador.

Se para a vanguarda separação entre o mundo da alta cultura e o mundo comum tende a se diluir, Shwitters procura reconstruir o mundo do pós-guerra com o que estava disponível. Projeta o mundo a sua volta desempenhando várias atividades simultâneas. Além das colagens primorosas, escreve um poema que se tornou célebre ao ser exposto como um cartaz na cidade, An Anna Blume (À Ana Flor), feito a partir de fragmentos escritos diversos. Compõe a Ursonate, a sonata primordial feita de sons primitivos que planejava tocar no rádio. Procura conciliar a arte com a publicidade ao implementar um novo design visual. Realiza performances dadaístas que visam questionar a ordem baseada na razão mecanicista. Mas o sonho da vanguarda de unir arte e política aos poucos se esvai, à medida em que o projeto de programar uma nova sociedade a partir da arte encontra a resistência da política conservadora que se consolida na Alemanha a partir da década de 30. Kurt Schwitters se distancia da militância política dadaísta. Seu único refugio é a Merzbau, lugar de resistência da vanguarda. Durante 14 anos, de 1923 a 1937, transforma o espaço da sua casa em um espaço livre para experimentação, reúne objetos encontrados ao acaso, relíquias, homenagens a artistas e companheiros. Aos poucos, constrói uma catedral como um artesão - um monumento feito por várias mãos. Poucas obras conseguiram reunir em um espaço único a sublimação erótica do Surrealismo com a linguagem formal abstracionista. Sua atualidade é visível nos projetos arquitetônicos atuais que almejam uma poética da desconstrução. Schwitters incorporou como poucos o projeto romântico de uma obra total, neste caso feita a partir de escombros.

Foragido na Noruega, realiza belas paisagens que aparentemente nada tem a ver com abstração. Contudo, um olhar mais atento sobre elas revela uma natureza feita de tinta, impressões fragmentadas calcadas na tela. Não há mais a possibilidade de pintar o sublime. Schwitters procura criar uma nova obra total em seu exílio na Noruega, mas é obrigado novamente a se refugiar na Inglaterra com a invasão alemã. Encontra antes de morrer um último refugio, um celeiro, no interior da Inglaterra onde planeja uma ultima intervenção, a Merzbarn, que permanece inacabada com sua morte em 1948.

Poucas exposições são capazes de mostrar os fragmentos que reunidos fazem uma vida. Ao invés de nos depararmos com textos explicativos, pudemos nesta exposição da Pinacoteca enfrentar o enigma das obras. Em um mundo onde as ideologias parecem se desmanchar no ar, a arte tende a perder sua dimensão utópica. Os limites da arte e da vida de fato parecem cada vez mais se extinguir se não encontrarmos certas medidas para refletir sobre a especificidade da atividade artística. Schwitters é uma referência obrigatória para os artistas contemporâneos que se deparam com este novo mundo imagético. A partir dos anos 60, há uma reviravolta na maneira como a obra interage com o observador. Se durante o modernismo as obras parecem ser auto-suficientes e revelam a presença de um sujeito criador, surge neste período um "novo modelo de sujeito, não transcendente, entrópico, dividido e descentralizado". Schwitters nos ensina a ver como as reproduções podem fazer parte de uma poética . Cada sala continha obras significativas deste percurso. E o espectador era convidado a fazer parte desta aventura.

Marco Giannotti é pintor e professor do Departamento de Artes Plásticas da USP