Relato

CIDADES OCASIONAIS – ????–it city e outros formatos de temporalidade [por Guy Amado]

O catalão Marti Peran é o mentor conceitual do projeto ????–it city e outros formatos de temporalidade, e em passagem pela capital paulista em novembro último introduziu a plataforma teórica do mesmo, em palestra realizada no Centro Cultural São Paulo. O projeto foi iniciado em Barcelona, há cerca de dois anos e estando ainda em processo, e é articulado a partir de três linhas estruturais distintas: a teoria, os contextos e a metodologia. Ciudades Ocasionales - ????-it city y otros formatos de temporalidad seria, em suas palavras, um projeto de investigação que advoga uma defesa do espaço público nômade, gerada por uma dinâmica volátil e inserida nas tipologias tradicionais dos lugares públicos, mediante aparições ocasionais, desaparições e reaparições "ingovernáveis". Reivindica uma leitura das distintas "situações ????-it" como a de um modelo da mais elementar ação política - o desenvolvimento livre da experiência no contexto da pólis. O termo "????-it" é emprestado dos prosaicos bloquetos de recados e anotações rápidas usados no cotidiano, vinculado ao projeto por meio da concepção de cartografia móvel, mutante, que permeia a empreitada, de "mapas feitos a lápis".

Grosso modo, o escopo do projeto deriva de uma "necessidade de reinterpretar a cidade contemporânea a partir das múltiplas situações de 'experiência urbana' em oposição a sua leitura derivada do sky line oficial". Estrutura-se, em seu núcleo central, como uma investigação/pesquisa, da qual os resultados serão depois traduzidos em um formato expositivo-documental. Martí então expõe algumas noções e posicionamentos que forneceram pontos de partida para a conformação de um corpo teórico para o projeto.


O corpo especulativo de ????-it city e outros formatos... estaria centrado em estratégias adotadas em cidades européias como forma de lidar com as "erosões" a que o espaço público está submetido; ao que se antecede a formulação de um diagnóstico acerca da idéia-conceito de "cidade contemporânea", e as reações a essa movimentação, pontos centrais no projeto. O espanhol discute a idéia de "centro" [comercial, econômico, residencial] e a relaciona à consequente multiplicação de periferias, que cria "espaços difusos" - "ambíguos", estéreis, improdutivos, avessos à dinâmica do sistema produtivo; espaços por essas qualidades "interessantes, semanticamente". Vê o fenômeno da multiplicação de periferias como se dando em oposição à "dinâmica centro-periferia"; surge um novo skyline de contenção, centros de consumo; o que implicaria numa diretiva regressiva para as cidades contemporâneas, na medida em que se pressupõe o espaço público da metrópole como "espaço da anomalia". Percebe os espaços burgueses, "confortáveis e seguros", como um contraponto a essa idéia; sua concepção de espaço público se apóia neste como um lugar para uma "temporalidade ingovernável", em oposição à progressiva determinação do mesmo por parte das administrações e do setor privado. Se busca, enfim, recuperar uma noção de valor de uso do espaço público que permita reconhecer sujeitos não limitados a seu papel de consumidores.

Martí lança uma noção de cidade que substitui o "trajeto moderno" pelo "fluxo" ou mobilidade; uma mobilidade que não se pode mais pensar em termos de trajeto, mas de fluxos, que o espanhol associa também à idéia de deriva, de matriz situacionista. Essa mobilidade se traduziria, em suas palavras, em uma "grande coreografia do consumo". Passa à constatação das instâncias de fiscalização e vigilância nas cidades contemporâneas, que conformariam a cultura do medo que alimenta a sociedade de controle. Marti se alonga em um interesse mais específico pela noção de "espaço público autônomo"; à convenção do espaço público como "espaço de consenso" contrapõe a possibilidade de se pensá-lo como espaço de dissenso - a subjetividade e o espaço público em busca de um dissenso - defendendo com isso a premissa de pensar esse espaço público como espaço de atrito ou fricção, mais afeito à idéia de alteridade. Acidentes, fraturas, fissuras são metáforas recorrentes em sua fala. Ressalta a o grande potencial das subjetividades na elaboração de soluções autogeridas para contemplar necessidades e desejos diversos, destacando a capacidade de reação subjetiva frente às disposições normativas e legais "que estrangulam as liberdades individuais e coletivas".

Fala do espaço público como um espaço entre lugares, "entre-estado-das-coisas". Um espaço de trânsito, portanto, que não se conforma em uma estrutura, mas está antes "sempre estruturando-se", forçando a um "desligamento" da subjetividade, donde adviria o cancelamento da "falsa política de delegação". As "cidades ocasionais" se articulam a esta meta em reconquistar o espaço público na chave do dissenso/antagonismo. Os "????-it" como ligados à "presença física" e a conceitos como a pára-arquitetura, micro-artefatos/dispositivos "temporariamente arquitetônicos". O esforço estaria em tentar convocar estas "novas subjetividades", questionando o cenário urbano, e reinterpretá-lo. Destaca a importância das múltiplas situações que se desdobram sobre o território urbano "para além do previsto pela arquitetura e o urbanismo", valorizando uma concepção de arquitetura como uma prática derivada "da exploração real dos processos que dinamizam e atravessam o territorio".

Um ponto importante para Marti seria o da "vitória do tempo sobre o espaço" nas sociedades urbanas contemporâneas, que vê como uma forma de garantir um maior controle do comportamento e subsequentes instâncias hierárquicas. Enxerga aí um adiamento de "promessas de emancipação" e a idéia de "micro-utopias" [em contraponto às utopias] e sua dimensão política. Estimula a construção de acontecimentos, onde estes seriam "a única casa possível do sentir"; percebe todos os fenômenos que compõem a experiência da existência urbana contemporânea como passíveis de uma instância de "estetização".
Da metodologia do projeto: há 11 grupos de investigação, como chama, locados em Barcelona, trabalhando em alguns aspectos do programa; a idéia foi de expandir o projeto para uma rede de grupos locais em 15 cidades [dentre as quais Tel-Aviv, Santiago de Chile, Porto, Bogotá, Buenos Aires, São Paulo, Istambul, Bangkok e Roma], num movimento que valoriza a heterogeneidade. A aglutinação de parceiros se pautou sobretudo por critérios de empatia com o perfil do projeto - ao invés de se buscar, por exemplo, uma associação estratégica mais "representativa", em centros urbanos importantes mundo afora.

O caso São Paulo – os participantes brasileiros no projeto, representantes de São Paulo, serão a pesquisadora de arte Ana Paula Cohen e o artista Alexander Pillis, trabalhando em parceria. Segundo os mesmos, algumas "correções" de ordem conceitual se fariam necessárias; falam do que se apresentaria como um problema a priori acerca da pertinência [de algumas premissas do projeto] do ponto de vista do "contexto São Paulo": percebem a noção de espaço público, sobretudo como formulada nos termos de Marti, como quase alheia ao contexto paulistano, o que geraria um possível conflito de expectativas. Questionam o fato de, a seu ver, esta ser uma cidade em que "tudo é '????-it'", levantando as dificuldades específicas aí incutidas; propõem uma mudança de enfoque a partir das singularidades da capital paulista. Ana Paula fala sobre os objetivos ou pro????as do projeto e as diferenças estruturais da concepção de "espaço público" no contexto europeu e paulistano. O projeto deles partiria da noção de "arquitetura temporária" de São Paulo: "por que propor uma discussão sobre espaços públicos numa cidade em que não há 'espaços públicos'?", onde "o que não é privado não é de ninguém", indagam. Visam aparentemente convocar a uma reflexão sobre a [procedência da] noção de "espaço público", enfim. Pillis comenta a diversidade étnica e a multiplicidade de estímulos da metrópole paulistana e sustenta que a relação arquitetura/espaço público ocorre de modo "seccional" [contraposto à "horizontal"]; introduz rapidamente aspectos como o "desmantelamento da ordem arquitetônica", o choque do estrangeiro frente ao modelo sócio-cultural brasileiro, a "divergência" e o "colapso do campo de profundidade" [estes constituindo mudanças brutais de perspectiva na experiência da cidade], a ausência de planejamento e o sentido de "amnésia urbana", assinalando a importância de se "buscar pelo genius loci" [algo como o espírito do lugar] paulistano. Menciona experiências que tem feito com físicos em torno de "reverberações sensoriais"; encerra sua fala retomando a idéia de divergência como um elemento já na práxis do projeto.

Apresentam a seguir uma breve sequência de imagens relacionadas a sua proposta. As projeções remetem a assuntos como neuro-biologia - o corpo como contingente e epifenômeno no contexto metropolitano de São Paulo, com suas idiossincrasias -, transposições do espaço público e privado e novamente a questão do "genius loci" da capital paulista, fora de uma lógica urbanística reconhecível. Finalizam constatando a dificuldade, senão impossibilidade de se pensar "num arquétipo" para a cidade.

Martí retoma a questão do impacto de São Paulo sobre estrangeiros e a possibilidade de se pensar uma estrutura urbana para a cidade; salienta novamente que a gênese do projeto ????-it City é européia, tendo como referência primeira um modelo de cidade moderna daquele continente. Ressalta o aporte da teoria e da ciência nas discussões acerca de urbanidade, a instauração de fluxos dinâmicos [noção recorrente em sua fala] e novas tecnologias na tentativa de apreeender esses fenômenos. Define São Paulo como uma metrópole "sempre se refazendo". Comenta a necessidade de interpretação do "aqui e agora", a obsolescência da noção de futuro ["o futuro já não existe..."]. Voltando a seu projeto, comenta en passant noções como "bolhas de realidade" e "brechas de utopia" e defende a substituição do não-lugar pelo "entre-lugares" e outras temporalidades, associando-a à idéia de contenção ou "espaços contenedores".

É retomada a discussão de espaço público como pressupondo a noção de cidadania para sua efetivação; o ????-it então partiria de uma noção de cidadania em outro registro, da singularidade ou do 'uno' como premissa. Martí percebe a noção de espaço público para o ????-it City como um palimpsesto: "Estas considerações sugerem uma concepção do contexto urbano como palimpsesto, onde se entrecruzam diversos experimentos e expressões da vida-em-público. Estas situações clamam sua legitimidade por ocupar o espaço e se oferecem como um possível uso e sentido para enclaves tradicionalmente esquecidos pelo urbanismo convencional - zonas periféricas, terrenos vagos, áreas liberadas do sistema produtivo...", afirma ele no briefing do projeto. Insiste ainda na idéia de resgatar o espaço público como espaço regulado, retentor de memórias e afetividades - filtrada pela "subjetividade apropriada".

Discussão com o público: uma moça [não identificada] sugere que o que está em jogo seria um movimento de "lberação para a vida", de "como libertar a vida no território da cidade", associando essa posição à noção de temporalidade e sustentando que um mapeamento é impossível, valorizando os índices presentes no cotidiano da metrópole. Fala de exemplos de propostas artísticas "engajadas", na cidade, e insiste no que chama "movimento imanente da vida". Trata-se de um quase manifesto. Ricardo Rosas emenda em sua fala, retomando os "espaços de dissenso" aventados por Martí, curioso para saber em que chave esse dissenso se manifestaria. O espanhol responde que "interessa pensar o dissenso como potência, não como problema", e discerra brevemente sobre a estética do choque como aparato modificador da percepção. Volta ao projeto descrevendo-o como um intenso "exercício de cartografia", uma "cartografia móvel", mutante, com mapas feitos a lápis, como já mencionado.

Perguntas acerca de uma "subjetividade filtrada pela afetividade" e certa sensibilidade emanada das ruas, outra sobre a "crise da subjetividade contemporânea". Martí fala da transferência de responsabilidades [na nova dinâmica de vida das metróples] para a esfera subjetiva, individual; cita o formato "zonas autônomas temporárias" [conceito popularizado por Hakim Bey, teórico de destaque no circuito de práticas ativistas e seu principal difusor] e iniciativas artísticas que lidam com essa plataforma de ação. Diz pensar essas zonas temporárias "não como alternativas, mas como micro-situações que tensionam a idéia de cidade como valor de troca". Defende as novas tecnologias como instrumentos para construir essas micro-situações, mas não como um "lugar" em si.

Indagado sobre a metodologia do projeto, Peran explica rapidamente que o mesmos e conformou a partir de "grupos locais de investigação" com a participação de colaboradores "transversais" [economistas, arquitetos, urbanistas, advogados]. Frisa que não se trata exatamente de um projeto expositivo, mas de "investigação"; promete alguns resultados - que soaram um tanto vagos - para março/abril de 2007.
Alexander Pillis encerra afirmando que a versão paulistana do projeto será apresentada em torno de março/abril de 2007, embora sem uma perspectiva exata, nem sobre como se dará a apresentação desses resultados – em princípio no CCSP [informação a ser confirmada/atualizada].

Maiores informações no website do projeto: www.ciutatsocasionals.net

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