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“Quanto maior o colapso do governo, maior a virulência da guerra cultural”, diz pesquisador da Uerj

Entrevista por Ciro Barros para A Pública em 28/05/2020.

Para o professor João Cezar de Castro Rocha, uma visão revanchista e revisionista da história brasileira moldou Bolsonaro e os bolsonaristas; é essa narrativa que justifica a criação e eliminação de inimigos em série enquanto, ao mesmo tempo, torna impossível governar

João Cezar Castro Rocha, professor titular de literatura comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), vem se dedicando a entender o que ele chama de guerra cultural bolsonarista. O resultado de sua pesquisa é o livro Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas do Brasil, que deve ser lançado no fim de junho deste ano pela editora Caminhos.

Em seu livro, Castro Rocha busca se afastar das ideias mais conhecidas sobre as guerras culturais, como aquelas que orbitam o trabalho do sociólogo americano James D. Hunter, buscando a especificidade da guerra cultural empregada pela militância bolsonarista no Brasil, da qual fazem parte alguns dos influenciadores alvos de mandados de busca e apreensão da Polícia Federal no chamado inquérito das fake news.

Para ele, o tripé fundamental que alimenta a mentalidade desses grupos é constituído pelo discurso revanchista e revisionista sobre o golpe de 1964, que formou o projeto Orvil, o Livro Secreto do Exército; a Doutrina de Segurança Nacional, que traz a ideia do inimigo interno que deve ser eliminado; e a popularização do que ele chama de retórica do ódio, promovida pelo escritor Olavo de Carvalho.

Em entrevista à Agência Pública, Rocha relaciona esses elementos e alerta para a possível radicalização da militância bolsonarista ante o colapso do governo. “Sem guerra cultural, não há bolsonarismo. Mas com guerra cultural não pode haver governo Bolsonaro”, afirma.

João Cezar Castro Rocha é professor titular de literatura comparada da UERJ e estuda a guerra cultural bolsonarista

O senhor entende que há uma guerra cultural especificamente bolsonarista e que ela difere de um conceito mais amplo de guerras culturais. Quais são os pilares dessa guerra cultural bolsonarista?

Eu não nego em nenhuma circunstância que há elementos dessa guerra cultural bolsonarista que são elementos transnacionais, que você vai encontrar na chamada alt-right americana, vai encontrar no Movement, do Steve Bannon; e há uma série de técnicas, sobretudo aquelas associadas à utilização muito hábil das redes sociais, que não são especificamente bolsonaristas ou particularmente brasileiras. Mas o que eu estou sugerindo, desde março de 2019, é que a guerra cultural bolsonarista é o eixo do governo. Isto, naquela época, parecia absurdo porque todos atribuíam às políticas anticorrupção do Sergio Moro e à agenda liberal econômica do Paulo Guedes os pilares fundamentais [do governo Bolsonaro], mas eu já afirmava que o eixo do governo como um todo é a guerra cultural bolsonarista.

Qual é o esteio da guerra cultural bolsonarista? O que conformou a mentalidade de Jair Messias Bolsonaro e seu clã? O Bolsonaro, mais do que um político, é uma franquia; há uma franquia Bolsonaro de políticos. A mentalidade de Jair Messias Bolsonaro foi formada pelo Exército brasileiro, mas moldada numa linha muito particular do Exército, que é marcada pelo ressentimento a partir da repercussão de um autêntico livro-monumento lançado em 1985 que é o livro Brasil: nunca mais. Esse é um livro particularmente importante porque denunciou as torturas, as arbitrariedades e desaparecimento de corpos da ditadura militar de uma forma incontestável. Sob o patrocínio do cardeal dom Paulo Evaristo Arns, ele principiou em 1979, quando os advogados de presos políticos tiveram acesso aos processos de seus clientes e ganharam o direito de ficar com eles durante 24 horas. Eles xerocaram os processos do Superior Tribunal Militar, reunindo aproximadamente 6 mil páginas, e eis a surpresa: em processos instruídos pela própria Justiça Militar, isto é pela própria ditadura militar, os presos denunciaram aos juízes militares as torturas que haviam sofrido. O Brasil: nunca mais reúne um conjunto de depoimentos de jovens de 20 e poucos anos, extraídos dos processos da Justiça Militar, em que todos fazem o mesmo relato, alguns dizem que foram usados como cobaia em aulas de tortura. É impressionante, um livro negro da ditadura militar.

O livro foi um sucesso absoluto quando lançado, vendeu mais de 100 mil exemplares e teve enorme repercussão no exterior. Ele ajudou a consagrar, no período da redemocratização, uma imagem das Forças Armadas associada à repressão, à tortura e à morte. Isso marcou muito uma geração do Exército brasileiro que, por isso, sempre teve um projeto revanchista, baseado num processo revisionista. É por isso que na mentalidade bolsonarista nega-se a existência de tortura, nega-se que o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos piores torturadores da história da humanidade, tenha torturado. A mentalidade bolsonarista não nega apenas a Covid-19, nega também as torturas da ditadura militar.

Então forma-se aí uma mentalidade revisionista e revanchista no Exército porque considera que os militares venceram a batalha, no golpe de 1964, mas perderam a guerra, a guerra pela opinião pública. O que o Exército fez? Resolveu devolver na mesma moeda. De 1986 a 1989, sob a liderança do então ministro do Exército do José Sarney, o Leônidas Pires Gonçalves, os militares compilaram documentação, sobretudo de um órgão de repressão, o CIE [Centro de Informações do Exército], privilegiando o que consideraram ser os crimes da luta armada no Brasil. E, de fato, a luta armada de esquerda no Brasil matou inocentes. O primeiro grande atentado da luta armada no Brasil foi cometido no aeroporto de Guararapes, no Recife, em 1966, onde o general Costa e Silva chegaria de avião. Colocou-se uma bomba de grande letalidade, a bomba explodiu no aeroporto, matou um jornalista, um militar, deixou muitos feridos, e o general Costa e Silva acabou indo de carro para o Recife porque o avião dele teve uma pane. Isso tem nome: é terrorismo. Eu sou de esquerda, mas é preciso ser intelectualmente honesto. Os militares formaram então o projeto Orvil, que é livro ao contrário, coisa bem de militar. É literalmente o Brasil: nunca mais de cabeça pra baixo, não são mais os crimes da ditadura, mas sim os da luta armada. É uma lista longa de grupos armados, dos desmontes desses grupos e dos crimes que os militares consideram que eles cometeram.

Mas o mais importante está no subtítulo do livro, onde está dito: “tentativas de tomada do poder”. No plural: tentativas. Quem tentou tomar o poder? A esquerda. Mas, se está no plural, quantas tentativas ocorreram? Segundo o Orvil, quatro vezes. Eles estabelecem uma cronologia para a história republicana que é puro delírio, mas justifica plenamente a mentalidade bolsonarista. Nessa reunião agora, do dia 22 de abril, em um momento inesperado, o Bolsonaro diz a seguinte frase: “Se eles tivessem vencido em 1964, vocês hoje teriam sorte de cortar cana e ganhar US$ 20 por mês”. Parece uma frase absolutamente lunática: estamos em 2020, passamos 56 anos desde 1964. Àquela altura, o Brasil já contava com praticamente 50 mil casos e 3 mil mortes de Covid-19 notificadas. Como assim, do nada, numa reunião para tratar da retomada econômica após a pandemia, como é possível que ele tenha dito essa frase?

Mas isso está tudo no Orvil. É a retórica do Orvil, uma retórica que prepara um golpe. É preciso levar a sério. Na introdução do Orvil, eles dizem que a história republicana brasileira, desde 1922, é uma tentativa constante de tomadas de poder pelos comunistas para criar no Brasil uma ditadura do proletariado que, dadas as dimensões continentais, tornariam o Brasil uma China tropical. A cronologia é assim: a primeira tentativa de tomada do poder, segundo eles, foi de 1922, com a criação do Partido Comunista no Brasil, a 1954, com a ebulição política após o suicídio de Getúlio Vargas; a segunda tentativa foi a radicalização política que houve entre 1954 e 1964, com as Ligas Camponesas do Francisco Julião, a retórica radical do Brizola, o discurso de Luís Carlos Prestes no Pacaembu às vésperas do golpe de 1964; a terceira foi entre 1964 e 1974, com a luta armada no Brasil, a guerrilha do Araguaia. E aí vem a quarta tentativa, que eles dizem ser a mais perigosa de todas. Eles citam Herbert Marcuse [filósofo alemão] e, embora não citem [o filósofo italiano] Gramsci, descrevem como a quarta tentativa de tomada de poder a infiltração das instituições, sobretudo de cultura, para moldar uma mentalidade diversa que seria propícia ao advento do comunismo que viria, não pela luta armada, mas pelas eleições. Isto é ou não é o discurso integral do governo? Quando eles dizem que o Brasil está virando comunista, como é possível imaginar isso? Como imaginar que os governos petistas eram comunistas? Não é um delírio, é essa matriz narrativa do Orvil. Se você aceita essa narrativa, o que decorre é um segundo ponto: a Doutrina de Segurança Nacional.

O senhor se refere àquela ideia, adotada pela ditadura, de transpor para o ambiente interno do país a lógica de guerra de eliminação do inimigo?

Exatamente. Na narrativa do Orvil, não houve um único dia em que o movimento comunista internacional não tenha tentado impor uma ditadura do proletariado visando transformar o Brasil numa China tropical. Se, de 1922 até hoje, há a tentativa de tomada do poder, é preciso que haja uma contrapartida de defesa, a Doutrina de Segurança Nacional. Que não é uma invenção da ditadura militar brasileira: foi desenvolvida no âmbito da Guerra Fria e existe em outros países. Ela prevê condições específicas para a defesa da integridade da nação quando atacada por um inimigo externo. O direito público internacional criou o chamado direito de conservação, que estabelece que, se uma nação é atacada por outra com a finalidade de ser subjugada, a nação atacada tem todo o direito de usar os meios necessários para repelir a agressão, ainda que para fazê-lo seja necessária a eliminação do inimigo externo. É uma ideia justa, de legítima defesa. A Doutrina de Segurança Nacional adaptou essa ideia ao ambiente interno, de que o inimigo externo deve ser eliminado para a eliminação do inimigo interno, que é o subversivo comunista. Como o subversivo comunista na narrativa do Orvil está a serviço do movimento comunista internacional, ele é em alguma medida externo e, portanto, uma vez identificado, o que fazer com ele? Eliminar. Ponto. Eliminar.

“Sem guerra cultural, não há bolsonarismo”, afirma Rocha. Ele é autor do livro Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas do Brasil, que será lançado em junho

Mas nessa guerra cultural que o senhor descreve haveria também essa ideia de eliminação? Ela se daria no plano físico ou num plano moral, de destruição de reputações?

Eu me fiz essa pergunta também. Como você faz para traduzir essa Doutrina de Segurança Nacional para tempos democráticos? Tenho duas hipóteses. Uma delas você já anunciou: a militância virtual bolsonarista realiza massacres de reputação com uma violência e virulência inéditas no Brasil. Destruir reputações não é uma novidade, é algo que sempre acompanhou a política. Mas a maneira pela qual, de maneira sistemática, a guerra cultural bolsonarista inventa inimigos em série e realiza rituais expiatórios é uma coisa muito impressionante. Se você pensar no que foi feito com Gustavo Bebianno, o general Santos Cruz, com o próprio Mourão, a Joice Hasselmann, agora com o Moro. De uma hora para outra há uma inversão completa na caracterização do personagem, e a destruição simbólica que eles sofrem é um equivalente de uma eliminação do ponto de vista simbólico e individual. Agora, na narrativa do Orvil, a quarta tentativa de tomada de poder ocorreu pela tentativa de infiltração nas instituições, sobretudo as de cultura: imprensa, arte e universidade. Não é verdade que por trás, por exemplo, da reunião do dia 22 de abril o ministro do Meio Ambiente disse com uma desfaçatez muito impressionante: “Aproveitemos que os olhos da imprensa estão voltados para a Covid e vamos passar de boiada dispositivos infralegais”? Em dado momento, a ministra Damares se vira para o então ministro da Saúde Nelson Teich e diz: “Ministro, o senhor chegou agora no time. No seu ministério há muitos abortistas e feministas, não vamos permitir que as grávidas que contraíram Covid façam aborto”. Isso é inacreditável. O ministro da Educação sugere prender os “vagabundos” do Supremo Tribunal Federal. Todas as ações do governo são de destruição das instituições que correspondem às instituições assinaladas pela narrativa do Orvil como as que pretendem impor o comunismo no Brasil. Quando eles falam em extrema imprensa, a matriz narrativa está no Orvil.

A tradução inesperada da Doutrina de Segurança Nacional tem como correlata a destruição sistemática das instituições. O que acontece quando você entrega a Fundação Zumbi dos Palmares a uma pessoa que nega a existência do racismo no Brasil e que sugere que o Dia da Consciência Negra seja abolido para a criação do dia da Consciência Humana? É ou não é uma destruição da Fundação Zumbi dos Palmares? Quando você entrega o Iphan, um dos órgãos mais antigos e longevos da precária estrutura de cultura no Brasil, para uma blogueira que se define como “turismóloga” é a mesma coisa. A Fundação Casa de Rui Barbosa, que armazena manuscritos de Clarice Lispector, de Manuel Bandeira, de Otto Maria Carpeaux, de João Cabral de Melo Neto, da nata da literatura brasileira, para uma roteirista da TV Record, a Letícia Dornelles, que não tem qualificação mínima legal para exercer o cargo, é ou não é uma destruição? Quando a Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] corta 6 mil bolsas de pós-graduação na calada da noite, é ou não é uma destruição? O CNPq agora lançou um edital de iniciação científica e retirou do edital a área de humanidades. Isto nunca aconteceu em nenhum lugar do mundo. É chocante, mas segue a narrativa do Orvil. Não foram essas as instituições que foram infiltradas por comunistas? Eles não podem, por enquanto, eliminar inimigos fisicamente. Eu não posso ser eliminado fisicamente, mas eles podem destruir a universidade para qual eu trabalho. Se o fizerem, eles estão me eliminando do ponto de vista profissional.

Mas aí não poderia se argumentar que o governo possui uma matriz de valores e que está nomeando pessoas que sigam esses valores para atuarem nas instituições?

Eu proponho que não. Chegou a hora de nós dizermos com todas as letras que é um governo de extrema direita, unicamente interessado num projeto autoritário de poder cuja finalidade última é eliminar todo aquele que pense de forma diversa. Todos os indícios estão dados. É um projeto de poder muito próximo ao projeto em curso na Hungria, que é um projeto de democracia na aparência e autoritarismo na prática. Por exemplo, como compreender o esforço de Jair Messias Bolsonaro de controlar a Polícia Federal? Porque, além de proteger os seus, ele persegue os adversários. Se um governo consegue instrumentalizar todas as instituições de Estado a seu favor, não é preciso dar um golpe, o golpe já está dado. Lançar um edital de iniciação científica e retirar as humanidades é um gesto que nem a ditadura militar ousou fazer. E aqui não se trata nem de instrumentalizar instituições, mas sim de destruí-las. A função precípua da guerra cultural bolsonarista não é imposição de valores deles; não há valores, só há destruição sistemática das instituições. Veja o que está acontecendo no Meio Ambiente. Há um desmonte radical de todas as formas de controle e fiscalização. O mesmo acontece em todas as áreas. A Doutrina de Segurança Nacional de eliminação do inimigo interno está sendo levada com uma seriedade que nem a ditadura militar teve. Ou nós paramos essa sanha de destruição, ou o mesmo vai acontecer em todas as áreas. Se em dois, três, quatro anos nós não tivermos bolsas de iniciação científica para áreas de humanidades, isso quer dizer que uma geração inteira de alunos não terá bolsas. É muito grave. Além do que a violência, que parecia ser uma violência puramente digital, está nas ruas agora. Você viu o que aconteceu ontem [dia 25/5], quando jornalistas da Folha, do Globo, do Metrópoles simplesmente abandonaram o cercadinho? Você viu a imagem da Folha de S.Paulo, o teor das agressões dos bolsonaristas? Há ali uma postura física de agressão, quase de passar as barreiras e agredir os profissionais fisicamente. Semana passada um cinegrafista de uma associada da rede Globo teve a mão quebrada por um sujeito que passava na rua. Isso é inconcebível. Eu não questiono a eleição do Jair Messias Bolsonaro, ela foi legítima, ele teve 57 milhões de votos, mas as políticas públicas não são legítimas.

O presidente Jair Bolsonaro e o autodenominado filósofo Olavo de Carvalho

O senhor defende que há três pilares: além da narrativa do Orvil e da Doutrina de Segurança Nacional, há a popularização de uma retórica de ódio que partiu em boa medida do escritor Olavo de Carvalho. Como esse terceiro elemento se soma a esse quadro que o senhor está defendendo?

Esse é o tripé que eu estou montando, mas uma armadilha na qual eu não vou cair é discutir a filosofia do Olavo de Carvalho. Para mim, ele não tem filosofia alguma. O que me interessa assinalar é que, ao longo de uma pregação de quase duas décadas, ele criou o que eu chamo de sistema de crenças Olavo de Carvalho. Esse sistema de crenças é uma espécie de ponto de fuga que potencializa ao máximo os elementos do Orvil e da Doutrina de Segurança Nacional. Ele desenvolveu com muita habilidade uma retórica do ódio.

Qual a finalidade do Olavo de Carvalho, um senhor de mais de 70 anos, se dar o trabalho de, quando ele tem um desafeto, mudar o nome da pessoa? Eu, por exemplo, que sou João Cezar de Castro Rocha, virei João Cezar Castrado ou Brocha, Chato de Galocha. É tão infantil que eu acho graça. Ele tem reduzido a língua portuguesa a dois verbos: o verbo tomar, sabemos onde, e o verbo ir, sabemos aonde, não é mesmo? Que finalidade há nisso?

O Olavo de Carvalho é uma pessoa de cultura superior, uma pessoa que leu muito. Não faz sentido não levar a sério o que ele está fazendo. O que eu estou propondo é que a retórica do ódio traduz a Doutrina de Segurança Nacional para a linguagem midiática das redes sociais. Veja, quando eu modifico o nome de uma pessoa de forma a ridicularizá-la, o que eu estou fazendo senão uma desqualificação que nulifica a pessoa? Não se trata de uma desqualificação cuja finalidade é eliminar o outro?

Além disso, há uma outra base nessa retórica do ódio do Olavo de Carvalho, que eu chamo de hipérbole descaracterizadora. Funciona assim: o Olavo diz: “Nunca antes na história da humanidade houve um ataque contra um filósofo como o que acontece comigo. Contra mim já se escreveram 100 mil páginas em 15 línguas”. É uma hipérbole tão descaracterizadora porque é óbvio que não há nenhuma possibilidade de que haja na face da terra 100 mil páginas contra o Olavo de Carvalho, muito menos em 15 idiomas. Mas qual o efeito produzido por essa hipérbole? Você nulifica o pensamento. Porque ou você adere, ou você recusa, não tem pensamento possível. Só há pensamento quando há mediação. A estratégia do Olavo, na retórica do ódio, é, de um lado, uma desqualificação que torna o outro um nada, e do outro, um conjunto de hipérboles que inviabiliza o pensamento, porque suprime as mediações. Agora, tem uma armadilha maluca no Olavo de Carvalho: ele usa outro estratagema para inviabilizar o pensamento. Diz assim: “Não é possível fazer uma análise da minha obra lendo apenas um texto, é preciso ler toda a obra, assim como todos os tweets, os posts do Facebook e ter escutado todas as aulas do meu curso de filosofia”. Mas nem se fosse Deus na face da terra mereceria tanto esforço. Então, para analisá-lo, você tem que ter lido toda a obra dele e se, ainda assim, você não concordar é porque você foi educado pelo método Paulo Freire, então você é um analfabeto funcional. Você assistiu um vídeo pavoroso em que há enfermeiras e enfermeiros na praça dos Três Poderes protestando pacificamente para chamar atenção das autoridades para a vulnerabilidade dos profissionais de saúde na pandemia? Ali há um senhor absolutamente alucinado que entra no quadro e grita para uma enfermeira: “Você é uma analfabeta funcional!”. Ele repete isso quatro vezes em mais ou menos 90 segundos. Ora, é o vocabulário inventado pelo Olavo de Carvalho, é o sistema de crenças dele, que parte de uma teoria conspiratória que casa perfeitamente com o Orvil. E o esteio da preocupação do Olavo de Carvalho, que já foi membro do Partido Comunista Brasileiro, já foi astrólogo, já foi membro de uma tariqa [espécie de seita esotérica muçulmana], se reinventou como professor de filosofia e agora como ativista político, são técnicas mentais de manipulação psíquica. Esse é o eixo permanente de preocupações de Olavo de Carvalho, e isso não é uma interpretação minha. No meu livro eu faço uma colagem de passagens dos livros dele em que isso aparece. O sistema de crenças Olavo de Carvalho explodiu na cultura brasileira com data marcada: 2015. Nas manifestações de 2015, surgiu uma frase e gritada por manifestantes: “Olavo tem razão!”. Você acha que essas pessoas todas leram Olavo de Carvalho? Claro que não. Mas um sistema de crenças não é contestável pela realidade, é um sistema lógico autocentrado que, quanto mais atacado, mais se fortalece. As pessoas se convencem de que Olavo está sendo atacado porque tem razão. Há uma convergência dos três elementos: a Doutrina de Segurança Nacional, o Orvil e essa retórica do Olavo de Carvalho. Esta popularizou as outras duas. Você nunca viu um cartaz escrito “Orvil tem razão”, mas você já viu “Olavo tem razão”. E parte considerável do que Olavo propõe em sua obra, de uma infiltração gramsciana para a tomada do poder, está no Orvil.

Aí há um tripé muito poderoso. Os dois primeiros [Orvil e Doutrina de Segurança Nacional] alimentam a mentalidade bolsonarista e o próprio Exército. O general Mourão homenageou Ustra em sua despedida do Exército. Muitas das atitudes do general Heleno só são compreensíveis a partir da mentalidade Orvil, de revanchismo e revisionismo. Olavo foi importante para a direita brasileira nos anos 1990, para criar uma estrutura de pensamento e difundir uma nova bibliografia, mas, ao se mudar para os Estados Unidos e entrar nas redes sociais, ele assumiu uma nova persona que criou esse sistema de crenças. É curioso, porque no livro O imbecil coletivo, de 1996, ele diz que “o imbecil coletivo” é o surgimento de uma imbecilização de pessoas que eram muito inteligentes, mas que, como formaram uma hegemonia de pensamento e essas pessoas não foram contestadas, acabou ocorrendo um processo de imbecilização coletiva à esquerda. Mas o que ele conseguiu fazer nesse sistema de crenças dele é uma imbecilização coletiva à extrema direita.

Mas há um problema que decorre de toda essa caracterização que eu fiz até agora. A guerra cultural bolsonarista é, do ponto de vista de mobilização das massas, sobretudo as digitais, um fenômeno sem paralelo na história política brasileira recente. Essa guerra cultural se vale dos sentimentos mais arcaicos da cultura humana; o mais arcaico de todos, que é a violência, está na superfície da guerra cultural bolsonarista – não há guerra cultural bolsonarista sem retórica do ódio e sem violência explícita. Nada é mais primitivo que a invenção constante de inimigos e a promoção de linchamentos, e a guerra cultural bolsonarista é inteiramente baseada nessa criação sistemática de inimigos para sua transformação em bodes expiatórios. A massa se une no ódio àquela figura, mesmo que num momento anterior ela tenha sido idolatrada. O que ocorreu com o Sergio Moro, para os bolsonaristas, mais radicais é um fenômeno antropológico de grande alcance, um ritual dos mais arcaicos, que é o de formação de um bode expiatório. Essa guerra cultural bolsonarista tem uma enorme capacidade de produção de sentimentos de violência desse sacrifício expiatório, a capacidade que isso tem de produzir mobilização nós estamos vendo, essa força aglutinadora da violência e do ódio.

Agora, há um paradoxo aqui. Sem guerra cultural, não há bolsonarismo. Mas com guerra cultural não pode haver governo Bolsonaro. Voltemos à reunião do dia 22 de abril. Destaca-se, num primeiro momento, que há um plano em curso: o plano da destruição das instituições e supressão de direitos. O ministro Paulo Guedes, por exemplo, usa um vocabulário que em outras circunstâncias seria impossível imaginar. Ele diz, se referindo aos funcionários públicos: “Eles acham que nós estamos distraídos, mas nós vamos lá e colocamos a granada no bolso do inimigo”. E ele completa: “Não terá aumento salarial até dezembro de 2021”. O inimigo são os funcionários públicos. É o inimigo a ser explodido, o servidor público. O Ricardo Salles se refere a passar as boiadas das regulações infralegais. O responsável pela Caixa Econômica se refere ao não apoio às pequenas empresas. E assim segue. Tem um plano ali. Ao mesmo tempo que surgem todas essas ideias mirabolantes que correspondem perfeitamente ao plano da guerra cultural, não há nada decidido do ponto de vista concreto. Não há nenhum dado objetivo para formalizar políticas. Se há essa capacidade incomum e inédita de manter massas sob constante excitação, porque o bolsonarismo não governa sem inimigos criados em série, ele é vazio do ponto de vista do conteúdo. Não se pode criar inimigos constantemente levando em consideração dados objetivos, mas sem considerar dados objetivos não há governo. E a situação que nós vivemos [da pandemia] acelerou muito o processo porque você pode passar quatro anos em disputa narrativa se houver estabilidade dos indicadores econômicos; agora a morte, a finitude, não supõe narrativas. Podemos passar anos discutindo se foi golpe ou impeachment, décadas se foi ditadura ou não, mas não posso passar um minuto discutindo se meu pai morreu. Não posso passar 30 segundos argumentando que é uma gripezinha, se eu estou entubado. O caos a que seremos levados pela atual situação e a proximidade da finitude tornarão a disputa de narrativas ociosa.

Se isso faz sentido, todo cuidado é pouco. Nós nos aproximamos do momento mais grave da vida brasileira desde a redemocratização. Teremos uma recessão econômica cuja recuperação não se encontra ainda no horizonte, e o colapso do governo Bolsonaro é inevitável, porque não se pode governar sem dados objetivos. A armadilha da guerra cultural é essa: você se mantém numa aparência de êxito permanente, mas você não consegue fazer nada. Você está totalmente preso na armadilha do seu próprio êxito aparente, que é virtual e em boa medida alimentado por robôs. Quanto maior o colapso do governo, maior a virulência da guerra cultural e maior a tendência dessa guerra virtual transbordar para as ruas. Não dá para governar um país criando inimigos o tempo todo. Nós estamos enfrentando uma pandemia e o Bolsonaro gasta energia brigando com Witzel e Doria, aparelhando a Polícia Federal. Se nós temos um adversário hoje, é a Covid-19, e que o governo Bolsonaro não consiga entendê-lo é uma prova do que estou dizendo. Esse colapso vai acelerar o processo da violência, as redes sociais estarão cada vez mais violentas, os bolsonaristas, cada vez mais aguerridos, o número deles tenderá a diminuir porque só sobrarão os fanatizados, mas estes tenderão a violências inesperadas e fora de controle. Ao bolsonarismo só restarão duas alternativas: aceitar o melancólico fracasso de um governo que não chegou sequer a existir, ou partir para a aventura do golpe autoritário. Eu creio que eles partirão para essa aventura. Há tentativas de armar cidadãos em todo o país, a instrumentalização de polícias militares em alguns estados brasileiros, há a literal “quartelização” do governo – há mais militares no governo Bolsonaro do que em todos os governos da ditadura militar em 20 anos. Nós vivemos hoje a iminência, um risco sério de um golpe autoritário, que será mais violento que a ditadura militar porque esse desejo de eliminação das instituições não fazia parte da ditadura militar. A ditadura militar queria criar instituições à sua imagem e semelhança. O bolsonarismo pretende destruir instituições. Nós só poderemos deter esse processo se compreendermos a lógica perversa que domina esse governo. Precisamos reagir para a preservação da democracia e, para isso, não será suficiente a proliferação insensata de notas de repúdio. Se as Forças Armadas embarcarem na aventura golpista do Bolsonaro, a situação será tenebrosa. As instituições estão demorando a reagir.

Fonte: https://apublica.org/2020/05/quanto-maior-o-colapso-do-governo-maior-a-virulencia-da-guerra-cultural-diz-pesquisador-da-uerj/

 

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