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Obras da Bienal que buscam reparação histórica recusam contradições

Luta para substituir velhos comportamentos por novos, mais adequados, não é ruptura.

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/bernardo-carvalho/2023/10/obras-da-bienal-que-buscam-reparacao-historica-recusam-contradicoes.shtml?origin=folha

 

Por Bernardo Carvalho

FOLHA DE S. PAULO

Publicado em 06/10/2023

 

Logo na entrada da 35ª Bienal de São Paulo, um vídeo põe o mundo em questão com perguntas singelas sobre os costumes, a cultura, o que deveria ser assumido como natural e por tabela também o lugar onde se está (e de onde se fala). Um questionamento assim não poderia eximir a mostra na qual o próprio vídeo se insere.

"Uma Mulher Pensando", de Aida Harika Yanomami, Edmar Tokorino Yanomami e Roseane Yariana Yanomami, é um dos dois vídeos na Bienal realizados pelos membros comunicadores do coletivo Hutukara Associação Yanomami e produzidos pela Aruac Filmes.

Aida Harika Yanomami encarna a mulher do título: "Eu me pergunto [...], eu imagino. Por quê? Pra quê?", ela repete, em off, enquanto observa a preparação da yãkoana (substância alucinógena feita com pó de cascas de árvore) para o ritual xamânico de contato com os xapiri, os espíritos da floresta. Da rede onde está deitada, ela observa o xamã e se pergunta se o preparo vai dar certo. Qual será o efeito? Será mesmo forte? Será que as pessoas realmente veem o xapiri sob efeito da yãkoana?

E ao se perguntar ela desconstrói tudo o que é assumido como inquestionável, tudo o que é comum: as identidades, o pertencimento, o compartilhamento dos sentidos. Ela desreconhece.

É esse o lugar da arte na crise da modernidade. Ou era. O que Godard chamava de exceção por oposição à regra da cultura. Uma dessintonia entre compreensão e sentido, na qual o sentido está em deixar de compreender o que se sabe (o que supostamente todo o mundo deve saber), o que é (ou devia ser) comum, o que é (ou devia ser) natural, inquestionável. A cultura supõe o saber, a obra contradiz a cultura.

Muitas na Bienal são obras da vontade (e não da contradição), são asserções, expressão da cultura (e não da dúvida). Não há ruído nem problema entre o que querem dizer e o que dizem; estão do lado do que é justo, do que é consenso entre quem as busca como confirmação. E nesse sentido são moralmente inquestionáveis.

Ninguém vai à Bienal contra a emancipação dos oprimidos, a favor do racismo, da homofobia e das desigualdades. É um pacto garantido pela cultura que estabelece regras, comportamentos e costumes.

O que se busca nessas obras é um ajuste, uma reparação, um acerto de contas: a bem-vinda correção das narrativas históricas, a representação de vozes sub-representadas, o confronto com a hipocrisia e a violência de uma sociedade que diz uma coisa e faz outra.

A luta para substituir velhos comportamentos por novos, mais adequados aos princípios e valores que essa mesma cultura defende da boca para fora, ainda é parte dessa cultura. Não é ruptura. É uma guerra contra as contradições. A contradição é a última coisa de que um exército precisa.

A dúvida é disruptiva. A cultura supõe coesão. É a lógica da moral, dos costumes, mesmo na sua reciclagem.

A mulher pensando na rede já não pode confirmar, já não reconhece a cultura; ela a estranha. E assim põe em marcha uma lógica de crise, de ruptura. A crise —ao contrário da moral, que está dada por antecedência— faz parte do exercício da ética, do confronto com o novo, com o inesperado, o que está por vir, o que ainda não se sabe.

Quando mencionei o vídeo a duas amigas que encontrei no terceiro andar do prédio da Bienal, onde estão algumas das principais e mais interessantes obras da mostra, elas riram e imitaram as perguntas da mulher yanomami, como se ela não tivesse o direito de fazê-las, como se não tivesse direito à dúvida. Devo confessar que também me surpreendi ao ver o vídeo pela primeira vez, ao mesmo tempo encantado e espantado, repetindo para mim mesmo que aquilo era cinema experimental, como se cinema experimental não fosse possível entre os yanomami.

Atribuir à influência de uma cultura exógena, à aculturação, toda subjetividade em suposta dessintonia com o seu meio, como se os indígenas não tivessem direito ao não, à singularidade, à reflexão e à dúvida, exprime um preconceito análogo ao que, muitas vezes com a melhor das intenções, reduz as representações artísticas à expressão de um lugar (e de uma identidade) supostamente inquestionável, rejeitando o potencial de contradição da obra em relação a sua origem.

Há 60 anos, ao refletir sobre a crise dos valores na arte (e a favor da crise), o crítico Harold Rosenberg acabou divisando um princípio: não dava para ser ao mesmo tempo arte e inquestionável. Ou era uma coisa ou outra. A partir do momento em que arte e moral se fundem, entretanto, essa afirmação perde todo o sentido. Ou não?