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O curador e os artistas

Mesa-redonda com Roger Buergel, José Resende e Ricardo Basbaum.

No primeiro dia de participação no Fórum Permanente, Roger Buergel poupou palavras: evitou adiantar suas idéias para a próxima Documenta, desviou de temas que trataria no evento do dia seguinte e falou o mínimo sobre seu recém anunciado cargo – apenas o necessário para respeitar o tema da mesa de discussão: o curador e os artistas.

Empossado em um dos cargos mais importantes da arte contemporânea, Buergel conhece e desvia-se bem das armadilhas do poder, já que seu trabalho de curadoria mais famoso, a exposição itinerante “O Governo”, esmiúça justamente este tema. A exposição é resultado de estudos da obra de Michel Foucault sobre poder e governabilidade, e Buergel trouxe à tona no fórum permanente outro conceito caro a Foucault ao descrever seu método curatorial: um procedimento genealógico.

A Documenta não deve ser, segundo Buergel, um mostruário da arte contemporânea, mas sim uma busca genealógica daquilo que é contemporâneo. Invocando Foucault, pode-se concluir que a genealogia, aqui, significa procurar qual a proveniência das formas que entendemos por contemporâneas e qual jogo de forças que estão nesse provir. Forças reativas, baixas, de degenerescência da vida, ou forças ativas, nobres, de plenitude de vida? A genealogia é, em oposição à história, uma busca de procedências, de um tronco, de um jogo de forças distintas que fez emergir o contemporâneo, e não uma ficção construída para explicar racionalmente o encaminhamento das coisas.

Para citar um exemplo dado por Buergel, a história define o advento da modernidade. Porém, este conceito é totalmente ilusório, mera construção já que a chamada modernidade assume características locais totalmente específicas nos Estados Unidos, no Brasil ou na Europa. Ao contrário de espremer as obras de arte dentro de um argumento coerente, cortando eventuais rebarbas como é o costume da história, a genealogia vivencia a obra e busca parentescos. Nietzsche, que é ingrediente do pensamento de Foucault, assim descreve a postura histórica tradicional:

 

 

Nas experiências presentes, receio, estamos sempre “ausentes”: nelas não temos nosso coração – para elas não temos ouvidos. Antes, como alguém divinamente disperso e imerso em si, a quem os sinos acabam de estrondear no ouvido as doze batidas do meio-dia, e súbito acorda e se pergunta “o que foi que soou?”, também nós por vezes abrimos depois os ouvidos e perguntamos, surpresos e perplexos inteiramente, “o que foi que vivemos?”, e também “quem somos realmente?”, e em seguida contamos, depois, como disse, as doze vibrantes batidas da nossa vivência, da nossa vida, nosso ser – ah! E contamos errado… (Nietzsche, A Genealogia da Moral, Prólogo, 1)

 

Para Buergel, uma exposição é um meio de expressão artística, uma mídia, através da qual obras de arte de diferentes autorias comunicam-se umas com as outras, revelando singularidades em comum. O curador é, assim, um artista que manipula essa mídia. À questão de José Resende sobre um certo incômodo em relação ao agenciamento de obras de arte para um enunciado do curador, Buergel respondeu que o artista pode dizer não ao ser convidado para expor, gerando uma resistência ativa e trazendo nova energia ao significado de exposição de arte. Resende falou ainda sobre o paradoxo das grandes exposições que almejam a novidade (Bienais como as de Sidney, S. Paulo ou Turquia elencam o novo a cada dois anos) mas que se tornaram tão freqüentes que não permitem o tempo da emergência do novo. Para Buergel, no entanto, o novo não é o elemento central da Documenta, mas sim parte da cadeia genealógica. O que interessa à Documenta é o caminho percorrido pelo novo até o estágio atual, a nova máscara, da novidade. Segundo Foucault, a genealogia exige

“um indispensável retardamento: para assinalar a singularidade dos acontecimentos, fora de qualquer finalidade monótona; espreitá-los lá onde menos se espera e no que passa por não ter história alguma – os sentimentos, o amor, a consciência, os instintos; apreender seu retorno, não absolutamente para traçar a lenta curva de uma evolução, mas para reencontrar as diferentes cenas em que eles desempenharam distintos papéis (…)” (Michel Foucault, “Nietzsche, a Genealogia, a História”, 1971)

A imagem do curador-artista defendida por Buergel choca-se, a princípio, com a atitude de “oposição ao papel do curador-como-diva” e de adversário da “fixação neurótica do curador como uma pessoa”, que segundo a revista ArtForum caracteriza Roger Buergel.(Gregory Williams, Heir unapparent: Gregory Williams on Roger M. Buergel – News” ArtForum, fevereiro/2004) Mas, vale lembrar que um curador-artista leitor de Foucault provavelmente não associa a palavra “artista” a noções de autoria ou de indivíduo. Com efeito, Buergel afirmou à Folha de São Paulo que trabalhará em grupo, junto com outros artistas, espaços alternativos e revistas de arte, para elencar os cerca de 70 artistas que darão corpo à Documenta 12. (FSP, entrevista a Fabio Cypriano, 14/12/2004).

Para Ricardo Basbaum, que participou do projeto “The next documenta should be curated by an artist”, o curador que pensa a exposição como meio expressivo é preferível ao curador que se confunde com produtor e gerente da exposição. Uma pergunta de Basbaum sobre o atrelamento das exposições a interesses de corporações patrocinadoras levou a informações sobre procedimentos internos da Documenta que sustentam a noção do curador-artista: não há patrocinadores privados na Documenta e, além disso, Buergel revelou que as únicas exigências contratuais de seu cargo são inaugurar uma exposição em 2007 e produzir um guia para os visitantes.

Não há sequer a obrigatoriedade de um catálogo: liberdade (ou poder) total de criação artística.

(por Paula Braga)