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Curadoria dentro e fora dos museus: dilemas para a atuação independente do curador

relato crítico por Vinícius Spricigo

Relato da Mesa Redonda “Mercados Emergentes em Curadoria”, com José Antonio Marton e Tadeu Chiarelli e mediação de Sandra Tucci e Ana Laura Taddei, dia 30 de junho no Senac Lapa Scipião.

 

Debater o tema “Mercados Emergentes em Curadoria”. Essa foi a proposta apresentada na abertura do evento por Sandra Tucci, docente dos cursos de Curadoria em Arte e Gestão Cultural do SENAC. Em resposta ao apelo da mediadora, dois profissionais de perfis distintos fizeram apresentações pautadas em suas experiências pessoais, ressaltando assim a importância do lugar de onde se fala. O primeiro a falar foi Tadeu Chiarelli, professor da USP e ex-diretor de dois dos mais importantes museus de arte de São Paulo, o Museu de Arte Moderna MAM e o MAC-USP. O segundo, José Antonio Marton, agente cultural multi-tarefas, colecionador e diretor-proprietário de empresa voltada ao setor cultural. Apesar das diferenças, contudo, as falas giraram em torno de um eixo comum, a saber, uma oposição entre: por um lado, a atividade curatorial baseada em um “pensamento crítico” e, por outro, as demandas dos mercados emergentes por curadores como meros produtores de “eventos”. Se no caso do primeiro falante, o discurso baseado em uma reflexão acadêmica apontou para o papel do curador na instituição, no segundo caso, tornaram-se evidentes as contradições presentes em tal dicotomia entre curadoria crítica e espetáculo. Retomarei insistentemente esse ponto, que a meu ver parece ter sido o eixo condutor do debate, resumindo brevemente as falas dos participantes e pontuando algumas questões.

Tadeu Chiarelli reafirmou sua posição, tanto em relação à atividade curatorial, quanto ao ensino de curadoria, expressa anteriormente no “Encontro Internacional de Curadoria” organizado em 2010 pelo Fórum Permanente no Centro Cultural São Paulo (ver relato). Segundo o professor, a curadoria deve ser pensada a partir da instituição, mais precisamente, do museu de arte. A espinha dorsal do museu é o seu acervo e as atividades curatoriais giram ao seu redor. A equipe de “curadoras” do MAC-USP, exemplo citado por Chiarelli, dedica-se portanto à preservação, pesquisa e exibição de sua coleção, de aproximadamente 8.000 obras, transferida recentemente para uma nova sede. Nesse sentido, novas aquisições deveriam ser feitas a partir do acervo existente e as exposições realizadas no museu deveriam, em primeiro lugar, apresentar a sua coleção. No caso de exposições temporárias, deveriam apresentar artistas que estão presentes ou farão parte futuramente dessa coleção. Sem uma conduta desse tipo, norteada pelo seu acervo, o museu tornar-se-ia refém de outras dinâmicas do sistema da arte do qual faz parte.

Nessa perspectiva, a instituição enquanto lugar de legitimação e produção de valor simbólico parece ter autonomia em relação as demais instâncias desse sistema. Entretanto, deve-se lembrar que a coleção do MAC-USP tem uma origem associada ao MAM, ainda que esse histórico não tenha sido resgatado no discurso do professor, e a formação de todo e qualquer acervo, antes de constituir um corpus que possa orientar novas aquisições e programas expositivos é determinada por inúmeros fatores. Influência de tendências ditadas pela crítica ou mesmo pelo mercado, disponibilidade de obras no mercado e de orçamento compatível com os preços praticados, interesses de artistas, colecionadores e galeristas enquanto possíveis doadores para que tais obras façam parte desse acervo são alguns fatores que podem orientar a tomada de decisões dos responsáveis pela formação de uma coleção pública, principalmente em sua fase inicial. Embora tais influências possam ser atenuadas na medida em que o acervo vai se consolidando juntamente com a instituição, novas aquisições enfrentarão os mesmo impasses. Em certos momentos do debate, Chiarelli comentou entraves para a aquisição de novas obras por parte do MAC-USP, a qual é feita na maior parte através de doações, e uma competição entre instituição e colecionadores na compra de obras no mercado de arte, por exemplo.

Por fim, afirmou Chiarelli que a curadoria não deveria ser um fim em si mesma, mas resultado de pesquisa e produção de conhecimento. Contrapondo-se portanto à demanda dos mercados emergentes por produtores de eventos, que prestam-se simplesmente ao consumo cultural, ele ressalta a formação do curador de acordo com uma “visão transitiva” entre história e crítica de arte. Entretanto, esse trânsito entre pesquisa e atividade crítica, embora recomendável para o curador, colocaria em questão justamente a independência da instituição enquanto local de legitimação e produção simbólica. Explico-me melhor. A pesquisa acadêmica, embora também careça de neutralidade, possui alguns critérios, ditos científicos, que justificam a sua validação e relevância. Por outro lado, a crítica de arte, muito embora possa estar fundamentada em conhecimentos advindos da história e das teorias da arte, possui um grau muito maior de subjetividade, e seria portanto incapaz de explicitar e validar os seus critérios da mesma forma. Aliás, uma visão transitiva entre história e crítica tem como pré-requisito uma interdependência entre academia e instituição uma vez que o crítico e curador recorreriam ao discurso científico para a fundamentação de suas escolhas. Na melhor das hipóteses, se o conhecimento e o pensamento crítico forem influenciados mutuamente sem interferências externas, conforme clama Chiarelli, não podemos negligenciar o efeito que esses discursos, enquanto legitimadores, terão no restante do sistema. Na medida em que artistas são formados pelas instituições, no caso a academia, e sua produção tende a girar, ainda que de forma contestadora, em torno do museu e da crítica, a produção artística tende à institucionalização.

Essa institucionalização não acontece exclusivamente no âmbito dos museus. Tomemos como exemplo a coleção particular formada por José Antonio Marton e as curadorias feitas a partir dessa coleção, conforme foi apresentado, por meio de vistas, ao público presente no SENAC. As referências citadas pelo curador, que em diversas passagens afirmou não sê-lo, vão de sua formação como artista, sua atuação no campo da economia criativa, passando pela influência de Walter Zanini frente à 16ª Bienal de São Paulo. Os temas das curadorias apresentadas, incluindo a apresentação da coleção em sua residência giram em torno de temas como “vida, morte, sexo” etc. Outra curadoria apresentada, dessa vez para a SP Arte 2014, teve o título emprestado de uma obra de Marilá Dardot, “Entre Nós”. Outros projetos apresentados incluem uma mostra de Arte Contemporânea para o Banco Toyota com pintores de diversas regiões do país. Da mesma maneira vagos parecem ser os seus critérios para a aquisição das obras que hoje formam um acervo de aproximadamente 500 obras em diferentes formatos, conforme ressaltou Marton. Apesar da incapacidade de justificar a relevância da sua coleção para além do número de obras e do renome dos artistas presentes, o curador afirma sua preocupação com a banalização da profissão pela “mídia” e a necessidade da curadoria ter algum “conteúdo”. Contudo, tal conteúdo, seja acadêmico ou crítico, se produzido posteriormente não será independente das escolhas pessoais, políticas e mercadológicas que nortearam a escolha das obras. Novamente, na melhor das hipóteses, o discurso crítico teria influenciado na origem os critérios do colecionador. De qualquer forma, parece estar evidente que tanto o colecionismo quanto as práticas curatoriais não estão livres de toda a ordem de influências, nem mesmo da “mídia”, apontada como o grande vilão.

Não à toa ambos os debatedores apontam para Inhotim como um bom exemplo institucional e de projeto curatorial, sem considerar o seu apelo midiático. Certamente o próprio MAC-USP ao migrar para sua nova sede buscou se aproximar de um novo paradigma de museus surgido nas últimas décadas do século XX. Chiarelli afirmou sua preocupação com a dimensão “contemporânea” do museu. Tal dimensão estaria expressa nos princípios que nortearam a disposição da coleção na nova sede, na qual as obras não estão dispostas em ordem cronológica ou organizadas em torno de movimentos e escolas, mas a partir de temas como “Para Além do Ponto e da Linha” ou “O Artista como Autor / O Artista como Editor”, seguindo uma tendência inaugurada pela Tate Modern em Londres. O mesmo “Tate Effect” pode ser observado em mega-instalações apresentadas no piso térreo do edifício projetado por Oscar Niemeyer, que sem dúvida ajudaram o museu a alcançar um público de aproximadamente 9.000 visitantes em um final de semana, segunda dados citados por Chiarelli. Apesar da ressalva feita por ele de que Inhotim não serviria como modelo para os museus, nenhuma crítica maior foi feita ao Instituto. Desse modo, ficaram evidentes as contradições existentes quando se fala na relação entre os domínios público e privado no Brasil. Talvez seja o próprio Inhotim que afinal siga o modelo local de instituições privadas de interesse público. Caso venha a se tornar uma instituição pública no futuro, esse acervo não poderia compor o núcleo de um museu justamente como a coleção do MAC-USP, em grande parte advinda das aquisições de Ciccillo Matarazzo e Yolanda Penteado?

Por fim, segundo Marton, sua atividade curatorial está alinhavada ao papel dos museus e às dificuldades das instituições públicas em formar e exibir acervos de arte contemporânea. Preocupa-se ele portanto em criar um instituto ou fundação para garantir a salvaguarda da sua coleção no futuro, deixando um “legado” para a cidade de São Paulo. Iniciativas desse tipo parecem ter suprido historicamente o papel do Estado brasileiro não somente na criação de museus, mas também na formulação de políticas publicas para o setor da cultura, conforme foi ressaltado nos debates. Vale lembrar que até mesmo a Pinacoteca do Estado, unanimidade quando se pensa em um museu exemplar no Brasil, é gerida por uma organização da sociedade civil, tipo de iniciativa apontada como desejável por Marton. Não seria, ao fim e ao cabo, a existência de políticas e gestão públicas melhor definidas que permitiriam às instituições uma posição mais independente no sistema da arte? Não deveríamos politizar o debate, no lugar de clamar por uma suposta autonomia das instituições e dos seus agentes? Não demandaríamos de posições políticas mais claras dos curadores e gestores culturais?

Durante o debate, foi questionado se o termo curador independente designaria a independência desse profissional em relação à instituição ou a independência da sua atuação em relação às pressões do sistema da arte. Nesse sentido, a posição crítica do curador estaria em colocar-se politicamente com clareza tanto em relação ao sistema da arte em si, quanto em relação a posição ocupada por tal instituição nesse sistema, caso ocupe um cargo institucional.

Vale lembrar ainda que a figura do curador independente surgiu justamente quando questionados os aspectos políticos que movem as instituições. Em muitos casos, a atuação de curadores fora das instituições ajudou a promover práticas artísticas contemporâneas que somente tardiamente seriam institucionalizadas. Nesse caso, o papel do curador foi quase o oposto àquele tradicionalmente atribuído ao historiador. Nesse sentido, a historicização de um acervo, no lugar de buscar naturalizar as atividades dos curadores e dar-lhes a aparência de relativa independência, poderia problematizar como essa coleção foi constituída no interior do sistema da arte e quais fatores influenciaram e ainda influenciam sua formação, ampliação e apresentação. Nesse caso, o museu poderia reavaliar o seu lugar enquanto produtor de uma história oficial e local de legitimação da produção artística por meio de uma auto-crítica. No lugar de escrever uma história que legitime os acervos institucionalizados, criticar justamente uma históoria determinada pelas coleções já constituídas.

Vinícius Spricigo