Arte e Cultura da Arte, por Teixeira Coelho

texto apresentado no simpósio Padrões aos Pedaços
 
A angústia
da pergunta
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Comunicações
Considerações finais
Toda profissão ou, como talvez crítico de arte não seja profissão,  toda atividade humana tem seu momento de angústia do goleiro na hora do pênalti. É verdade que, a rigor, só quem nunca jogou futebol pode imaginar que a angústia na hora do pênalti seja do goleiro. Na hora do pênalti o goleiro está no auge da excitação, o contrário da angústia: está literalmente a um passo da glória e ansioso por vê-la chegar. Quem fica com a angústia é o batedor, que gostaria que aquele momento fosse adiado para toda a eternidade. Minha angústia é a do batedor de pênalti e ela se traduz na angústia diante da possibilidade de que me cobrem meus critérios no instante de fazer aquilo que se chama a crítica de arte. Minha angústia é que me perguntem “Mas, qual, afinal seus critérios para dizer o que diz?” e eu não saiba responder. Minha sorte e a sorte deste tipo de batedores de pênalti é que essas perguntas hoje se fazem cada vez menos...  A ausência dessa prática deveria fazer pensar.  Se não se pensa o suficiente sobre isso é porque o recalque praticado contra essas perguntas -- que no fundo, abaixo da superfície,  continuam a existir-- faz parte do atual sistema da arte. Por  que hoje, e em linhas gerais desde os anos 70, não é mais o caso de se fazer essas perguntas, nem ao crítico, nem ao artista? Alguns artistas, é verdade, esperam que os críticos respondam por eles às eventuais perguntas que lhes possam ser feitas. Mas, como digo,  dificilmente se pergunta ao crítico por quê e em nome do quê ele diz o que diz. Mesmo assim, com freqüência minha angústia aflora: e se me perguntarem por meus critérios? Mesmo quando ninguém me faz essas perguntas, mesmo quando é apenas a obra de arte que, no silêncio total de uma relação direta entre mim e ela embora no meio de uma multidão de pessoas excitadas nas salas de uma bienal, me faz essas perguntas, que direi eu a essa obra e a mim mesmo? Uma velha angústia que continuamente retorna e para a  qual periodicamente devo encontrar respostas. Novas respostas.

 

Primeiro: o método

Essa questão voltou recentemente à tona para mim, sob um ponto de vista metodológico, ao ler uma entrevista, não de um artista ou de um crítico de arte ou teórico da arte, mas de um escritor, Salman Rushdie , esse cujo drama as nações ditas ocidentais e iluministas, que tanto falam em nome da liberdade, durante anos e anos assistiram indiferentes, numa das maiores demonstrações de pusilanimidade diante da opressão e da ignorância de que se tem notícia . Na entrevista a que me refiro, dada ao jornal Le Monde, Salman Rushdie fez observações sobre as relações entre literatura, realidade e surrealidade que poderiam ser proveitosas no campo da discussão sobre a arte, para mim que continuo a ver na comparação entre as artes um método heurístico privilegiado, embora contestado. Falando do trabalho de colegas escritores e de suas próprias escolhas literárias, Rushdie observa, a certa altura, que o bom surrealismo, por dizê-lo assim, é aquele que empresta seu corpo à realidade, prolongando-a e tornando-se sua metáfora pertinente e convincente. Se não for assim, como diz Rushdie, se não forem enunciados de algum modo esses elos entre uma coisa e outra, e se não forem a seguir de algum modo justificados, se essa composição se fizer inteiramente ao acaso, as coisas ficam fáceis demais, ele diz. Tem razão: ficam fáceis demais e não significam muito. E para explicar o modo pelo qual esse processo pode ocorrer satisfatoriamente, destaca o escritor que certos motivos que dão corpo à obra precisam ficar claros. Se numa narrativa um tapete voa, diz Rushie, é preciso que haja boas razões para que o faça. É preciso que o leitor, e antes dele o narrador, e antes dele o autor da história, possam responder a algumas perguntas simples e ao mesmo bastante sutis: que tipo de tapete é esse, quem está sentado nesse tapete, para onde está voando afinal? Se o escritor quiser que esse tapete decole mesmo, continua Rushdie, é imperativo que ele decole a partir de uma seqüência de fatos reais produzida e descrita como tal ou como se tal fora – apesar de ser uma historia sobre um tapete voador. Nisso reside o X da questão. A literatura, para ele, é essa articulação íntima e necessária entre verdade e fantasia, nisso para ele reside a quintessência do jogo literário. A suspensão da descrença, a essencial suspension of disbelief sempre mencionada em relação ao cinema mas que é pertinente, acaso, a alguns outros territórios da arte, é um requerimento preliminar que se faz ao leitor. A diferença entre o que acontece num território e outro é que neste, talvez mais do que naquele outro, não se pode pedir que essa suspensão se dê em nome de qualquer coisa ou de uma coisa qualquer. Seria possível argumentar que esse tipo de narrativa é aquele privilegiado por Rushdie, individualmente, e que há, em literatura, outras narrativas que não fazem do jogo entre verdade e fantasia a essência de seu ser, eliminando assim a necessidade daquelas perguntas, de modo específico. Digamos também que na arte, ou nas artes visuais, não é pertinente a questão do jogo entre verdade e fantasia uma vez que as artes deixaram muito para trás, ou de lado, qualquer referência à verdade pelo menos tal como a literatura a compreende. – embora me pareça que também nas artes, de algum modo e em algumas delas, a compreensão plena do que ocorre no âmago do processo de criação depende de uma genealogia da articulação entre a verdade e a fantasia. Mesmo assim, ali onde a correspondência entre as artes, no caso a literatura e as artes visuais, continua a demonstrar-se estimulante como método de reflexão é exatamente nessa idéia de que há algumas perguntas que devem ser respondidas pelo observador (ou que o observador deve estar em condições de pelo menos reconhecer) e que, antes dele, devem ser respondidas pela obra em si e que, antes de serem respondidas pela obra, precisam ser respondidas (ou pelo menos reconhecidas) pelo próprio artista -- perguntas que por várias razões não se fazem ou não se fazem mais, nem se reconhecem. O que ou quem está sentado no tapete voador que é esta obra à minhafrente?

Talvez a melhor expressão aqui fosse disco voador, não só para dar ao texto o adequado tom de cutting edge, próprio dos dias de hoje, como porque a arte contemporânea está de fato cheia de discos voadores voando por aí . Mas, fiquemos com Rushdie e sua terminologia arcaica.

Ainda se
fazem as perguntas?

Que tipo de tapete voador é esse, quer dizer, que tipo de obra é essa? De onde vem, para onde vai? Como disse, pelo menos desde os anos 70 há quase um consenso de que essas perguntas não cabem mais, o consenso de que a arte teria “superado” a fase representada por essas perguntas, o consenso de que fazê-las seria demonstração de impertinência e primarismo intelectual, um consenso do qual participam todos, inclusive o próprio público em geral, que não se pergunta mais nada quando vai a uma bienal ou outro grande show da arte. No entanto, são perguntas que, por ver uma exposição aqui, uma Bienal de Veneza ali, me venho repropondo cada vez mais insistentemente. Com angústia às vezes, como disse. Minha insistência com essas perguntas poderia ser indício de que eu talvez devesse parar de escrever sobre arte, se não de ver arte, por ter-me colocado totalmente fora do jogo, fora de jogo, em clara posição de impedimento, numa “banheira” enorme, como se diz. Quer dizer: eu estaria impedido de continuar a escrever sobre arte. Mas, sei que, se as perguntas são velhas, as respostas que eu encontraria agora seriam com sorte outras, se não novas, e compatíveis com o espírito deste tempo, agora. Claro que eu poderia apoiar-me na voz poderosa de Clement Greenberg e dizer, como certa vez ele disse, ao ser perguntado sobre os critérios para distinguir entre uma arte maior e outra menor (o equivalente a perguntar pelos critérios de toda crítica de arte), que esses critérios existiam, sim, mas não podiam ser colocados em palavras, e que o que ocorre é que algumas obras tocam você mais e outras, menos, sendo que tudo que o crítico pode fazer é falar dessa experiência quando elas se dão, nada mais. Essa resposta, sob certo aspecto correta e acima de tudo bem contemporânea, me parece porém fácil demais. Sob uma luz positiva, essa é uma resposta que implicitamente faz equivaler a peça crítica a uma obra de arte: o artista não tem de traduzir em miúdos as razões de sua obra e o crítico não tem de traduzir em miúdos os princípios de sua escolha: ele apenas escolhe, assim como o artista apenas produz sua obra. O crítico, como o artista, não teria de dizer de onde fala; apenas fala o que fala. O lado negativo da resposta de Greenberg me parece entretanto exceder o que pode ter de positivo – pelo menos no caso do crítico. Preciso ser capaz de colocar em palavras pelo menos alguns dos critérios ou princípios gerais que me movem. Não só por respeito ao outro, aquele que eventualmente me lê, como por respeito a mim mesmo, pensando em mim mesmo. Desde onde enxergo uma obra de arte? Desde onde penso o que penso e sinto o que sinto, mesmo que não o expresse publicamente?

Na origem, tudo vale.

Creio que em larga medida as razões pelas quais não mais se fazem essas perguntas aos artistas e aos críticos e que levam hoje vários críticos a dizer que seus critérios não podem ser colocados em palavras, embora por motivos diferentes daqueles assumidos por Greeenberg, podem ser encontradas nas proposições e atitudes de artistas como Warhol e Beuys segundo as quais qualquer coisa agora pode ser arte e qualquer um hoje pode ser artista, não existindo mais um jeito especial pelo qual algo se pareça com arte, nem uma ação especial que marque alguém como um artista. Tudo vale.

A aposta pessoal, a aposta transsubjetiva.

Se tudo vale ou, para apresentar a questão com um pouco mais de estilo contemporâneo: se o pluralismo é a tônica atual das artes visuais, a única coisa que a crítica parece poder fazer é apreciar cada obra em si mesmo e por si mesmo, nos termos de suas premissas e referências e segundo suas proposições – de tal forma que de fato nada haveria a ser dito preliminarmente sobre os critérios da crítica. É a atitude que Arthur Danto defende, por exemplo. Quando não há mais narrativas prévias que previamente justifiquem a obra de arte –a narrativa do realismo socialista ou da inclusão social ou dos princípios básicos da ótica como vetor da pintura ou a narrativa da ascendência do subconsciente sobre a criação artística ou a do privilégio da forma geométrica sobre qualquer outra--, e realmente não as há mais, e felizmente não as há mais, a saída seria enfrentar cada obra de peito aberto e, portanto, nunca explicitar de antemão, nem mesmo a posteriori, os princípios que orientariam e orientaram a crítica. Se tudo vale para o artista, tudo vale para o crítico. E para o curador. Nesse sentido, como observa outro escritor, Milan Kundera , nisso resumindo uma posição que tem sido a de tantos críticos ao longo da modernidade, todo juízo estético tende a apresentar-se como uma aposta pessoal – do artista, do escritor e do crítico. O problema é que essa aposta não se esgota numa pura subjetividade: ela enfrenta outros juízos, quer ser reconhecida de fora, aspira a alguma objetividade ou, aqui corrigindo Kundera, aspira em todo caso a uma inter ou transsubjetividade, não se contenta com manter apenas uma validade interna, restrita ao âmbito de quem a formula, do interesse apenas de seu formulador. Onde buscar a condição para alcançar essa ampliação do gosto subjetivo?

O valor na história

A primeira resposta cabível é que essa transsubjetividade se procura e se encontra na história. Dito de outro modo, os valores que posso adotar como guias de minhas preferências, de meu gosto, e que portanto não é mais apenas meu gosto mas um gosto que aspira a alguma comunidade, situam-se na história da arte sob estudo. Os valores estéticos só se percebem, em princípio, no contexto da evolução histórica de uma arte – e devo dizer que falo em evolução histórica de uma arte no sentido carnavalesco do termo, usado para descrever a passagem de uma escola de samba pela avenida (ainda que se trate da avenida artificial criada por Niemeyer): a escola de samba evoluciona pela avenida, quer dizer, vai daqui para lá e de lá para cá, dá um passo para o lado e depois um passo para o outro lado e para frente e para trás, num movimento de complexa figuração do qual são exemplos máximos a porta-bandeira e o mestre-escola. A escola de samba faz suas evoluções pela avenida mas de modo algum ela busca a cada metro de avenida ser melhor do que era um metro atrás ou diferente do que era há um metro atrás (a escola de samba deve mesmo ficar sempre igual a si mesma, mas essa é outra história). Só nesse sentido e apenas nesse sentido uso a palavra evolução quando me refiro à arte.

No passado,
o sentido da posteridade

Então, os valores estéticos só sao possíveis em princípio no contexto da história dessa arte. T.S.Eliot, cujas posições no passado ditas conservadoras sobre a cultura hoje servem para revigorar em mais de um aspecto o pensamento fossilizado sobre arte e cultura, diz aproximadamente a mesma coisa em outras palavras: nenhuma obra de nenhum artista ou poeta tem sentido em si mesma, o que significa dizer que nenhum poeta ou artista tem sentido em si mesmo. O valor de uma obra somente surge quando ela é comparada a obras de outros artistas ou poetas, e em particular, a obras de artistas e poetas mortos. Dizendo isso, TS Eliot dava forma a uma percepção que imemorialmente se revela aos que se comprometem com mais empenho nesse processo, como pede Muntadas , e se recusam a seguir por trilhas comuns: a percepção de que o primeiro público de um grande artista é aquele que já morreu, a percepção de que a grande frustração de todo grande artista do século 20 é que os artistas dos séculos anteriores que ele admira nunca poderão ver sua obra e sobre ela dizer alguma coisa. Essa a grande solidão do artista e do poeta. Solidão final e irreversível: ele sabe o que aconteceu antes dele ao passo que aquilo que aconteceu antes dele o ignorará para sempre. Isso significa, ainda, que o artista e o poeta falam para o presente e para a posteridade na medida, e apenas na medida, em que buscam um lugar na série passada que se prolonga: esse é o único sentido da posteridade.

O valor fora
da história

A história fornece portanto um valor de saída, o que significa que na verdade não estou enfrentando e nunca enfrento de peito aberto a obra de arte, assim como nenhum artista enfrenta de peito aberto a obra a realizar. Mas, questão previsível e inevitável, é a história que define os valores ou são os valores que definem a história? Jan Mukarovsky, fundador da estética estruturalista que hoje não se lê mais, escreveu que “apenas supondo-se um valor estético objetivo a evolução da história da arte adquire sentido”. Dito de outro modo, como faz Milan Kundera, se o valor estético não existisse, a história da arte seria um imenso depósito de obras sem sentido. Se não houvesse valor estético, a cronologia da história da arte não teria pé nem cabeça e a própria idéia de História, como a conhecemos, seria impossível ou vazia. Poderíamos ter crônicas da arte -- talvez aquilo que num certo sentido temos agora-- mas não uma História da Arte como a entendemos ou como se entendeu essa História até meados do século passado. Talvez, nesse caso, não houvesse espaço nem mesmo para as crônicas. Quando penso nesse tema me vem à memória uma imagem recorrente, obsessiva: a seqüência final do filme Caçadores da arca perdida, quando a arca-tema é vista sendo levada num carrinho de mão empurrado compassadamente por um homem. No início da seqüência, a câmera está em close sobre a arca e aos poucos abre um zoom que aos poucos amplia o campo de visão, deixando o espectador perceber que a arca está sendo introduzida num enorme galpão, um infinito galpão lotado, a perder de vista, de caixas análogas que se amontoam sem critério aparente, todas iguais, sem nada que, de fora, diferencie umas das outras. Sem identidade, como se diz. Um amontoado de caixas anônimas. Georg Simmel , de cuja obra estimulante ainda não se extraíram todas as conseqüências possíveis para o estudo da arte e da cultura, diz praticamente o mesmo em palavras próprias: não há valor cultural que seja apenas valor cultural, quer dizer, que se defina a partir de suas coordenadas internas: para que exista , essa significação precisa ter também um valor numa série objetiva – e a série objetiva que temos à mão é a da história da arte.