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Sociedade e política no campo expandido da arte

Relato da oficina de curadoria com Maria Magaly Espinosa Delgado (27 a 30 de agosto de 2007)

Por Paula Alzugaray


O curador tem que ter hoje conhecimentos sobre antropologia e etnologia urbana. Com essa afirmação, Maria Magaly Espinosa Delgado começou o workshop “A curadoria: um laboratório para a arte”, na Galeria Vermelho, em São Paulo. O artista é um auto-etnógrafo, que faz arte sobre um universo do qual é portador, levando para o trabalho uma experiência cultural pessoal. O neo-conceitualismo e a expansão da artes visuais em direção a conteúdos sociais são, segundo a curadora cubana, as tendências mais marcantes da produção contemporânea latinoamericana e definem a postura do curador que trabalha nesses países.

Colocando como leitura referencial o texto “O artista como etnógrafo”, de Hal Foster, a curadora enumerou os temas (de caráter etno-cultural) que considera mais recorrentes nas exposições contemporâneas: a imigração, as transferências culturais (encontros entre o local e o global), os deslocamentos, a relação entre identidade e (des)identidade, o multiculturalismo. Sobre as culturas fronteriças, citou como fonte bibliográfica, “La modernidad descentrada”, de A. Appadurai, em sua reflexão sobre “os processos culturais da sociedade capitalista contemporânea”.

A partir de duas citações de exposições marcadas por um traço sociologizante - Cocido y crudo, curadoria do crítico americano Dan Cameron, no Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofía, em Madri, em 1994, e o projeto “No es sólo lo que ves, pervirtiendo el minimalismo”, de Gerardo Mosquera, dentro da exposição Versiones del sur: cinco propuestas en torno al arte en América, também no Reina Sofía, em 2001 – Magaly desenhou sua concepção dos papéis do curador.

O curador é um negociador. Ele começa seu projeto com certos parâmetros e termina com outros, a partir do contato com as obras, da observação da relação das obras entre si, das obras com o espaço institucional, ou com o contexto social e cultural em que estão inseridas.

O curador é um criador: seu trabalho é um laboratório artístico. O curador é um ativador social, um criador de projetos sociais. O curador é um interlocutor: embora essa imagem não tenha sido textualmente elaborada por Magaly Espinosa, ela ficou evidente após a exposição para o grupo de uma de suas curadorias, a mostra Heterônimos: los otros de uno mismo, realizada em Barcelona, Madrid e Quito, entre 2005 e 2006.

Com esse projeto de cunho não evidentemente social, mas mais nitidamente relacionado com a idéia de identidade x (des)identidade (apontada como um grande tema contemporâneo), a curadora colocou-se não como uma etnógrafa padrão, com olhos para uma alteridade social ou cultural, mas como uma pesquisadora em busca de uma etnografia do heterônimo.

Por definição, de heterônimo diz-se nome imaginário que um autor empresta a obras suas, atribuindo a esse autor por ele criado qualidades e tendências literárias próprias, individuais, diferentes das do criador. Mas também diz-se que a palavra parece haver começado a circular após o aparecimento de Fernando Pessoa (1888-1935). E esse personagem múltiplo, criado por Fernando Pessoa, é justamente o heterônimo almejado e trabalhado por  Magaly Espinosa Delgado.

“É possível deslocar uma figura literária para uma estrutura visual?”, foi uma das perguntas lançadas aos 15 artistas participantes – entre espanhóis e latinoamericanos –, convidados a produzir trabalhos especialmente para a exposição. As respostas confirmaram a natureza múltipla do heterônimo. Nas obras produzidas, foram considerados heterônimos: uma circunstância histórica, uma instituição, um ato da apropriação artística, ou mesmo um não-lugar. Entre artistas espanhóis, cubanos, colombianos, peruanos, equatorianos e argentinos que participaram da curadoria de Magaly Espinosa, poderia muito bem estar o brasileiro Marcelo do Campo, heterônimo não apenas da artista Dora Longo Bahia, mas principalmente da arte conceitual dos anos 1970.

Discurso político (presente ou em formação?)
Durante o segundo e o terceiro dias de laboratório, os membros do grupo foram convidados a apresentar projetos de curadoria em processo ou já realizados. Sete participantes (eu, entre eles) fizeram apresentações e receberam valiosos comentários do grupo. Se até este momento só havíamos enfocado o projeto social da arte, começamos uma discussão sobre arte e política, a partir da apresentação de uma curadora que se propôs a trabalhar com cinco coletivos brasileiros que desenvolvem ações de ordem micro-política. O projeto da curadora Fernanda Albuquerque (em parceria com Gabriela Motta, que não estava no laboratório) gerou um dos debates mais fecundos da oficina, já que teve justamente seu enfoque político problematizado pela curadora cubana.

“Pelas obras mostradas, não vejo relação entre arte e política, mas entre arte e vida cotidiana”, disse Espinosa.

“Entendo que projetos que ativam a consciência, sejam por ações sociais ou ações cotidianas, têm implicação política”, defendeu-se a curadora brasileira.

“Atuar sobre a sensibilidade, o imaginário, o comportamento, as crenças, são objetivos da arte. Isso pode até ter um efeito político a longo prazo, mas dentro de um conceito ampliado de política”.

O debate mostrou particularidades no entendimento do que signifique e de como ocorram as ações políticas no Brasil e em Cuba. É certo que Magaly Espinosa enxerga a relação arte e política para além das imposições que o governo cubano possa ter inferido sobre a arte e a cultura local, nos últimos 50 anos. Mas também está claro que o artista e o curador brasileiros, 20 anos depois da abertura política, fazem questão de tentar produzir uma arte com discurso político. Se ainda não chegamos à maioridade artística da discussão política, isso é questão de tempo (e de discussões como essa).

Vídeo cubano
No último dia de oficina, mudamos de ambiente. Nos transferimos para o Centro Cultural Espanha, não muito longe da Galeria Vermelho, onde a sessão foi aberta para outros interessados (não selecionados para a primeira etapa). Nesse deslocamento espacial, houve também um deslocamento temático, já que agora a pauta não era mais o curador, mas a arte contemporânea cubana.

Em uma palestra de duas horas, que também foi uma pocket mostra de videoarte cubana, visualizamos com mais clareza o que Magaly chama de “arte com conteúdo social”. A curadora dividiu os vídeos apresentados em três grupos: obras que se aproximam do contexto urbano, obras de conteúdo social e obras de inserção social (embora as diferenças entre o segundo e o terceiro grupo não tenham ficado tão claras).

Como obra de inserção social foi apresentado, por exemplo, um videoregistro das ações da artista Grethell Rasúa. O trabalho documenta suas produções a partir de excrementos e outras categorias de fluidos corporais humanos. É arte de inserção social porque cumpre uma “demanda social”, infiltrando escatologia em artigos comercializáveis?

Nesse grupo de obras de “inserção social”, alguns trabalhos me remeteram ao video A la ca(sz)a de Rosa, do artista cubano René Francisco, exposto na 26ª Bienal de São Paulo, em 2004, e tão criticado por seu assistencialismo. A obra mostrava a reforma da casa de uma senhora cubana, realizada com os recursos de um fundo de residência artística.

Como obra de “conteúdo social” foi apresentado um vídeo de viagem da dupla Célia y Junior. O projeto registra um recorrido turístico por toda a costa de Trinidad i Tobago. Os mais de dez minutos de registro de viagem têm características de um travelogue sem conteúdo crítico e não desperta interesse até que, no último minuto, revela-se que a mesma viagem seria censurada em Cuba, já que o turismo na ilha é restrito a estrangeiros. Ok, há aqui algo de um conteúdo social no mapeamento do turismo... mas o que é relevante no trabalho é a crítica de último minuto ao regime castrista. Arte e política, sim.

Finalmente, fomos apresentados a Ernesto Oroza, Lazaro Saavedra e Juan Carlos Alom, três artistas “veteranos”, que começaram sua produção nos anos 1980, e a quem Magaly credita a renovação de todo o campo das artes plásticas e a introdução do que viria a ficar conhecido como Nuevo Arte Cubano.

De maneira geral, evidenciou-se na seleção um sentido talvez mais ético do que estético. Embora essas duas instâncias sejam bastante contaminadas entre si na arte contemporânea em geral, entre os vídeos apresentados a preocupação com o belo só apareceu em Habana solo (2000), filme de Juan Carlos Alom. De uma beleza estonteante, o filme é uma espécie de releitura de Berlim, sinfonia da metrópole (1927, Walter Ruttmann).

Uma certa aura de precariedade realmente marca toda a seleção – o que, sem dúvida, encontra algum paralelo em nossa tão evocada “estética da gambiarra”. Mas, nos trinta minutos finais da oficina, somos lembrados das limitações técnicas enfrentadas pelos artistas cubanos, e entendemos que isso possa ser bastante determinante para o atual estado das coisas na produção da ilha de Fidel. Somos advertidos que não apenas o conceitualismo, mas os happenings e as instalações são procedimentos mais-do-que-recentes na ilha: só começaram com a “geração 80” local. Dizer não ao formalismo – ou mesmo ao esteticismo – que orientou todo um modernismo tardio ou a tentativa de implantação do Realismo Socialista nas artes visuais cubanas - trata-se, afinal, de questão de vital importância.

Terminado o tempo regulamentar da oficina, já nas despedidas, Magaly me comenta, entre um cumprimento e outro, que os artistas cubanos apenas têm acesso às câmeras de vídeo a partir de 2000 e pouco. Se até os anos 1980 a arte cubana manteve um discurso formalista, hoje é a reflexão crítica que mantém viva sua produção. Estes são, afinal, bons motivos para aplaudirmos os artistas e os curadores cubanos.