A recepção em tempos de aceleração ou por uma temporalidade distendida

relato Conferência Inaugural, por Fernanda Albuquerque

A relação do público com a arte em tempos de “aceleração e amnésia” foi um dos assuntos que norteou a conferência inaugural do II Simpósio Internacional de Arte Contemporânea, realizado no Paço das Artes, em São Paulo. Tanto nas falas dos palestrantes Roger Buergel e Márcio Seligmann, quanto nas contribuições da mediadora Lúcia Santaella e dos debatedores Nelson Brissac, Bia Medeiros e Suely Rolnik, a questão marcou as reflexões em torno dos temas propostos pelo Simpósio: arte, espaço, aceleração e amnésia.

Roger Buergel, diretor artístico da 12ª Documenta de Kassel, enfatizou a influência do mercado nessa relação. Não só do mercado de arte, mas do mercado de bens e serviços de maneira geral. “O que realmente me preocupa é o mercado como uma força totalizadora que estrutura a nossa subjetividade e a nossa relação com o mundo”, destacou. Quanto à relação com a arte, em particular, o curador chamou a atenção para o risco de reduzirmos a nossa relação com as obras a uma relação de consumo como outra qualquer, pautada na satisfação imediata de desejos que, uma vez saciados, são logo substituídos por novos, ralos e reluzentes anseios.

Pois a “ausência de desejo” provocada pelo estado de permanente satisfação proporcionado pelo consumismo exacerbado que caracteriza os nossos tempos produziria, de acordo com Buergel, uma incapacidade de amarmos o mundo. É como se os nossos vazios – ou os nossos sentimentos de falta e incompletude –, ao serem virtualmente preenchidos por objetos de consumo, não deixassem espaço para outras “coisas e pessoas serem importantes para nós”. Ou, em outras palavras, não deixassem espaço para amarmos. Daí a necessidade de apostar na arte – nos artistas e nas instituições – como agentes capazes de propor relações mais detidas e menos aceleradas com o mundo, de forma a alimentar o que o crítico chama de “amor ao mundo”.

A questão é, como bem apontou Bia Medeiros, “Como fazer para trazer o público mais próximo da arte? Para fazer com que ele vivencie, de fato, a arte?” Em sintonia com o pensamento de Buergel, a pesquisadora lembrou que a rapidez com que as pessoas se interessam e deixam de se interessar pelas coisas hoje em dia não abre espaço para o tempo de entrega que a arte precisa. “Você tem que desejar tudo muito pouco para poder, rapidamente, desejar outra coisa”, explicou. Só que a arte precisa de outro tempo, de outro tipo de relação, já que “arte é exatamente aquilo que não se consome, mas que se guarda”.

Uma das possibilidades apontadas por Buergel para o desafio de aproximar o público da arte é fazer uma espécie de “caminho inverso”, isto é, não esperar que as pessoas venham até as instituições e espaços próprios da arte, mas deixar as estruturas institucionais e se deslocar para onde elas não existem, ou seja, ir em direção às pessoas. Isto em um quadro onde as instituições estejam fortemente firmadas e onde não seja preciso lutar para que elas existam ou se mantenham, ressaltou o curador. Ainda assim, na sua opinião, “a única maneira de as instituições sobreviverem é elas se expandirem de forma a atrair novos públicos e audiências”.

A mesma aceleração das relações discutida por Buergel foi abordada por Márcio Seligmann em sua palestra. Diante do “estado de fluxo” que caracteriza a nossa era, marcada pela circulação acelerada de informações, imagens, pessoas, idéias etc., nós sofreríamos, segundo o teórico, de um estado concomitante de hipermnésia e de amnésia. Isso porque, se por um lado vivemos uma busca incessante pela produção e pelo arquivamento de um número sempre crescente de informações – processo evidentemente potencializado pelas novas tecnologias de comunicação e de informação –; por outro, essa mesma aceleração que nos permite criar e fazer circular quantidades colossais de informação nos rouba a temporalidade necessária para que a memória se forme, levando a sociedade a um estado de hipomnésia ou mesmo de amnésia.

Nesse sentido, Nelson Brissac sublinhou a metáfora da fotografia do sol (literalmente, uma fotografia que retrata o sol), de Alejandra Riera, apresentada por Roger Buergel. “Olhar contra o sol não deixa de ser uma metáfora da nossa condição de público, isto é, do risco de cegueira que a profusão de imagens e informações nos traz”, refletiu o professor e curador.

Pois a mesma temporalidade necessária para que a memória se forme – ou para que não nos tornemos cegos diante da abundância de luz – também é fundamental, como destacou Seligmann, para uma recepção detida e não distraída de obras de arte. Isto é, para uma recepção que não aproxime os trabalhos de produtos de consumo, passíveis de serem apreendidos de forma rápida e desinteressada, mas que estimule uma atitude de engajamento e de reflexão por parte do público.

A aposta nessa temporalidade distendida seria, segundo o teórico, uma das grandes qualidades da 12ª Documenta de Kassel – e um dos aspectos que denotam o viés marcadamente político da exposição. Ao buscar retomar os laços com a Modernidade, o evento teria reafirmado não só as imbricações entre arte e política, mas “o compromisso iluminista de formar o público para combater a ‘vida nua’ enquanto figura do ser humano sacrificado”. Sobre essas questões, o autor pontuou: “Contra a tendência à aceleração, as obras [da 12ª Documenta] exigem uma reflexão, uma recepção não-distraída que não desvia o olhar do espectador dos problemas da sociedade, como o fazem os produtos da indústria cultural”. Muito pelo contrário, para ele, os curadores teriam apostado na força da arte como meio de abalar as políticas de globalização e de exclusão e intervir, desse modo, no corpo social. Quanto a esse aspecto, vale notar a intervenção de Suely Rolnik, que atentou para o fato de que a Documenta 12 é apenas umas das inúmeras iniciativas artísticas no território da arte, na atualidade, a investir nas relações entre estética e política.

No que diz respeito a essas relações, Buergel reafirmou o seu interesse pelo aspecto político da arte, porém não por uma arte que apenas ilustra o político, mas por uma arte capaz de transformar os indivíduos por meio da experiência e da reflexão que lhes propicia. Para isso, no entanto, parece ser necessário não apenas um engajamento político por parte dos artistas, o que, de resto, nem sempre produz obras que vão além da simples ilustração, mas um engajamento artístico por parte do público, isto é, uma abertura para o tempo de entrega que a arte necessita.